31 de agosto de 2006

Dás-me um beijo?


... e ao voltar de não sabemos onde, sentou-se à espera do eléctrico num daqueles separadores de metal que estão nos passeios para tentar evitar que as pessoas atravessem as ruas em determinados pontos. Tinha anoitecido sem se dar por isso, mas o vento que soprava em direcção ao rio continuava quente, ainda de Verão, embora Setembro se aproximasse pé ante pé para que não o ouvissemos chegar. Um ou outro casalinho de estrangeiros deambula em passos inseguros, empunhando mapas da cidade, guias de transportes, dicionários para turistas.
Do outro lado da rua, um quiosque aproveita ainda para tentar vender jornais moribundos, feitos de notícias que nunca tiveram vida, apesar de inventadas por mentes tão desesperadas por furos jornalísticos como cozinhadas pelo calor que em todo o lado penetra. É a fruta da época - embora se saiba que, cada vez mais, a silly season se estende pelas quatro estações. Mas Johannes, que veio não sabemos de onde, está alheio a tudo isto. Limita-se a estar. Espreguiça-se como um gato e quase cai do poleiro para a estrada que está por trás, embebida na velocidade de alguns carros que passam àquela hora sem respeitar os semáforos, mas nem o susto o desperta do torpor. Johannes vem bêbado, mas não bêbado de cerveja ou de um vinho a martelo qualquer: os seus pulmões estão cheios de suspiros; a sua pele vem barrada de carícias; os seus músculos descontraídos de satisfação. Johannes tinha certamente estado com alguém muito especial.

O placar digital ao seu lado, por cima da sua cabeça, que supostamente informa os tempos aproximados de espera dos transportes, está completamente descontrolado. Vários números piscam sem ritmo aparente; o E15, que Johannes espera, demorará cerca de 120 minutos a chegar àquela paragem. Embora gostasse de definir escalas para depois as rebentar, ele sabia que aquele tempo não correspondia à verdade. E, na verdade, 30 segundos depois, o eléctrico chegou.

Depois de fintar um pequeno corredor pejado de estrangeiros e de gente estranha à sua maneira, ele chega à ponta do eléctrico. É um eléctrico antigo, feito de madeira, de dimensões reduzidas. O condutor parece apressado, visto que acelera a fundo assim que entra o último passageiro. Parece que o veículo se vai desfazer, e as pessoas mais velhas, sentadas, abanam a cabeça em direcção ao homem do leme em sinal de reprovação. Johannes viaja, naturalmente, em pé, mas à janela, escancarada. É tão fina a fronteira entre o dentro e o fora, apenas dois dedos de espessura de madeira. E a parede é mais janela do que outra coisa - à altura da cintura - bastando um pequeno empurrão oportuno para aterrar na estrada. Enquanto Johannes pensa despreocupadamente nisto, é interpelado por um casal de estrangeiros de meia idade (não consegue perceber de onde vêm, mas falam um inglês perfeito):

- Excuse me!
- Yes?
- Could you please tell us how to go to "Jerownimux"?
- Sure! See this line on the map over here? It's the road where you are now. You wait in this ..."train"?... until Belém, or even better, until Centro cultural de Belém. I'll warn you when you have to get down, don't worry. Then you'll see Jerónimos right in front of you.
- Hey, tank you, pall!
- It's ok!
Johannes voltou ao torpor, embora não se possa dizer que o eléctrico o embalasse. Na verdade, o condutor acelerava como se não houvesse amanhã, e travava a fundo em todas as paragens, como se estivesse a testar os travões. Mas não ficou sozinho por muito tempo.

- I'm sorry pall, do you have a lighter?
O casal tinha acabado de enrolar um charro do tamanho de uma caneta bic. Johannes nem nunca tinha visto ao vivo mortalhas tão grandes.
- Hmm... let me see.
Fingiu procurar atentamente nos bolsos. Fingiu, porque sabia que nada trazia nos bolsos dos calções de ganga, a não ser um isqueiro Clipper. Na verdade, Johannes nem bilhete tinha para o eléctrico. Antes de o dar, disse ao casal:
- See this lighter? You can do this with it (desmontou a roldana que faz atrito na pedra para produzir faísca, que vem com um pequeno pauzinho agarrado)!
- And what the hell is that for? - perguntou o rapaz, admirado.
- Well, you may find it usefull to make that joint, see? (e calcou com o pauzinho a ponta do charro que o casal estava a fazer).
- Oh, that is sooo cool! May i have it? - diz a rapariga.
- Well, you really shouldn't smoke inside the train ... but if you share that with me you may keep the lighter! - Johannes ri-se como se estivesse a gozar, mas na verdade estava a falar a sério.
- How rude of you, Arek! He was so nice with you!
O rapaz ri-se e aceita bem a proposta. Acende o charro.
- I thought portuguese people didn't like it!
- Are you planning to get high and then watch mosteiro dos jerónimos? Never done that! Might be cool!

