31 de outubro de 2007

Colisões


Como chocolate tal como os meus dentes me permitem. Fecho o maxilar só até metade e, mal os dentes tocam no meio quadradinho que pus na boca, parece que desisto, e torno a abri-lo. Depois insisto repetidamente, devagar, como se fossem ondas pequeninas que batem num pontão, devagar, devagar. Entretanto, vou destruindo os bocadinhos que se desprendem, empurrando-os com a ponta da língua contra o céu da boca. Estes actos demoram eternidades; e tudo isto tem o sentido de breves segundos de sabor doce.

Quando como chocolate, dá-me para pensar em coisas profundas que, como profundas que são, não têm qualquer interesse prático. São apenas sínteses de sínteses já feitas por toda a gente no mundo, e que de tão escoadas e escorridas e decantadas, tomam a forma de provérbios ou frases feitas. Faz-me lembrar aquelas essências de frutas dos iorgurtes ou dos gelados, que de tão essenciais que são, não trazem os complementos, os acessórios, enfim, tudo aquilo que dá contexto e propósito de existência, e que à primeira vista não tem qualquer relação.

Estive a pensar nos átomos, tão pequeninos, e na forma como se relacionam uns com os outros. Andam na sua vidinha atarefada de cirandar de um lado para o outro, velozes relativamente ao seu tamanho. Uns são maiores que outros, e uns movem-se mais devagar que outros. Alguns têm muita energia e uma enorme vontade de interagir, outros são praticamente inertes. E depois chocam uns com os outros do nada. Apenas porque o tempo e o espaço coincidem, ou então porque Deus quis; permito que escolham a concepção que mais vos aprouver. Chocam, e depois normalmente vão cada um para seu lado. Ou então têm a energia, velocidade, trajectória e reactividade certas, e estabelecem uma ligação mais ou menos forte, mais ou menos estável, mais ou menos duradoura. Até que venha um outro átomo mais afoito que choque contra essa irmandade e teste a sua segurança. Pode até dar-se o caso de haver uma substituição de um átomo por outro. Ou talvez não. Mas haverá sempre mais e mais choques, até porque os átomos são muitos e vivem para sempre.

Na vida humana macroscópica, entre tantos e tantos milhões de pessoas que existem, também há choques, uniões e rupturas. E eu até dava muita importância ao facto de achar que havia factores específicos que determinavam quais os encontros que podiam haver entre as pessoas. Acho que agora penso que são tantas as variáveis, e as pessoas andam tão depressa e em raios de movimento tão grandes, que fui obrigado a concordar que o acaso tem uma grande palavra a dizer. Uma assim com muitas letras, bem profunda. Talvez esses factores sejam então importantes para definir qual o outcome dessas colisões. Ou então nem isso.
No caso dos átomos, muito depende da energia, da trajectória, mas essencialmente, de "quem" são esses átomos. E no caso das pessoas não é assim? A diferença está talvez no tempo. Os átomos chocam, e passado pequeníssimas fracções de segundo ficamos a saber se se ligam ou não. Na verdade, uma análise à tabela periódica pode ajudar a saber com antecedência se eles realmente casam ou não. No caso das pessoas, só se lermos as revistas é que sabemos se nas novelas elas casam ou se separam, e se os encontros são produtivos ou não. Não acredito nos signos, nos horóscopos, nas pessoas que predizem o futuro. Não acredito nas poções de amor, que dobram as leis da física, de Deus, da sociologia ou sei lá mais o quê, a nosso favor. Também não há tabela periódica que nos ajude, porque só há perto de duas centenas de átomos diferentes, mas no caso das pessoas nem vale a pena pensar em classificações.
Se juntarmos uns átomozinhos de Oxigénio com uns de Hidrogénio e aproximarmos uma faísca, sabemos de certeza que o resultado é água. No caso dos humanos, talvez prever situação semelhante só seja possível no caso de eliminarmos alguns graus de liberdade, como o caso de juntarmos algumas pessoas numa casa durante muito tempo, até que algumas delas se liguem, a la Big Brother, com faísca ou sem faísca metida ao barulho. Talvez porque não tenham outra escolha. As pessoas conseguem ser ao mesmo tempo imprevisíveis, e todas iguais.

