21 de fevereiro de 2005

Uma Campanha Alegre

Em dia de eleições, vamos ver o que acontecia no mês de Junho de 1871, como descrito pelo Marcelo Rebelo de Sousa do século XIX - Eça de Queiroz, neste excelente texto carregadinho de ironia e descrença:


«Este mês, quando os cravos abriam, as Câmaras fecharam. Fecharam, isto é, foram expulsas!
Houve talvez umas certas fórmulas, fez-se decerto o programa do encerramento: mas a verdade é que elas foram precipitadas, aos empurrões, pelas escadarias de S. Bento abaixo.
A Câmara estava quieta, bem barbeada, comodamente sentada nas suas cadeiras, sem desconfiança, esperando com gravidade cívica que o Governo manifestasse a sua ideia por um projecto, um relatório, um dito, um grito, uma carranca!
O Governo entrou, e com um gesto palaciano e galhardo, fez evacuar a sala

E aí está como a grande ocupação do mês são as ELEIÇÕES.
É necessário que te expliquemos, leitor pacífico que não pertences aos centros, o organismo interior de uma eleição. É ao alegre fugir da pena, um curso de anatomia política.
Lê-o ao chá aos teus pequerruchos, a quem a tua mulher prepara as fatias com manteiga. É o melhor ensino que lhes podes dar do abaixamento do seu tempo. Se eles adormecerem no meio mais pungente da declamação, nao penses que foi a sonolência comunicativa das nossas palavras severeas. É que em Portugal tudo faz sono - até a anarquia!

Quando uma Câmara se fecha, o Governo nomeia outra. Nomeia - porque uma Câmara não é eleita pelo povo, é nomeada pelo Governo. O deputado é um empregado de confiança. Somente a sua nomeação não é feita por um decreto nítidamente impresso no Diário do Governo: o processo desta nomeação é mais complicado e moroso. É por meio de votos, os quais são umas tiras de papel, onde está escrito um nome, e que se deitam num domingo, numa igreja, dentro de umas caixas de pau, que se chamam romanticamente urnas. Uns homens graves, de camisas lavadas, estão em roda da urna. Estes homens chama-se a mesa. São eles que, com gesto cívico e cheios do espírito das instituições, metem gravemente o papelinho branco (o voto!) na caixinha (a urna!)
A urna afecta várias formas, segundo as freguesias: há urnas do feitio de caixas de açucar, do feitio de vasilhas, do feitio de chávenas, etc.
Os candidatos gritam sempre, no último período dos seus manifestos, transportados de furor constitucional:
-Cidadãos, à urna!
É puramente uma demoninação sentimental.
Para serem exactos, deviam exclamar, em certas freguesias:
-Cidadãos, ao caixote!
E noutras:
-Cidadãos, à vasilha!
Ora, apesar desta nomeação aparatosa, e de grave cerimonial, o deputado é tão igualmente funcionário como se fosse nomeado por oito linhas burocráticas e triviais do Diário do Governo. O deputado obedece ao Governo, e exerce uma função. Há o apagador, o gritador, o interruptor, o homem dos acidentes, o homem dos precedentes, etc. E quando desagrada, é demitido. Somente não se diz demitido. Diz-se, com menos asseio, dissolvido.
O Governo pois nomeia os seus deputados. Estes homens são, naturalmente e logicamente, escolhidos entre os amigos dos ministros. Por dois motivos:

1º Porque a amizade supões identidade de interesses, confiança inteira.
2º Porque sendo a posição de deputado ociosa e rendosa, é coerente que seja dada aos amigos íntimos - àqueles que vão ao enterro dos parentes e trazem o pequerrucho da casa às cabritas
Os amigos dos ministros são, naturalmente, os primeiros escolhidos. Para completar o numero de uma maioria útil, estes amigos, mais em contacto, indicam depois outros, seus parentes que procuram colocar, os seus derentes que queiram utilizar.
- Tu não tens ninguém pelo círculo tal? - pergunta X ao ministro, seu íntimo.
- Não.
- Espera! Tenho eu um primo. O Pobre rapaz tem poucos meios, é pianista. Mas é fiel como um cão. Um escravo! Posso dizer ao rapaz que conte com a coisa?
- Podes dizer ao rapaz!
Lentamente a lista da maioria vai-se formando em Lisboa. Os pretendentes são numerosos. Os amigos íntimos agitam-se em volta do ministro, como um bando de pardais em torno de um saco de espigas. [...]
Depois os candidatos são mudados como figuras de um jogo de xadrez. A um, a quem se prometeu o círculo D, dá-se o governo civil de B - como indemnização. Tira-se a C a candidatura, porque se descobre que C tomou chá com o chefe da oposição. Mas dá-se a E, que foi quem denunciou C. Às vezes é um influente pelo círculo X que, em paga pela sua influência, pede que seu genro venha pelo círculo Z, onde é proprietário.
- Mas o círculo Z está prometido a Fulano, que é um professor distinto, um publicista! Seu genro tem pelo menos algum curso?
- Meu genro não tem curso nenhum. Eu é que tenho influência. O jornal da localidade já provou que meu genero era um animal. Mas meu genro espancou a redacção.
E quem vem pelo círculo Z não é o professor distinto, mas o sujeito convencido de animal pelo periódico da localidade. [...]