A viagem continua, e curiosamente o eléctrico parece prosseguir cada vez mais devagar. Talvez o condutor tenha entrado no espírito dos três viajantes do fundo... ou então apenas lhes parecia dessa forma. Passados alguns minutos, ainda o charro ia a meio, e depois de alguma conversa em inglês, banalíssima para os restantes passageiros, mas que parecia carregada de profundidade universal para Johannes, este julga sentir o cheiro das oliveiras do jardim dos jerónimos.
- You have to get down in the next stop!
- Tank you pall! And tanks for the lighter.
- You're welcome! Enjoy! Bye! Have fun!
O eléctrico está agora meio vazio, e isso permitiu-lhe sentar-se à janela, que lhe dá agora quase pelo nível do cotovelo. Põe o braço de fora e recosta-se confortavelmente no banco.
Johannes sentiu-se como se estivesse no comboio das praias da caparica. E então deixou-se embalar pelas irregularidades de percurso. Observava com demasiado interesse os edifícios, as luzes dos candeeiros; saboreava longamente os cheiros trazidos por aquele vento de verão que teimava em não arrefecer; perscrutava demoradamente as caras dos passageiros, que se perguntavam porque é que ele os olhava, antes de desviarem os olhares; pensava todos os estímulos visuais, auditivos, olfactivos, e delineava teorias, como se tudo estivesse ligado por uma ordem ditada superiormente, como se tudo fizesse sentido. E então lembrou-se outra vez dela.

Fechou os olhos. Com as pontas dos dedos desenha-lhe o rosto a traços leves, as feições, as sobrancelhas, os lábios, o sinal por baixo do lábio e descaído para a esquerda que já tão bem conhecia. Penteia-lhe o cabelo com os dedos entreabertos, desde a raíz até ao pólen, enquanto a puxa para si com a outra mão, pelas presilhas das calças de ganga. Sente-lhe o perfume irresistível por baixo da orelha, e fecha os olhos com mais força. Sente-se agora em comunhão com as forças do universo.
Enquanto as carícias imaginárias se sucedem, Johannes recorda mentalmente o seu sorriso, que só aparece de quando em vez, mas que ilumina qualquer coisa dentro de si e lhe dá uma vontade inexplicável de sorrir também. E tudo sobre ela continua a encaixar e a formar um puzzle enorme, com cada vez mais peças, mas cada uma que vem encaixa ainda melhor nas precedentes.
Não é preciso Johannes pedir-lhe um beijo, porque ela lho dá quando ele mais o deseja, sem ele lho dizer. E ele sabe que ela o quer tanto como ele. Não são necessárias palavras; basta que ela passe a mão pela sua cara e olhe para ele como Johannes recorda para que ele se sinta especial para ela. E recorda. E reconstrói. E reinventa...
"Gosto tanto tanto de ti!"
"Gostas gostas..."
"Pois gosto!"
"Então, que é que eu disse?".
Abraçou-a, tem-na agora perto de si, e o eléctrico vai em frente mais depressa, enquanto apita com aqueles barulhos musicais que só os eléctricos têm, que são parecidos com o toque dos telefones antigos. Sempre em frente. Johannes poderia sair em qualquer paragem, mas quer ir até onde o eléctrico o levar; continua de olhos fechados, não quer saber onde está nem para onde vai. Apenas desenha repetidamente as feições dela enquanto se afoga no seu perfume.
*

- Algés! Última paragem!

Não sabemos de onde veio Johannes. Nem ele sabia que ia apanhar aquele eléctrico. Mas sabia que não podia tê-lo perdido.