Nos últimos tempos, cheguei a uma conclusão que considero surpreendente, dada a minha personalidade tendencialmente vocacionada para a ciência. Não tenho convicção religiosa, nem acredito no destino... mas às vezes parece que há coisas que acontecem, que não estão directamente relacionadas com nada, mas que se pensar bem, até consigo perceber que me podem ajudar a tomar decisões em relação às minhas "colisões". Como se fossem indícios que empurrassem gentilmente, docemente, a minha trajectória, para que não vá colidir com alguém, ou para que vá colidir com outra pessoa. Claro que esses indícios só o são se a minha interpretação fortemente imaginativa assim o decidir. Mas ainda assim, creio que que ela faz parte de Deus - do Meu Deus.

Nas minhas colisões por esse mundo fora, aprendi a dar tanta importância aos pormenores do que à essência. É importante não estreitar a visão apenas para o que está à minha frente. Se o fizer, poderei transformar-me num cavalo, com 3 ou 4 pessoas em cima de mim, e olhar apenas para uma cenoura pendurada no extremo da linha de uma cana de pesca. E também acho que a variável tempo, nessas colisões, está muito sobrevalorizada. Já percebi que a energia das uniões não é directamente proporcional ao tempo decorrido, e, em boa verdade, não tenho paciência para esperar. É preciso estar também atento à faísca. Talvez ela não seja só um pormenor.
*

Vou comendo mais chocolate, esquecendo-me do quão precários estão os meus dentes. Os movimentos vão-se tornando mais amplos, mais fortes, e as colisões mais violentas, e sinto uma enorme vontade de ser bruto para obter um sabor mais intenso, mais enérgico, instantâneo. Pena que dure pouco tempo e acabe por doer bastante.

24 de outubro de 2007

Oferece-me um Presente!


Cada dia se apresenta à meia noite escondido num belo papel de embrulho, cheio de bonequinhos, promessas e potencialidades.

Quando eu era mais novinho sentia-me mal a rasgar o papel das prendas; acho que era porque pensava que se o fizesse estaria a mostrar à pessoa que me ofereceu a prenda que não ligava muito ao gesto; ou então era mesmo porque tinha pena do papel. Os outros miúdos rasgavam as prendas, eu retirava-as dos embrulhos.

Cada dia demora em média 18 horas a desembrulhar e viver. O período de sono REM aproveito-o para sonhar, que é como quem diz, imaginar o que o dia a seguir - que é uma dádiva - me trará. É como um agitar do presente ainda encarcerado, encostado à cabeça, para tentar ouvir o que está lá dentro. Imagino o que as pessoas me dirão, ou então reescrevo os diálogos e as cenas do enredo do dia seguinte para que me sejam mais agradáveis. Mais favoráveis. Memoráveis. É meter dentro do embrulho, com a imaginação, aquilo que queria que o futuro me oferecesse, sem rasgar o papel. Às vezes sonho com presentes que ainda estão muito no futuro, mas que ainda não chegou o dia deles. Às vezes isso não é bom, porque quando chegam raramente podem competir com o sonho.
E também às vezes sonho com presentes que já lá vão há muito. Gostava de poder dizer que é muito melhor quando isso acontece. Apetece dizer que é como vasculhar no caixote do lixo, onde está o papel todo rasgado, à procura do presente que perdi para sempre para o passado.

O sono não REM, esse, passo-o a recuperar do dia que passou. Do presente que abri e que, regra geral, não me satisfez completamente. Muito, pouco, ou nada? Nunca tudo. Também era complicado agradar-me, confesso. Por um lado, desculpa que te diga, Futuro, mas que belas prendas me têm saído! Já vi melhores dias! E por outro é difícil apreciá-los com todo este papel rasgado a prender-me os pés - estes bocadinhos de desilusão que escondiam uma ilusão qualquer. Mesmo assim agradeço-te que continues a tentar.
O Futuro que me desculpe se eu rasgo o papel de embrulho. É que cresci um bocado entretanto.

O presente do amanhã eclodirá como um ovo de tartaruga, e depois caminhará instintivamente até se extinguir num segundo abraço dos ponteiros do relógio. Mas nunca na mesma praia, e nem a horas certas: às vezes é às 7, outras às 9, outras à hora do almoço, seja lá o que isso for. Daqui se percebe que às vezes demoro muito a abrir o papel de embrulho - não que o tempo do desembrulho seja proporcional ao tamanho do embrulho - e depois restam-me poucas horas para sonhar com o próximo, que não se vai fazer esperar.