Logo que o Governo possui completa a sua lista, comunica-a aos governadores civis. Começa aqui o que se chama o trabalhinho das autoridades. O governador civil chama particularmente cada administrador de concelho, e troca com ele estes nobres dizeres:

- Pelo seu círculo o Governo propõe Fulano. Compromete-se a fazê-lo vencer?
- Farei as minhas diligências.
- Nada de palavras equívocas. Ou a eleição certa para o Governo, ou a demissão certa para si. De resto, peça, intrigue, compre, ameace, maltrate. Isso é consigo... O que nós queremos é que o Governo vença!
O administrador tem família, vive daquele escasso rendimento, quer seguir a carreira administrativa, sente o seu interesse que o insta, e cede a S.ª Ex.ª
- Pois bem - diz. - Respondo por tudo... Mas tenho exigências.
- Venham elas.
- É necessário que seja demitido o reitor do Liceu, que é todo oposição...
- Tomo nota.
- Que seja transferido o escrivão de fazenda. Coitado, grande transtorno lhe vai fazer! Mulher e quatro filhos. A mulher é da vila... mas enfim...
- Está claro, para a frente!...
- Além disso, preciso de uns 300$000 réis para a freguesia de tal, que está muito trabalhada pela oposição...
- Conte com eles.
- Precisva também de tropa...
- Com todo o gosto. Trabalhar, meu amigo, trabalhar! Esta nossa vida administrativa é o demónio! Mas que diabo, alguma coisa se há-de comer! Adeus. [...]

- O candidato é Fulano. Mãos à obra! É trabalhar-me bem essas freguesias. É pedir, ameaçar...
Os regedores partem; e, trotando pelas estradas do concelho, ruminam os seus meios.

1º A compra pura e simples. Regateia-se o voto: 500, 1$00, 1$50o réis. Há-os de meia libra, mas são raros.

A pressão. É o mais eficaz. A pressão é uma arma geral, simples, acessível a todos. O proprietário exerce pressão sobre os rendeiros, que exercem pressão sobre os trabalhadores. Nos centros de concelho ou de distrito a autoridade superior exerce pressão sobre todos os empregados do governo civil, da administraçãom da repartição de fazenda, da repartição de obras públicas, do liceu, da câmara, etc. - os coronéis exercem pressão sobre os oficiais - com ameaça de participação para a secretaria de guerra, de destacamento para longe, de mudanças de corpo com despesas, etc.

A ameaça. A ameaça é mais especificamente feita pelo regedor na sua freguesia. O regedor dirige-se ao eleitor e verte-lhe esta hinesta eloquência:
- Tu tens um filho de 20 anos. Está para entrar no recrutamento. Se votas no Governo livro-te o filho. Se não, tens o filho com a farda às costas.
Ou então:
- Tu sabes que a tua filha tem aí um namoro. Se não votares no Governo, a tua filha será chamada à presença da autoridade e tens a vergonha em casa...
Ou quando então:
- Tu andas colectado em 10. Se votares com o Giverno, arranjo-te a que o sejas apenas em 9. Se votas contra, tens para o ano no cachaço 16 ou 17.
E aqui está como o Governo arranja votos - por cabeça.
Há votos por influência. Isto é - arranja-se um sujeito que dispõe de 50, 100, 200 votos: dá-se a esse homem uma comenda, um título; nomeia-se-lhe um primo recebedor ou apontador de estradas. E esse homem dá generosamente, para maior esplendor da monarquia, esses 50, 100 ou 200 votos ao candidato do Governo! [...]