15 de agosto de 2006

Zen - Didjeridú


- Istá ele!
- Então puto? Tasse bem?
- Epá... ya. Baza ao café?
- Ya, baza.
- Que é que tens feito?
- Nada de especial. Não se faz nada de jeito, ninguém cá está. Isto parece um deserto, nem há pessoal na rua de quem possa dizer ou pensar mal. E tu?
- Epá... vim ontem de Azeitão.
- Azeitão? O que é que foste lá fazer?
- Fui ter com uma amiga.
- Amiga... atão, e quando é que foste?
- Fui anteontem de manhãzinha, voltei ontem à noitinha.
- Ah, então dormiste lá...
- Hã?
- Ficaste lá em casa dela.. ?!
- Pois, havia essa ideia, mas eu não sabia bem como ia ser. Mas aquelas praias são mesmo boas, acabei por ficar de um dia para o outro.
- As praias... pois. Não chegaste a falar muito nessa tua amiga, pois não?
- Hã?
- Quem é ela, porra!? Tás aí todo abananado! Ó caraças do miúdo, tenho que repetir sempre tudo?
- Epá, desculpa lá, mas é que tou Zen...
- Zen?!
- Epá, apanhei muito sol e tou um bocado queimado... e também tou um bocado cansado porque foi muita praia e depois também dormi pouco, tive que acordar às 6 anteontem para apanhar o autocarro e...
- Autocarro?! Tu foste de autocarro para Azeitão?
- Epá, fui... que é que tem? Ias ficar admirado. Demorei menos tempo a chegar lá do que se fosse de Queijas para a minha faculdade. Tá bem que é Agosto, mas não deixa de ser impressionante. Ainda é um esticãozinho...
- Tens razão, tou admirado. Tou admirado como é que te deu a ideia de ir de autocarro para tão longe. Ainda hás de me explicar isso como deve ser, se fosse eu a estar em Azeitão de certeza que não ias lá ter! E não me venhas dizer que foi por causa dos brancos areais da Arrábida!
- Epá... é que a minha amiga é fixe.
- Ah! Assim tá bem! É uma compincha! Aposto que passaram a noite inteira a jogar Uno!
- Não... eu sei o que queres dizer... mas estás enganado, não é nada do que pensas.
- Ó João... tás-te a esquecer que eu te conheço desde que nasceste?
- E eu conheço-te a ti! E então?
- Tás-me a dizer que vais de autocarro para Azeitão, dormiste lá, tu és um rapaz, ela é uma rapariga, conhece-la há pouco tempo porque eu acho que só ouvi falar nela umas duas vezes...
- Eu só dormi lá porque ela estava sozinha, o resto da família estava fora e então ela pôde-me convidar para aproveitar o dia a seguir de praia.
- Sozinha?! Ainda por cima sozinha? Ouve lá, tu és estúpido?
- Acredita em mim... estivemos lá a fazer companhia um ao outro, até jantámos lá umas cenas que eu fiz, foi muito porreiro. E estivemos muito tempo na praia que é fenomenal... chegámos a ir a Setúbal a um bar à noite, ver um amigo dela a tocar Didgeridú.
- Did... quê?
- Aqueles troncos escavados que se sopra por um bucal e faz um som todo marado uuuuóóóóóóiiiéééummmm Prrreeuu!, aquele daquela música dos Blasted...
- Ah ya...
- O gajo constrói aquelas cenas... fica muito bacano. Vai buscar os troncos à serra da arrábida, escava aquela cena, pinta-lhes umas cenas, uns lagartos... E o ambiente tava muito boa onda, basta sair de Lisboa que o ar fica diferente. Epá, aquilo é que é qualidade de vida.
- Não te desvies da conversa. Ainda por cima se foste a um bar... à noite... em Setúbal... calculo que tenhas levado pelo menos uma muda de roupa. Portanto ias preparado para o que pudesse acontecer.
- Pronto, tá bem... pá... eu fui lá porque estava naquela de a conhecer melhor. Conhecia pouco, mas gostei bastante do que conhecia... e como ia de férias depois disso, achei que era a melhor altura para ir.
- E então?
- E então que agora conheço um bocadinho mais, e gosto ainda mais, e esse é que é o problema.
- Problema porquê? Tá bem que ainda é um bocadinho longe...
- Hmm sim, e sabes o que eu penso dessas cenas. Mas por acaso não era a isso que me estava a referir. Neste caso eu até estava disposto... temos sempre a tendência de sobrevalorizar o que está perto, porque parece maior. Mas nem sempre é assim. Estava pronto para fazer disto uma excepção... porque...
