15 de junho de 2010

Crónica de uma noite


Gostava de caminhar à noite pelas ruas desalmadas, deixando-se envolver pelo zumbido das luzes das montras das lojas encerradas. A noite dá descanso às pessoas normais e cria espaço para que os sentidos se concentrem nos pormenores mais ínfimos que sempre ali estiveram, embora esmagados pela vida citadina diurna; consiste, por assim dizer, numa longa inspiração profunda, como que uma purga sem a qual não pode explodir o dia seguinte. Pelo menos, era assim que ele pensava.
Sentia o cheiro a alfarroba das correntes de ar tépido que percorriam preguiçosamente as avenidas e lhe massajavam as maçãs do rosto, entrando-lhe pelas narinas e incendiando-lhe aos poucos o peito, como quem aviva um braseiro adormecido com um leve soprar.
Aquela serenidade fazia com que se sentisse mais vivo e mais consciente de si mesmo, ao mesmo tempo em que quase toda a população da cidade ensaiava a própria morte àquelas horas tardias. Era Verão e não havia vivalma.
Uma das coisas boas da madrugada é que - julgava-o ele - podia ter certeza de que ninguém estava a pensar nele, podendo assim ocupar-se disso mesmo sem receio de ocupar o lugar de alguém.
Não ficaria, contudo, sozinho por muito tempo naquela noite.
Por questões logísticas, de horário, ou por outra razão qualquer, tinha combinado encontrar-se com ela por volta daquela hora, o que, bem entendido, não era costume. Logo a achou, aguardando por ele, a fazer de sentada numa precária vedação de jardim.
Não disse nada. Abraçou-a, e percorreu com mãos de pura saudade o seu vestido azul, como que certificando-se de que eram aquelas as formas que tão bem conhecia.
Pediu-lhe que se acalmasse; que ali não era o local; e juntou, com olhar cúmplice, que era preciso tratar das "precauções".
Caminhou com a mão dela na sua, enfrentando de peito incandescente a brisa de tom doce-alfarroba, contando os passos, medindo os espaços para pisar apenas as pedras pretas da calçada.
Lá ao fundo, na avenida perpendicular, voa um taxi durante meio segundo entre os dois prédios de esquina. Um homenzinho careca e atarracado carrega caixotes de fruta de dentro de uma ferrugenta Bedford enquanto pragueja em transmontano. O vestido dela é agora azul mar, atingido pela luz verde do símbolo da farmácia.
Perguntou-lhe por moedas. Que não tinha, abanou, que só tinha podido sair de casa com o que lhe cobria o corpo.
Enquanto arranhava os bolsos, olhava para ela com aquele olhar de quem finge estar preso no infinito, a olhar para, mas a ver através de, com o pensamento noutra galáxia distante. De resto, era a melhor forma que tinha desenvolvido para poder fitá-la por longos momentos sem a intimidar, sem que lhe fugisse com os olhos. E foi nos olhos cor de mel que reparou primeiro, devagar, trespassados pelo verde-cruz-de-farmácia. Como se não estivesse já apaixonado por ela, ficá-lo-ia naquele preciso conjunto de coordenadas espaço-tempo.
E aquele vestido, tão simples e leve! sublinhava-lhe as formas até meio da coxa, como um presente que antes de recebido já se sabe o que é por fora, e mesmo assim surpreende sempre de tão bom que é quando desembrulhado.
Encontrou uma única moeda de duzentos escudos por entre a tralha de um dos bolsos das jeans gastas. Voilá!
Precipitaram-se para a caixa azul pregada ao lado da porta da farmácia, e juntos inseriram a chapita dourada e cromada na ranhura. Pressionaram o botão uma primeira vez, depois outra, várias vezes. A máquina não respondeu.
Irritada, esmurrou o botão de retorno, mas as entranhas da máquina responderam com um ganido metálico, e não devolveram a moeda.
Foda-se, foda-se, foda-se! E agora?, E agora nada, disse ela, com a simplicidade tão própria dos acontecimentos óbvios e irremediáveis.
*
O hálito doce a alfarroba era agora substituido aos poucos pelo cheiro viçoso dos jardins regados, que lhe embebia sonolentamente as cinzas no peito; os pássaros gritavam já nas copas do arvoredo onde reinavam, e não tardaria muito para que o céu clareasse; tudo isto acontecia e lhe era dado a ele que, surdo de sentidos, apressava agora o andar sem contar os passos e sem medir os espaços, calcando a eito as pedras escuras e claras da calçada daquela avenida para não perder o autocarro por causa de um capricho estúpido.
As montras calaram o zumbido das suas luzes, e os carros já sulcavam novamente o asfalto das ruas. Tinha terminado a purga num último sopro de expiração, e já explodia um outro dia qualquer.