No entanto a oposição trabalha também. Os seus meios são menores. Recorre sobretudo à prosa. Manifestos nas vilas, discursos populares nas freguesias, etc. Fala nos impostos, nas vexações do escrivão de fazenda, nas poucas estradas que o Governo faz - e nas muitas infâmias que o deputado governamental tem feito... [...]

O influente [de eleições] é ordinariamente proprietário. Antigo cavador de enxada, enriqueceu, tem ambições, quer ser da junta da paróquia, da junta dos repartidores, e mais tarde, num futuro glorioso, vereador! Já não usa jaqueta, nem tamancos. Tem uma casa pintada de amarelo, calça um par de luvas pretas, e fala na soberania nacional. Em vésperas de eleição todos o vêem, montado na sua mula pelos caminhos das freguesias, ou, nos dias de mercado, misturado entre os grupos, gesticulando, berrando, com uma importancia tremenda. Dispõe ordinariamente de 200 ou 300 votos: são os seus criados de lavoura, os seus devedores, os seus empreiteiros, aqueles a quem livrou os filhos do recrutamento, a bolsa do aumento de décima, ou o corpo da cadeia. A autoridade passa-lhe a mão por cima do ombro, fala-lhe vagamente do hábito de Cristo. Tudo o que ele pede é satisfeito, tudo o que ele lembra é realizado. As leis afastam-se para ele passar. As suas fazendas não são colectadas à justa: é o influente! Os criminosos por quem se empenha são absolvidos: é o influente! Se são proibidos no concelho os arrozais, ele pode tê-los: é o influente! Se são proibidos os portes de armas, ele é exceptuado: é o influente! Só ele caça nos meses defesos: é o influente!
Se algum dia, leitores das Farpas, encontrardes o influente, tirai-lhe o vosso chapéu. Ele reina, e o seu reino assenta sobre a coisa que, apesar de ser a mais lodosa, é ainda a mais sólida - a corrupção.

Nasce enfim o dia, o domingo desejado.
Os regedores começam a chegar à frente das suas freguesias. Os homens vêm de cara lavada, de grandes colarinhos brancos.
Para os deter até às 10 horas, impedir que eles se desmantilhem, e que, fora das vistas zelosas do regedor, estejam expostos às tentações da oposição - há um casarão, ou um grande pátio, ou um enorme armazém, em que são recolhidos. Estão ali uns poucos centos de homens, amontoados, sentados no chão, com o varapau na mão, a lista no bolso do colete. No entanto vem vinho e bacalhau. Passam os copos em redor, os queixos mastigam, e viva lá seu compadre! e à saúde do nosso regedor! e grandes risadas daqui e empurrões além, e pragas mais longe - e toda aquela multidão, avinhada, impaciente, aborrecida, com um cheiro enjoativo e um rumor de troça, espera que chegue a hora de dar o seu voto ao Governo, livre, espontâneo e consciente!
Cada freguesia vai votar arrebanhada, de regedor à frente. Os tamancos soam no lagedo da igreja, o secretário da mesa chama numa voz dormente. A cada nome o regedor volta-se para o indivíduo:
- Vá! És tu. Chega-te... perdeste a lista? Pensei! Deita ali! Rua!

E a igreja vai-se esvaziando, os sacristães apagam as velas nos altares, os senhores da mesa bocejam, as beatas persignam-se com água benta, os papelinhos brancos acumulam-se na urna, os influentes satisfeitos fumam no adro, os Cristos sobre os altares agonizam nas cruzes. Viva o sufrágio![...]»

20 de fevereiro de 2005

Just a comment!

Ois,

Apenas queria manifestar a minha satisfação pela estrondosa derrota dos meia-laranja e dos CDS, entenda-se, scratched compact disc!
Não acho muita piada às maiorias absolutas mas quando a fome aperta "há valores mais altos que se alevantam".
Sei que esta mudança não nos permite antever um mar de rosas. Contudo, o simples acenar das rosas no mar é importante para o ressurgir da esperança!
Viva a mudança!!!!!!!!!!!!! E amanhã, depois da euforia, volta tudo à normal vida de trabalho:) O país somos nós!
Fiquem bem:)

16 de fevereiro de 2005

A luz é como a água



No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.

— De acordo — disse o pai — vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.
Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que os seus pais achavam.
— Não — disseram em coro — Precisamos dele agora e aqui.
— Para começar — disse a mãe — aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.

Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madrid, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganho. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação,

— O barco está na garagem — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não há maneira de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não há mais lugar.