- Porque ela é excepcional.
- Parece-me que sim.
- Então... qual é o atrofio?
- Epá... não correu como eu idealizei. Eu achei que a gente se estava a dar muito bem, e resolvi ver até que ponto era verdade e fui lá passar dois dias com a miúda. Só que depois cheguei lá e bloqueei,não consegui falar quase nada, era só a miúda que se desunhava, e eu ali, quietinho e calado, a admirar.
- Ehehehe granda grização... nem parece teu! Costumas ser todo bazófias e gozar com tudo...
- Pois... a cena é que fiquei caladinho e quanto mais conhecia dela, menos me conseguia dar a conhecer. E não sei até que ponto é que isso terá sido ou não determinante...
- Determinante para quê?
- Epá... eu acho que não lhe agradei.
- Mas tu és parvo? Ouve uma coisa: tu não agradas só pelo que pareces ou pelo que grunhes ou pelo que fazes. É questão de química. Ou sim ou sopas. Infelizmente não há muito que possas fazer para mudar essa realidade binária, por isso acho que não deves estar a tentar arranjar responsabilidades tuas.
- Tá bem, mas mesmo assim ... é que tu não estás bem a ver. Para quem esteve só umas poucas vezes junto, até ficámos bem próximos. Eu não cozinho para todas as raparigas que conheço! Pode até sair uma grande merda, mas... é a minha merda. Acho que é especial fazê-lo. E muitos abracinhos e festinhas... um gajo fica abananado. E depois é este cheiro a protector solar misturado com perfume que não me sai do nariz... é tão bom que é quase intoxicante!
- Bem me pareceu que não tinhas só ido lá só porque te deu um grande vaipe. Tavas-te a meter todo na casca porquê? Já não tás em Azeitão!
- Pá... ainda não pensei bem sobre isto tudo. E por isso custa-me estar a falar sobre uma coisa que ainda nem racionalizei... limito-me a senti-la, estás a perceber? E é uma cena que começou por ser interessante, depois agradável... depois Zen... e depois começou a ser um bocado inquietante e menos agradável, um bocado angustiante!
- Ehehe tu e o Zen...
- Pois! Para mim Zen é um cheiro maravilhoso a perfume e protector solar misturado com o cheiro natural de uma moça fixe, estar deitado na areia ao sol, abraçado a ela e virado para ela, enquanto me mexe no cabelo e fala baixinho comigo, com uma voz que provoca diabetes, e com o nariz dela a meio centímetro do meu. Mas, claro, não lho disse. Só disse que estava Zen. Mas perguntei o que é que ela achava que era Zen.
- Moça fixe... humm... tu e o fixe. Acho que não é bem fixe a palavra que define essa situação. Mas isso aconteceu? E que é que ela disse que era Zen?
- Aconteceu. Até por mais do que uma vez e por longos de tempo. Foi muito, muito bom... Ela disse que para ela Zen era estar numa banheira com água quentinha e sais ou espuma, já não me lembro bem... eu até disse que ela podia pôr umas pétalas de rosa, mas ela disse que nem era preciso. Enfim...
- Se calhar estava a pensar no banho, mas com companhia...!
- Ahmm... não, não estava. E fiquei naquela: perdi uma boa oportunidade de tar caladinho, visto que ela não achava aquela situação presente como originadora de um estado Zen. O meu Zen não era o Zen dela.
- Ela não te disse isso. Tu é que achaste.
- E o que eu acho não tem tanta ou mais importância do que aquilo que é dito?
- Não tinhas dito que tinha sido muito, muito bom? Qual é o problema?
- O problema é que o que aconteceu, de facto, foi muito bom. E eu até nem me importava que continuasse assim. Não fiques com ideia que eu tou com pressa de alguma coisa, não é isso. Mas tenho que ter uma boa dose de certeza que estamos mais ou menos na mesma onda. E eu acho que eu estou no pico da serra da arrábida e ela está cá em baixo na praia, percebes?
- Não.
- Alguma coisa me diz, o meu instinto é...
- Ela esteve abraçada a ti, não esteve?
- Ya.
- Esteve mais próxima de ti do que o socialmente aceitável, não foi o que disseste?
- Sim, muito mais do que o socialmente aceitável.
