22 de dezembro de 2023

Cotovelinhos para ti

 


    Sabes, no outro dia vi uma pessoa que me fez lembrar de ti. Assim muito alta,  nos seus late-twenties, meio betinha - concedo - mas com uma atitude sacudida como a tua. Sim, como tu, que agitas o ar e as pessoas à tua volta meio sem querer, meio sabendo que o fazes. Mas ela tinha uns braços quase exageradamente longos e magros, semicobertos por uma malhinha castanha dourada que eu juraria que era griffe se percebesse alguma coisa do assunto, caída pelos ombros e a deixar ver parte das clavículas pelo buraco da gola.

    Eu estava a trabalhar. Era tarde da noite, e claro que comecei por não levar muito a bem que ela viesse queixar-se de uma dor de há meses no cotovelo com alegado agravamento justamente naquela hora. Mas ela atirava perguntas e observações na forma mais descaradamente possível de relevar pela graça que tinha a fazê-lo. E ainda me disse que achava que a dor era por viajar muito e andar sempre a puxar o trolley, o que me fez rir e abanar a cabeça. Ela também se riu, estava bem disposta e nem lhe apetecia ter ido ao hospital, mas vinha com a mamã que a obrigou a fazê-lo.

    Afinal tinha uma pequena fractura. Não queria que lhe imobilizasse o cotovelo mas convenci-a, pelo que saiu de lá com gesso e bracinho ao peito. Mas antes disse às duas que achava a história fora do comum e que ia avaliar melhor as radiogradias, e depois alguém que não eu falaria com elas na próxima consulta, porque eu não estaria nesse dia.

    A situação pareceu-me esquisita, e as imagens também não eram normais. Fiquei a pensar naquilo. Não estava totalmente tranquilo.

*

    A minha filha e eu estávamos adoentados no fim de semana e por isso decidi em conjunto com a mãe dela adiar por uns dias o nosso encontro. Porque era melhor, para ela não ficar duplamente doente, para ela não apanhar frio, para não lhe estragar o natal.

    Então tentei estar com ela a meio da semana, e consegui protelar por dois dias a minha consulta e arranjar um buraco no calendário.

    Mas a minha filha não pareceu melhorar muito entretanto, e portanto na véspera achámos melhor desistir do encontro a meio da semana.

    Como eu tinha ficado a pensar naquela moça que me fez lembrar de ti decidi antecipar-lhe a consulta para esse dia. Portanto ela iria ser a minha única doente e a única razão para me deslocar ao hospital.

    Mas a minha filha terá depois choramingado e dito à mãe que tinha muitas saudades do pai e que queria que eu fosse ter com ela, e que queria ficar a dormir em casa do pai, coisas que não tem de todo o hábito de dizer - na verdade acho que nunca o tinha dito. E então recebi um telefonema da mãe dela, já estando eu a preparar-me para a dita consulta, a dar-me conta do sucedido. E que já que eu tinha o dia livre afinal achava que eu me devia pôr a caminho (são trezentos e dois quilómetros de distância).

    Disse-lhe que ia ver.

    Mas reflecti, e já chegado ao gabinete de consulta enviei mensagem a dizer que já não era possível. Que iria no dia seguinte. É verdade que nem lhe tinha explicado o porquê de não ir. Mas fui rotulado de irresponsável, de imaturo, de unreliable para a minha filha que está na idade de criar seguranças, que devia reconsiderar porque afinal tinha dito antes que tinha o dia livre e que a minha filha tinha de vir primeiro.

    Respondi-lhe o mais calmamente que me foi possível que "maturidade para mim é a capacidade de tomar decisões difíceis, às vezes bastante difíceis mesmo" (e que às vezes nos partem o coração - esta frase não lhe disse; dramático me confesso, mas também não tanto).

*

    Entra a moça meio-betinha meio-sacudida com a mãe no gabinete, surpreendidas pela antecipação da consulta, e apreensivas; no entanto, aliviadas porque afinal era eu o médico, porque "já que fui eu a avaliá-la pela primeira vez, era melhor assim". Contudo, a moça estava na expectativa de que afinal lhe ia remover o gesso e saía logo dali para fora para a próxima viagem.

    Expliquei-lhes que não fiquei tranquilo com a situação, que iam fazer mais um exame naquele dia porque já falei com outros colegas que orientaram tudo para que assim fosse.

    E depois de ver o resultado do exame voltei a falar com elas com calma, com tempo, respondendo ao que sabia e apontando caminhos para o que não poderia saber.

    Disse-lhes que havia um tumor ósseo no cotovelo, e que já tinha feito contacto com o IPO para os próximos passos. Ficaram abaladas mas, por fora, não tremeram. Agradeceram muitas vezes o cuidado e a rapidez do desenlace da situação.

*

    É raro eu beber vinho ao almoço, mesmo que este seja muito tardio, mas este dia pareceu-me apropriado para tal. E também é agora raro falar sobre trabalho.

    Havia lombinho de porco estufado - na panela de pressão, e apesar disso com um molho incrível - feito pela minha irmã. Procurei arroz mas não encontrei nas prateleiras; em vez disso descobri vários pacotes já encertados de diferentes massas.

    Entretanto disseste-me casualmente por mensagem que ainda não tinhas almoçado, e eu respondi que estava a preparar o meu almoço e que chegava para ti se quisesses. Como não me respondeste mais, soube que me irias tocar à campainha dali a pouco.

    Acabei a contar-te a minha história daquele dia. Eu de copo de tinto - não havia branco... - numa mão e de colher de pau na outra, em frente ao fogão, e tu de rabo abandonado na bancada da cozinha.

  Perguntaste-me se ainda não fazíamos cotovelos artificiais, embora ambos soubéssemos que não era essa a questão importante. Apontei com a colher de pau para o tacho onde borbulhavam as massinhas que ainda tinham resistido na embalagem às épicas massadas de peixe da minha irmã.

    "Cotovelinhos só estes" - disse-te.


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