Todo eu estou coberto de bocados de fita-cola, e os meus passos têm o som de cascas de ovos partidas.

1 de outubro de 2007

Killing Me Softly - parte 2

Não há ses
"O passado é o que foi, com comos, quandos e porquês. Os ses são no presente, com vista ao futuro."
Já sei que me vais dizer que o bom bagaço é difícil de encontrar, e que as ginjas garrafais só estão à venda durante aquela meia dúzia de dias, naquela semana específica, naquele sítio certo. Mas hoje quis conversar um pouco contigo e celebrar o teu aniversário. Então, subi para cima da cadeira da sala, para chegar ao cimo do móvel e alcançar aquele enorme frasco que contém habitualmente a ginjinha caseira. Já só há meia dúzia de ginjas no fundo… líquido, nem vê-lo. Há uns anos, dir-te-ia que é preciso fazer mais, quando o garrafão chegasse a um terço do fim. E tu vinhas-me com a tal conversa da dificuldade de comprar bom bagaço, e de como as ginjas garrafais só aparecem no mercado como as flores no deserto.
Mas a culpa é toda tua. Durante anos a fio te ouvi a gabar a ginja feita em nossa casa. Dizias que é mais forte, não demasiado doce, e que era muito melhor se fosse bebida gelada. Falava-se também de como o tio x ou o amigo y tinham bebido um cálice de um trago só, contra todas as advertências, como animais de taberna donos de uma rodagem de experiência feita, e que tinham ido a cambalear para casa.

Toda esta história terá, porventura, começado em Alpiarça. Lembro-me daquelas embalagens de plástico translúcido, maleáveis, que se podiam amarrotar e dobrar, mas que podiam conter não sei quantos litros de vinho ou bagaço. E nós íamos a Alpiarça comprar vinho e aguardente, e comer sopa da pedra. E eu ficava muito confuso porque não conseguia perceber como é que se comia uma pedra. E com colher, ainda por cima. Diziam-me que se pegasse numa pedra da rua, polida, e a lavasse muito bem, podia fazer uma sopa deliciosa com ela.
Dessa vez, fomos nós cá de casa, e mais não sei quantos tios e primos. E entre os tais vinhos que trouxeram, lembro-me muito bem de um vinho abafado, de uma cor entre o dourado e o castanho, que era muito doce. Sei que fiquei para trás, e quando vieste à minha procura eu estava a escarafunchar com os dedos e com a boca na torneira de uma pipa de vinho abafado, e aquilo estava-me a saber que nem ginjas. Pegaste-me em peso e tiraste-me muito depressa dali – “é maluco o gajo! apanhas uma piela!”. Eu não sabia o que era ficar bêbado.
Quando chegámos a casa, fiquei maravilhado com a forma como chupavas o vinho por uma espécie de palhinha muito comprida, mergulhada na tal embalagem de plástico que estava no chão, e depois punhas muito depressa essa ponta por onde chupaste nos gargalos das garrafas, em cima do balcão da cozinha. Era assim que engarrafavas o vinho. Na altura eu não tinha quaisquer conhecimentos de Física, mas sabia irracionalmente que as coisas só sobem se as atirarmos, portanto não percebia como é que o vinho conseguia subir para as garrafas sozinho. Mais tarde julguei que tinha descoberto mais uma pista para o enigma, quando percebi que em todos os aniversários, quando se faziam brindes, alguém dizia “Vai acima! Vai abaixo!” com os copos de vinho na mão, ou quando se dizia de alguém que “O vinho subiu-lhe à cabeça”. Entretanto, na primária, aprendi que o Guadiana e o Mira eram dos poucos rios que iam de Sul para Norte, e porque quando somos pequeninos achamos que o Norte fica mais alto do que o Sul, fazia-me sentido que o vinho pudesse subir do chão para a bancada da cozinha. Só muito mais tarde estudei as propriedades de capilaridade de certos líquidos, nas aulas do curso de bioquímica.