- Convidou-te para lá dormires, não convidou?
- Sim, mas foi porque dava jeito!
- Oh pá, então eu acho que há qualquer coisa, pá... tás aí mas é a engonhar, e cá para mim acho que foste foi um granda menino que andou para lá a anhar e a dizer tou zen, tou zen... e depois não se orientou! Sabes o que tu és? És um granda anhado! Não deste andamento à cena!
- Epá... eu só gostava era que tu sentisses o que eu senti e não estavas aí a dizer isso. Sabes que o que é mais difícil para mim de lidar... é quando eu vejo que não há nada que eu faça que seja capaz de marcar a pessoa; e ao mesmo tempo, vejo que há montes de coisas nessa mesma pessoa que me agradam, e que ela nem precisa de se esforçar para me marcar a mim.
- Epá, eu já tou um bocado farto dessa conversa do "fico desinteressante quando tou interessado". Para mim continuas a ser um menino porque não tentaste, não te desbroncaste. Pregavas-lhe era um beijo!
- Não senti que fosse isso que ela estava à espera. Apesar de toda a situação, de todo o contexto, da proximidade... não sei explicar. Até posso estar enganado, mas não me arrependo de não ter tentado. O que me faz confusão e me deixa triste é mesmo pensar como é possível estar tão próximo de uma pessoa, próximo demais, segundo os meus padrões, e ter uma impressão doida que a outra pessoa acha aquilo perfeitamente normal, que é só coisa de pura amizade.
- Tu já não és um miúdo pequeno, e devias saber que as mulheres às vezes são assim. Querem atenção, gostam do carinho, até fazem coisas para chamar a atenção, inconscientemente, do rapaz, mesmo que não queiram nada mais com ele.
- Ouve lá, e eu também gosto de atenção e carinho... mas só me meto em algumas situações se for bastante mais do que isso!
- Mas as pessoas são diferentes...
- Houve uma altura, quando me deitei de sábado para domingo, depois de irmos ao tal bar, que estava um bocado irritado e susceptível, e ela até notou isso, mas eu fingi que não, que era para não estar ali a ter que desbroncar-me todo. Ia lá o tal bacano do didgeridú a casa. Se eu dissesse alguma coisa, é como os fios dos collants, se tu puxas nunca mais acaba, e naquela situação ainda dormia era na rua ehehehe!
- Ou então acabavas aos beijos com ela, não sabes!
- Epá cala-te lá, parece que não ouviste nada do que eu disse.
- Sim, continua... estavas irritado?
- Epá, estava, porque me estava a sentir um bocado torturado com aquela situação. Por um lado, imensos carinhos, bons, óptimos, e eu todo derretido com aquilo tudo. Por outro, via-a quase imperturbável, não havia um único sinal de hesitação, de nervosismo, enfim, até às vezes parecia que eu não estava lá!
- Não te esqueças que ela estava a jogar em casa.
- Epá... não jogou em casa porque não jogou, nem defendeu, nem atacou, nem nada! Nada que eu percebesse como inequívoco de uma posição. Não foi carne nem peixe.
- Foi marisco! Mas pelos vistos tava verde, não é?
- Eheheheh!!...
- Mas continua!
- E então, fui-me deitar. E pensei comigo: "se neste momento fosse de manhã, acho que me ia embora a pé e depois falava com ela, já não aguento mais, isto é de pôr um gajo com a cabeça a andar à roda!... mas vou agora descansar... durmo bem, amanhã de manhã logo vejo se ainda penso assim...".
- E acordaste...
- Acordei, bué cedo, até nem parece meu! Acho que foi de começar a regularizar o sono, porque também tinha acordado mesmo cedo no dia anterior por causa do autocarro. Dormi no quarto dos pais dela, eu só queria um canto da sala para dormir, sabes como é, gajos rijos dormem até no chão... mas ela quis meter lençóis todos bonitos e que eu dormisse ali, enfim...
- Granda menino, ias era ao quarto dela durante a noite!