No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram os seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até ao quarto de empregada.

— Parabéns — disse o pai. — E agora?

— Agora, nada - disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto.

Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca como água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa.

Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó perguntou-me como era que a luz acendia só com a gente carregando num botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes.

— A luz é como a água — respondi. — A gente abre a torneira e sai.

E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido.

— Já é mau ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada.
— disse o pai — Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho.

— E se ganharmos a gardénia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel.
— Não - disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência.
— É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever — disse ela — mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor.

No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardénias de ouro e o reconhecimento público do director. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos no seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos se tinham perdido na escuridão.

Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe.

O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade — disse.
— Deus te ouça — respondeu a mãe.

Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama.

Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até ao tecto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com o seu xale de Manilha, que se agitava com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude da sua poesia, voavam com as suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos libertados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No quarto de banho flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores.

No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigénio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira os seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o director, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha-se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madrid de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.


Gabriel García Márquez, Dezembro de 1978.

10 de fevereiro de 2005

Rechinhibru: "Posso dar uns toques contigo?"



"The universe will expand, and it will collapse back on itself, then will expand again. It will repeat this process forever. What you don't know is that when the universe expands again, everything will be as it is now. Whatever mistakes you make this time around, you will live through on your next pass. Every mistake you make, you will live through again, and again, forever. So my advice to you is to get it right this time around. Because this time... is all you have".

*

Lembro-me de, há uns anos, ir para a Faculdade de Ciências à boleia com o meu amigo Tonecas e com o pai dele. Íamos num jipe azul escuro; era muito de manhãzinha, e apesar de àquela hora já se ver a luz do sol, fazia um frio invariável.
Tinha uns 10 ou 11 anos quando conheci o Tonecas. Eu estava a jogar sozinho à bola, num campo de terra batida que havia perto de minha casa, onde todos os rapazes que aqui nasciam ou para cá vinham morar aprendiam a jogar, e onde se jogava de manhã à noite. As balizas eram feitas com três barras de andaime amarelo, aparafusadas entre si, e presas ao chão de terra castanha barrenta.
Nesse dia ninguém tinha aparecido, porque tinha chovido bastante de manhã. Mas mesmo assim eu fui jogar sozinho, porque sabia que o campo ia estar mesmo como eu mais gostava dele: com a terra fofinha, já quase seca pelo sol que entretanto aparecera. Mesmo muito calcado pelos pés alegres de gerações de rapazes que ali cresceram, as ervas teimavam em crescer à periferia do campo.

O Tonecas apareceu e pediu para jogar comigo; no dia a seguir já o tinha ido chamar a casa para irmos jogar outra vez; carrego na campainha que nunca ouvia tocar, chamo-lhe António ou Ricardo? sei lá se o pai gosta que chamem Tonecas ao filho, O António está?
Nesse dia não imaginava que uns anos mais tarde estaria em casa dele, com outros amigos meus, e com o pai dele a dar-nos a provar do vinho e da aguardente dele...
Uma vez o Tonecas escorregou numa poça do campo, quando estava a tentar roubar uma bola ao Motinhas, e partiu um pulso. Uma das minhas recordações mais vívidas é ele a levantar-se e passar à frente da baliza (onde eu estava a jogar a guarda redes) correndo em direcção a sua casa, agarrado ao pulso que oscilava, desamparado, e gritando, Parti o pulso! Parti o pulso!, enquanto saiam disparados da sua boca pedaços de biscoitos amarelos que estava a comer enquanto jogava...
Foram dias seguidos em casa dele a jogar Elifoot, Championship Manager 2 ... mais tarde, ajudei o Tonecas com a Matemática e com as Físico-Químicas. Já há muito tempo que lhe chamavam Tonecas, Rechinhas, Rechinhibru (alcunha mítica e cujas origens se perdem no tempo) ... até Manecas já alguém lhe chamou um dia.

Lembro-me de esperar à minha porta, de manhãzinha, até que ele e o pai assomassem lá ao fundo da rua no jipe azul escuro. Outras vezes tinham que tocar à minha porta porque eu, podre de sono, tinha-me deixado ficar na cama. Davam-me boleia porque o Tonecas andava no Colégio Moderno, que fica perto da Faculdade de Ciências. Nessas viagens desde Queijas até à Cidade Universitária, pela 2ª circular, ouvia encolhido no banco de trás a Mega FM... o sol ficava mais alto durante o percurso, e todas as manhãs tocava a "Linger" dos Cranberries. Sempre achei aquela música muito meiga, optimista, esperançosa, e nunca tinha ligado à letra. E é por isso que quando a oiço, apesar de hoje perceber muito melhor a mensagem dessa letra, me lembro sempre dessas manhãs em que o jipe me deixava no relvado gelado e húmido da reitoria da cidade universitária, e essa é uma memória refrescante e jovial.