Mas é mesmo verdade que esta ginjinha não tem igual para mim. Lembro-me de uma vez ter levado alguma para Aljezur, nas férias do verão; e estávamos no fim de um jantar, eu, amigos, colegas, e outras pessoas que se quiseram juntar, ao ar livre, junto aos fogareiros que tinha estado a usar para grelhar toda a espécie de carnes. De resto, também foi a ver-te e a “ajudar-te”, desde pequeno, que fiquei com o gosto por fazer grelhados. E aprendi que só se põe sal na carne depois de estar meia grelhada, e que se mexe o menos possível com o garfo para não moer a carne ou o peixe. És muito perfeccionista nessas coisas, não és? E há já pelo menos doze anos que sou o encarregado por fazer grelhados para toda a gente no campismo.
Então, apareceram lá os pais de um grande amigo meu do Porto, que só vejo nas férias do verão, e naquele sítio específico. Sempre que me vêem, dão-me cerveja ou aguardente daquela amarelada dos barris de carvalho, de tal forma que venho sempre a cambalear da tenda deles. Portanto, saquei da minha garrafa de 33 cl de água do luso, cheia da nossa ginjinha. Muita gente se riu da pequenez da amostra, mas eu garanti que chegava bem. Portanto, os pais desse meu amigo, já velhos lobos-do-mar da bebida, ingeriram à confiança o conteúdo dos copinhos que lhes ofereci. Passado pouco tempo, foram eles a cambalear para a tenda.

Aljezur sempre teve destas coisas mágicas, que acontecem sem se perceber porquê. É um sítio estranho, igual a nenhum outro que conheça, e por mais anos de férias que lá passe há sempre coisas que me surpreendem. As pessoas falam de maneira diferente, contam histórias e comportam-se de maneira diferente. Eu sei que gostas de acampar, mas nunca acampaste lá comigo. No entanto, durante anos a fio, levavas-me lá de carro e voltavas logo de seguida, e depois no fim das férias ias lá buscar-me, tudo isto porque eu queria levar a minha bicicleta, e indo de autocarro isso era impossível. Não conheço outra pessoa que todos os anos faça duas vezes 600 km só para ir levar e buscar o filho para e do sítio onde ele acampa.

Agora sou eu a pessoa que mais conduz o teu carro. Antigamente conduzia o velhinho Renault 9, que subia montanhas em ponto-morto, que não tinha travões, que não tinha pneu sobressalente, que estava sempre com a luz da reserva acesa e com os pneus carecas. Mas nada disso me preocupava, porque sabia que se acontecesse alguma coisa, eu mandava-te um kolmi e tu me ligavas a perguntar o que se passava, e vinhas-me ajudar. Confesso que não percebo nada de seguros contra terceiros, de colisões, acidentes, acordos amigáveis entre acidentados, chamar a polícia ou não, falar com seguradoras… nunca tive nenhum acidente! E apesar de admitir que não saberia o que fazer se algum dia batesse com o carro, a verdade é que essa sensação de segurança não me abandonou, porque quando eu conduzo nem penso nessa possibilidade. Se algum dia bater, ligo-te e pronto. Mas esse dia ainda não chegou. A coisa mais próxima disso que me aconteceu foi num dia em que estava a conduzir numa estrada muito estreitinha, numa curva manhosa entre casas, e de repente o sol projectou-se através do pára-brisas, arranhado por dentro pelos anéis de uma suposta senhora que limpava o embaciado com as costas da mão, e que tinha sido a dona anterior do carro. E a difracção da luz do sol nos riscos do vidro encandeou-me completamente. Ou isso, ou então parou-me o cérebro; desta vez não foi culpa da ginja. A verdade é que embati com o lado direito do carro numa antiga coluna de pedra, colada a uma esquina de uma vivenda, ligeiramente disposta para dentro da estrada. Parti o eixo da direcção, rebentei um pneu, parti o farol, mas o pisca ainda funcionava. Ainda hoje me posso gabar de só ter batido contra uma pedra. As pedras não se mexem, é mais fácil acertar-lhes.
Claro que telefonei para ti, e vieste ajudar-me. Isto aconteceu em Julho de 2006, e a última viagem que o Renault fez foi dali daquela curva para casa. Mas só consegui mandá-lo para a sucata um ano depois.
*
Sempre que me dá uma daquelas brancas de não saber como se escreve determinada coisa, o meu primeiro impulso é perguntar-te. Não é ir ao dicionário, ou escrever essa palavra no Google para ver quantos resultados dá. Sempre fizeste força para que escrevesse bem as coisas, e de cada vez que te perguntava como se escrevia qualquer coisa, tu franzias o sobrolho e dizias: “Como é que achas tu que se escreve?”.
Essas brancas têm-me acontecido com mais frequência ultimamente, por isso tenho experimentado esse primeiro impulso irracional de te perguntar como se escreve. Até quando sonho isso acontece. Fico sempre com uma sensação esquisita. Tal como quando vou na estrada e um otário qualquer num carro à minha frente faz uma coisa idiota, e eu evito o acidente por sorte ou por reflexos, e depois penso no que faria da minha vida se batesse com o carro, e me lembro que agora sou eu que ando com o teu número de telemóvel porque me roubaram o meu e ainda não me apeteceu pedir segunda via.