- ... continuando: liguei a tv, meti-me a ver os Simpsons na Fox, depois fui à cozinha comer qualquer coisa, vim fora de casa, dei uma volta, voltei à cama e vi mais dois episódios dos Simpsons, até que finalmente ela acorda. Achei por bem não me ir embora sem me despedir... de manhã eu ainda estava um bocado chateado comigo mesmo por não conseguir ser imune a estas cenas. Mas estava menos. Se estivesse igual tinha mesmo ido embora a pé até à paragem das camionetas... e eu nem sabia o horário, mas não interessava. Havia de passar uma casal boss e um velhote, e dava-me boleia ou assim.
- Mas ela acordou...
- Pois, aí é que está! Acordou e veio com umas bermudazinhas (aqueles calçõezinhos mesmo à rapariga, bué curtinhos, acho que são bermudas, n sei) com o snoopy e um topzinho (era o pijama dela) e toda bronzeada e tal, deitou-se encostada ao meu lado, deu-me um beijo enorme na cara e disse que tinha estado a sonhar comigo.
- AHAHAHAHAHAH! Que grização!- Acredita... eu ali todo rijo, vou a pééé! e vou bazar daquiiii!!! E sou buéda mauuu! Em dez segundos, o meu sangue todo circulou 50 vezes pelo corpo e mudei de ideias. Claro que acabei por ir à praia e mais não sei quê e só bazei à noite de lá.
- Então... mas ficou tudo bem. Se ficaste lá, onde é que está a crise?
- A crise está, que continuei com a mesma sensação, apesar de isso ter acontecido de manhã. Por um lado mudei de ideias, mas por outro fiquei com aquela ideia que aquele momento serviu só para baralhar o meu raciocínio, chegou naquele momento em que eu estava a preparar-me para tomar uma atitude, mas desestabilizou-me... e no entanto a minha atitude se calhar teria mesmo sido a mais sensata.
- Epá, foi tormenta para mais um dia, mas também serviu para fortaleceres as tuas opiniões e para ficares com mais dados...
- E para ficar mais confuso. Confuso não, um bocado triste. O que eu queria era ser especial para ela, não queria mimos ou massagens ou...
- Massagens? Mas ela fez-te massagens?
- Fez, ela tem jeitinho... mete uns cremezinhos... e sabes que eu sou maluco por cheiros... fez-me umas depois daquilo dos Simpsons, tava eu estendido de barriga para baixo lá no tal quarto.
- E não te achas especial?
- Ao que parece, ela faz isso aos amigos de quem gosta. Também fez ao bacano do Didgeridú, que veio connosco à praia várias vezes.
- Como é esse gajo?
- Epá... é um gajo à maneira. Engraçado, simples, deixa o pessoal à vontade... não há nada a apontar! E tu sabes como eu só digo mal do pessoal. Se fosse um tótó ou um gajo com a mania que é cromo eu dizia-te logo.
- Pois, eu sei. Custa a crer. Gajas demasiado giras e demasiado queridas, normalmente atraem gajos demasiado cromos. Aliás, dá para ver por ti.
- Ah que fixe!! Que piada de merda... epá, só queria que visses como é que ela me apareceu à frente quando foi para me ir buscar, quando eu cheguei de lisboa... ah e tal, tive pouco tempo, saí à pressa de casa, desculpa tar atrasada e quê... mas: toda penteadinha, ganchinhos todos giros, altos brincos, perfume bué bom, toda top com decote giro, toda minissaia a arrebentar com o pessoal todo das redondezas que parecia que tinha caído ali uma granada, e umas sandálias que a faziam mais alta que eu. Se de cada vez que eu saio de casa assarapantado mandasse uma pausa assim...
- Pois, puto... não sei que te dizer... já sabes que cenas de gajas são sempre uma granda merda.
- Como eu tava a dizer há bocado, o que eu queria era ser especial para ela. Os mimos são muito bons, mas não significam o mesmo se tu te convences que ela não está a sentir o que tu sentes quando lhe fazes os mesmos mimos.
- Isso tu não sabes, há pessoas mais explícitas que outras. Mas não é isso que me faz confusão nessa história toda. As pessoas vivenciam essas situações de maneiras diferentes, ela se calhar é fechada como uma ostra, enquanto tu dás mais nas vistas do que um fogo de artifício. E eu sei como tu és e tou mesmo a imaginar tu todo derretido com cara de "se morresse agora morria feliz". O que me faz confusão é que ela devia-te ter topado essa onda e agido um bocado mais em conformidade, para o bem ou para o mal. A cena é que elas muitas vezes não agem para não perder a atenção e o carinho, mas... até isso tem limites. Normalmente nenhuma gaja gosta de ter um gajo agarrado a ela tipo lapa se estiver farta de saber que ele gosta dela. Eu também não gosto cá de muitos abraços e muitas mãos dadas com gajas se souber que o que elas vêem em mim não é bem um amigo.