Entretanto as coisas foram mudando. Foi ele que me deu o meu primeiro quadradinho de ganza, a mim, que nem nunca querera saber disso para nada, mas que queria experimentar com a namorada na altura.

Ele foi para Coimbra estudar.

Eu já não preciso de boleia para a FCUL...

*

Raras vezes passo agora pelo campo do bairro dos bombeiros. Como diz um amigo meu, "custa olhar para lá". As balizas, agora vermelhas de ferrugem, desistiram e tombaram no chão; estão cobertas por arbustos bastante mais altos que eu, que invadiram todo o terreno de jogo. Já ninguém vai para ali...
Dizem que alguém comprou aquele terreno há muitos anos e decidiu que ali não se construia para que se pudesse jogar à bola...

Encontrei o irmão dele há dias no Pingo Doce, nas compras, O teu irmão, 'tá bom? 'Tá lá pa Coimbra, mas ele há de vir cá votar!, olho para o número dele no meu telemóvel, já não o vejo há bem mais de um ano.

E agora, vai para 15 anos desde o dia em que pequeninos, jogámos à bola juntos pela primeira vez. Hoje, mais velho, oiço Pink Floyd, como azeitonas... e bebo minis por ocasião das festas de S. Miguel, aqui em Queijas, ano após ano, encenando que Parti o pulso! Parti o pulso!, abanando a mão, fingindo ter a boca cheia de biscoitos, correndo em volta dos amigos desse tempo enquanto eles se riem como se fosse naquele dia.
Invariavelmente.

5 de fevereiro de 2005

Jet lag

Na senda de um futuro brilhante, habilmente roemos as unhas num presente crepitante, rouco que enleia os nossos sentidos. O cansaço da incerteza, a dúvida da espera que nos exaspera, a matéria bruta que áspera nos consome e desperta... Tudo se conjuga num jet lag bipolar em que da manhã faço noite e à luz queimada do candeeiro que se arrasta, ilumino os meus olhos, como se de um crepúsculo nocturno se tratasse, fosse a lua o sol!
Os relógios que me circundam, descompassados, ecoam na membrana do tímpano, fibrosada... gasta. Já nada transita pela córnea erodida... opaca. No entanto, a força do sonho que me impele e instiga quebra as barreiras do impossível e numa loucura frenética assume o controlo de mim. De repente deixo de ser eu... deixamos de ser nós! Já não temos consciência, já não sabemos quem somos nem o que estamos a fazer. A acção torna-se involuntária, inata, num constante corromper da dor que outrora nos alertou. Não sentimos nada, nem o cansaço, nem a angústia... nada!
O passado faz-se de anticorpos (muitas vezes incompletos) que nos percorrem rumo a um futuro antigénico. O tempo precipita no presente viscoso em que qualquer parágrafo é moroso e nós, sem saber, já nem sequer estamos a ler.
Como é violenta a aridez das páginas infindáveis, a incandescência fricativa de um contacto gélido com a matéria bela mas frívola, pelo menos na dimensão em que me encontro.
E estática permaneço... procurando compreender mecânismos de transdução de sinal que se arrastam por uma imensidão de horas, suficientemente vastas para deixar morrer alguém à fome.
Como é paradoxal o eterno erro do saber básico ulterior à especialização por campos florescentes, onde escasseiam as necessidades básicas de quem procura sustentar o conhecimento na sua própria descoberta.
O aperfeiçoamento de técnicas de navegação permitiu que os Portugueses desvendassem o mar obsucuro e mítico. Foram muitos aqueles que temeram o desconhecido, bem como aqueles que pereceram na busca do sonho, é certo. Mas todos eles, munidos dos conhecimentos básicos, esboçaram um novo mundo que embora velho, só então se revelava.
Porque é que nós, sabendo nadar de forma inata, não somos lançados ao mar no momento em que nascemos? Porque é que limitam o nosso acesso à realidade através de obstáculos mesquinhos e sumptuosos? Tudo seria tão simples se ao mesmo tempo que estudassemos tivessemos a oportunidade de recordar experiências de facto vividas!
Como é inútil o tempo que perdemos a tentar decorar listas de “cluster of differntiation” ou de fármacos ou de colaterais de nervos, sabendo que numa próxima borga tudo se dissipará.
Como é que os iluminados que regem as quintas do saber não percebem que este não se constrói apenas com centenas de páginas para decorar? Será que eles não sabem que a memória é volátil? Ou apenas se descartam da preocupação pedagógica que deverá estar na base de qualquer ensino?
As aulas teóricas são para mim um veículo de transmissão oral de ínfimos pormenores que fazem a diferença num exame mas que pouco importam para o melhor desempenho da profissão que pretendemos exercer. Claro que há excepções mas são muito raras.
Comparo estas aulas a arranjos de DNA com sequências codificantes, intercaladas por extensas regiões nas quais acabo por adormecer e perder o fio condutor, já não se faz luz!
Falta racionalização e nós, como soldados na frente de um tabuleiro de xadrez, pouco conseguimos fazer contra o poder instituído, restando-nos continuar a lutar e a tentar sobreviver à insónia que nesta noite, como em tantas outras, não me deixa dormir.
Se a realidade não faz sentido, não deixemos que também ela estagne em nós... Ouçamos a música que nos arrepia e impele rumo a um velho mundo por nós reinventado!

O desaparecimento da carreira 50

Leio no site da Carris que a empresa vai proceder a uma alteração estrutural de fundo nas suas carreiras. Lê-se no comunicado «...A Carris considera que a rede actual já não corresponde às necessidades de uma cidade que registou uma diminuição acentuada da população na última década... A rede proposta para a Carris assenta basicamente na existência de 3 segmentos de rede:

 Rede estruturante de autocarro e metro ligeiro, composta por 18 carreiras - virá complementar a rede pesada de metro e comboio, estando acessível (a menos de 6 minutos a pé de uma paragem) a 321.000 habitantes de Lisboa (57% da população da cidade)

 Rede intermédia, composta por 20 carreiras - que suprirá a menor oferta dos níveis superiores em algumas zonas da cidade e que está acessível (a menos de 6 minutos a pé) a 354.500 habitantes de Lisboa 63% da população da cidade)

 Rede de serviço local (Bairros), composta por 20 carreiras – com percurso curto, que assegurará aos Bairros a ligação, num ou mais pontos, à rede de metro e comboio, no máximo em 10 minutos...»


Por um lado compreendo a tomada de posição da administração da Carris, no sentido de diminuir os elevados custos de operação da transportadora e aumentar a produtividade.
Mas algo de mais grave se esconde...

ENTÃO E A TRADIÇÃO??? O QUE SERÁ FEITO DOS VALORES QUE SEMPRE ACOMPANHARAM A CARRIS AO LONGO DOS ANOS?? AS MEMÓRIAS PERPETUADAS PARA TODO O SEMPRE?

Uma rede eficiente e curta? Isso ditará o desaparecimento da super-famosa carreira 50. E de todo o seu folclore característico.

Esta bela e ditosa carreira existe há pelo menos 40 anos. Começou por ligar Algés ao Poço do Bispo, mas desde 1998 que o terminal se mudou para a Estação do Oriente. Passa por pontos tão pitorescos e belos da nossa cidade como o Bairro da Boavista, a Buraca, a Estação de Benfica, o Colombo, e aquela zona intermédia que divide as melhores zonas dos Olivais e Chelas.

4 de fevereiro de 2005

Recordar e sobreviver





Envolvidos num banco de jardim,
Contraímos músculos, sufocamos gritos,
Lá ao fundo há gente! - diz um de nós;
Apertam-se as roupas, fazemos que não,
Passam os desconfiados, retorna-se ao mesmo.
Desaparece o jardim...

Caminhamos de mãos dadas
Restolhando por entre ramos de árvores que ladeiam a estrada;
Acertamos os pés e os passos rápidos,
Sorrimos, respiramos fundo e não dizemos nada
Percorremos o chão de areia quente, fina
Adivinhando os pulos um do outro;
Entrelaçamos dedos e pele e carne,
Deitamo-nos numa toalha de folhas e flores,
Conjuga-se o cheiro a mar dos corpos.
Desaparece a clareira...

Acordamos escondidos pelas rochas
Com o mar a beijar as pontas dos pés
E um lençol de nevoeiro salgado
E cobertor de negro estrelado
É tarde... é tempo de voltar para casa

Mas gritos calados,
E sempre a mesma nota de piano
Aumentam a distância...
Soltam-se as amarras

Corre o tempo! Fogem as pessoas!
Tudo muda
Aparecem os locais e as memórias

Recordar é (sobre)viver.