- Pois... sabes que ela já se queixou de alguns rapazes, que eram muito amiguinhos... e que depois se puseram com coisas porque gostavam dela, e depois afastaram-se e não sei quê, numa atitude muito trágica... eu percebo bem como é que passaram a gostar dela, e também percebo que deva ser um bocado mau para ela. Por isso disse-lhe que não ia ter problemas comigo.
- Mas...?
- Não há mas! Uma pessoa habitua-se à ideia, que remédio! Tenciono honrar o prometido. Quando lhe disse isso já estava a tentar ser especial para ela, mas o facto de estar a tentar seduzi-la não significa que tenha mentido.
- Essa merda do "eu quero ser especial"... tu és é um creep, um weirdo! E não pertences aqui! ehehehe!
- Tás com umas graçolas... que deus ma pardoe... por acaso fui a ouvir isso no autocarro durante o regresso!
- Eixx que lindo! Que melodramático! Tou a ver o filme! Tu, no autocarro, no escurinho, a passar a ponte, com as luzes de lisboa do outro lado, sem ninguém no autocarro, a ouvir essas músicas. Ahahahaha! E a Black, dos Pearl Jam? Ahahaha!"I know someday you'll have a beautiful life, in know you'll be a star / In somebody else's sky, but why, why why can't it be mine?" tururu tu tururuuuu... ai, que grização...
- Por acaso ouvi!
- Bem me tinha parecido... então e como foi a despedida?
- Epá, foram fixes... ficaram comigo na paragem à espera do autocarro, ela e o gajo do didjeridú. Ainda foram uns 20 minutos... mas eu estive sentado no banco ao lado dela, a receber umas festinhas na nuca!Depois o autocarro veio de repente, não deu para grandes despedidas, foi tudo muito atabalhoado, dei-lhe um beijo ao mesmo tempo que ela a mim, uma coisa assim muito esquisita que quase não era na cara... se calhar a culpa foi minha por causa do desespero, ou então foi dela... ou então isto sou eu a querer que a realidade se adeque ao que eu idealizo. Só sei que foi mais uma cena para aumentar a confusão!
- Foste menino! Arriscavas! Depois bazavas, de qualquer maneira! O que é que podia correr mal? O que ainda podia acontecer era teres que mandar o homem do autocarro embora!
- Só me lembrei disso depois... mas não sei se teria tido lata para o fazer.
- Lá está! És um granda tótó! Olha puto, mas a sério, tu é que sabes, tu é que estiveste na situação, e se achas que alguma coisa não encaixava... é porque se calhar era verdade. As coisas são como são, as pessoas são como são, e só acontece o que tem de acontecer. Se não aconteceu... é porque um de vocês ou os dois não queriam assim tanto. E se ela estivesse a sentir o mesmo que tu, haveria de arranjar maneira de o mostrar sem margem para dúvidas. Mesmo as pessoas tímidas e que se reprimem ao máximo, chega uma altura em que se descaem... nem que seja só por um momento, uma coisa que se diz, ou se faz, sem querer... e parece-me que não foi esse o caso, pois não? Senão tu tinhas notado. Mesmo estando caidinho como estás, e nota-se a léguas... tu até és um gajo observador, e não ias deixar isso em claro.
- Mais uma vez te digo: não é que tivesse de acontecer alguma coisa. Não era preciso nada... mas gostava de ter ficado com a sensação que não era só eu a sentir-me esquisito e nervoso no bom sentido.
- Bem... então vê isso como se fosse uma virose. Não eras tu que estavas com uma amigdalite? É a mesma cena... se tudo correr bem daqui a uns dias passa! E aí vais poder honrar a tua "promessa".
- Ya, é capaz de ser melhor assim.
- Puto! Vou pa casa. Tá a ficar fresco.
- Ok jovem, até logo! E não te esqueças que não tenho net, se não me vires no msn não te admires!
*
In "Excertos de Conversa do STP com o Acre" :)