1 de fevereiro de 2005

Tetris 2 - Everybody's Gotta Learn Sometime




Depois de todas as encruzilhadas do dia de hoje; depois de tantas emoções fortes enoveladas nestas 72 horas a pé; depois de ter batido o meu anterior record de privação do sono – tinha prometido a mim mesmo dormir e só me lavantar da cama quando raios de sol de outrora conseguissem perfurar os prédios que dispuseram entre mim e o nascente da manhã; cá estou, de volta, após uma tentativa gorada de mergulhar no meu escuro interior, munido de uma manta polar fininha, um aquecedor, e um garrafão de ginja. O absinto era a imagem de marca do Eça de Queirós. As ganzas aparecem nas T-shirts do Bob Marley. Se eu um dia fosse um personagem do Auto da barca do inferno, tenho a certeza que se escolheria o cabelo comprido e uma garrafa de ginja caseira como meus elementos cénicos – embora já tenha bebido ginjinha contida em muitos outros recipientes (quem se pode gabar de beber ginginha de um balão volumétrico laboratorial? Senti-me um Prince of Persia). Se vou parar ao inferno? Confio no bom senso do Gil Vicente...

Em pequeno e em adolescente, era habitual demorar muito tempo – horas – a adormecer. Aprendi a usar esse intervalo a rever tudo o que tinha aprendido naquele dia na escola; à distância, não tenho dúvidas de que o meu relativo êxito nos estudos se deveu em grande parte ao facto de ter insónias. Não precisava de estudar, porque me limitava a lembrar-me das aulas, do que os professores diziam e de como contavam os factos da matéria; depois, ia compondo esses factos com outros pormenores inventados por mim; tecia por fim relações mentais muito improváveis entre as matérias das aulas, e quando dava por mim já tudo se tinha misturado num sonho distorcido, e eu tinha-me tornado em ânodo, condutor e cátodo de uma torrente imparável, Filho! Vá, ‘tá na hora...!
Já em adolescente, passava também em revista todos os pormenores das tropelias dos meus colegas e amigos; reproduzia na minha tela mental os tímidos cruzares de olhares com as meninas da minha escola, que na altura estavam a aprender a usar os seus dons de fascínio da classe masculina, como pequenas gatinhas que, trôpegas, recuavam mais depressa do que avançavam nos seus raides armados de garras de leite. Na verdade, nem todas aquelas miúdas da minha escola cruzaram o olhar comigo, embora eu tivesse desejado que isso acontecesse. Imaginei tanto essas situações que elas se tornaram realidade pretérita perfeita, na minha cabeça.
Nessa altura não poderia imaginar que, mais tarde, ainda havia de considerar esses olhares (já totalmente maturados e, assim, isentos de uma réstia que seja de timidez) como foras-de-jogo. Alguma relação com os offside do futebol? A realidade torna-se esbatida, a história torna-se lenda, a lenda torna-se mito...
Lamentavelmente, algumas destas recordações tão vivas, que parecem de ontem, de agora!... são construidas. A título de excepção, tive a clarividência de que uma ou outra das minhas recordações mais brilhantes de miúdo pequenino são devidas a memórias dos meus pais, contadas juntamente com fotografias que atestam esses ambientes e momentos de que me recordo. O meu pai anda a remexer nas suas fotografias antigas, e encontrou uma antiga – um achado! – em que eu fingia conduzir um camião azulinho, mas ferrugento, podre, decrépito, abandonado no estádio nacional... estava na cabine, agarrado ao volante, ao mesmo tempo que sorria com os olhos e com todos os dentes que tinha e também com os buracos deixados pelos que não tinha naquela altura. Hoje, quem me visse sorrir daquela maneira apelidar-me-ia imediatamente de esquizofrénico ou coisa que o valha. Na foto, eu estava mesmo feliz a conduzir aquele camião – de tal forma que durante anos jurei lembrar-me daquele dia. Mas não lembro. Do que me lembro é que quando era pequeno o meu pai passeava muito a pé comigo, e tirava-me muitas fotografias; as memórias daquele dia estão na minha cabeça porque mais tarde vi essa fotografia, mostrada pelos meus pais, o que eternizou o momento... convencendo-me que me lembrava.

Acabo o tetris que estava a jogar, freneticamente, contra o computador. Bebo mais um gole de ginjinha, providencialmente colocada num cantil abaulado de alumínio, daqueles que os detectives usam no bolso da gabardina. Fecho os olhos, deixo-me levar pelo doce calor do aquecedor. Recosto-me na minha nova cadeira de executivo, daquelas que há em todas as grandes empresas de todas as novelas brasileiras. “Change your heart... look around you...” canta Beck, nos headphones. O líquido vermelho, viscoso, dir-se-ia quase gorduroso, desce pelo esófago e parece ir directinho ao cérebro, trazendo acalmia, vontade de introspecção ... o aquecedor envia ondas que fazem as minhas pernas inchar de prazer. Vou bebendo enquanto tento fazer o que há muitos anos não faço: rever o dia de hoje, que teve 72 horas.
Uma conversa difícil e inútil mantida pela net – decisões dolorosas tomadas de forma insegura, mas apregoadas de maneira corajosa - porque as gatinhas crescem e transformam-se em panteras. Um jogo de futebol em que a minha equipa foi copiosamente derrotada, e em que eu consegui ser o elemento que mais “enterrou”. Um exame de escolha múltipla, em que o difícil estava, de facto, na escolha – não li metade da matéria da cadeira, e as 14 perguntas que tinha deixado para fazer no fim (ao todo eram 80) foram feitas à pressa porque estavam já a recolher os testes quando me dei conta de que tinha acabado o tempo – Game Over; de olhos fechados embebi-me no pânico que senti nesses 30 segundos... mas também naquela sensação boa que tenho quando estou a preencher um boletim do Euromilhões com a certeza de que é desta que vou ganhar. Por mais vezes que tenha perdido antes... (... everybody’s gotta learn sometime...).
Daí para trás, perdi a disciplina e o controlo; comecei a lembrar-me de coisas sem padrão definido, aleatoriamente. A roda viva alcoólica embalada nas rajadas de ar quente do aquecedor enlevou-me para outras imagens dissipadas, dissolvidas, vividas ou construídas: colheres de mousse de manga dadas à boca alternadas com beijos de leite condensado; imagens de mim próprio de bata branca a ser sucessivas vezes atacado pela mesma estirpe bacteriana num banco de hospital, sem ser capaz de produzir anticorpos (... everybody’s gotta learn sometime...); ao mesmo tempo, milhares de estorninhos a voar por cima de mim fazendo manchas geométricas perfeitas no céu, como naqueles screensavers das lojas de informática; os meus aniversários, desde pequeno até agora, sempre celebrados à chuva, à noite, com bolo de anos, sangria, capas de trajes académicos e bolas de futsal à mistura; palavras carregadas de paixão escritas num vidro de carro embaciado... andar de baloiço de olhos fechados (...everybody’s gotta learn sometime...).

Depois disso não me lembro de tudo o que recordei. Já de olhos fechados, a escuridão ficou mais profunda, como se não houvesse muito mais para além daquela barreira temporal. A cadeira começou a andar à roda, e a minha cabeça também, mas em sentido contrário. Flashes pictóricos assolavam-me aqui e ali com memórias já muito distantes: um jipe de caixa aberta em Aljezur, à noite, carregado com mais de 10 pessoas; o escuro e tenebroso laboratório de biologia celular, para cujas aulas ia amiúdes vezes alcoolizado; eu, a transportar uma rapariga em coma alcoólico ao colo, que nunca tinha visto, para uma ambulância, estando também eu muito bêbado (tendo bebido só uma imperial e um shot, numa festa universitária); os bancos do parque eduardo VII, onde esperava a camioneta para casa; cegonhas na praia de Carcavelos num dia nublado, muito de manhãzinha (... everybody’s gotta learn sometime...); e, de novo, andar de baloiço de olhos fechados... cada vez mais depressa, mais alto, descontroladamente, até que o arrepio na barriga, que afinal é na cabeça, me faz acordar. Afinal alguém me abana a cabeça...!

Cantil – vazio - por cima do teclado... a manta polar no chão, nú e a tremer de frio, quase a cair da cadeira. Headphones quase a sairem do sítio, mas que não desistiram de dar voz ao Beck (everybody’s gotta learn sometime – winamp em repeat mode), Oh João, parece mentira! Tu és doido, João! Não estás bem, nem parece teu!!, carícias na face.

Estou desconfiado que não torno a fazer a mesma coisa – acho que dei um desgosto à minha avó.