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Uma das centenas de histórias que me contaste e repetiste inúmeras vezes, passou-se em Angola, quando andaste lá na guerra. Não falas muito nesses tempos. Descreveste-me o calor insuportavelmente abafado que te atingiu quando a porta do avião se abriu em Angola; contaste-me como lá é que valiam a pena as frutas tropicais, e que as mangas que comemos cá não valem nada – tu gostas muito de mangas; e as viagens intermináveis em carrinhas de caixa aberta, por entre carreiros mal abertos no mato, em que chegava a ficar a doer-te na testa, de a franja andar a bater tanto tempo com o vento. Contaste-me que houve um dia de viagem em que não pararam, e mesmo assim não chegou para percorrer na totalidade uma das propriedades de um homem muito rico lá de Angola; essa propriedade era três vezes maior do que Portugal.
Falaste de como apenas andavas armado com a tua máquina fotográfica, e foi provavelmente por isso que a população local e aqueles que Portugal considerava como inimigos te viram de maneira diferente. E talvez tenha sido por isso que um dia eles te avisaram para sair o mais depressa possível de uma vila onde estavas instalado, e então apanhaste o comboio e só mais tarde soubeste que meia hora depois essa vila foi arrasada e ninguém escapou com vida.
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Lembras-te daquela vez em que te fui ajudar a carregar o material de fotografia, para ires fazer um trabalho a Sintra? Recordo que, quando chegámos à casa, não me pareceu nada de especial vista por fora. Mas quando entrámos, pareceu-me um palácio ricamente decorado à antiga, com cortinas de veludo e talhas douradas e bibelots de porcelana. Falaste-me das pessoas para quem ias fazer o tal trabalho. Ias fotografar as jóias de uma senhora já de idade, que era uma importante desenhadora de jóias, com joalherias em Nova Yorque, e dona de minas de diamantes, algures pela África do Sul, se não me engano. De resto, essa senhora só falava inglês, e era de tratos muito finos e doces, muito educada, e gostei mesmo dela. Também lá estava o assistente ou secretário (?) dela, português, impecavelmente vestido com um fato, mas com uma cara e penteado de tal forma suspeito que me levou a perguntar-te: “Oh pai, mas é um homem ou uma mulher?”. E tu riste-te e disseste que era um homem. Mas foi muito correcto connosco, e tratou-nos muito atenciosamente; nada, para além da cara estranha e do penteado escorrido, nos faria desconfiar dele, e deixou-nos sozinhos numa das metades da casa, para fotografarmos umas jóias que, qualquer uma delas, isolada, valia mais do que o nosso quarteirão.
As fotografias eram para um catálogo de jóias, e ao que parece ficaram muito bem, de tal forma que a senhora só te queria a ti como fotógrafo cá em Portugal. Por várias e desconhecidas razões, não fizeste muitos mais trabalhos com ela.

Passados uns bons anos, quando vi a senhora que falava inglês, mais o secretário, na televisão, como marido e mulher, perguntaste-me se sabia quem eram. Eu disse que sim, que era o maricas, o José Castelo Branco… e a Betty. E tu relembraste-me desse tal trabalho que tínhamos feito.
Esta história faz-me lembrar de como o mundo é pequeno, e de como as pessoas mudam. Ou, por outro, de como as pessoas podem ser diferentes em privado e na vida pública. Ou de como as doenças psiquiátricas se podem desenvolver ao longo do tempo. Vou deixar que tu escolhas. A verdade é que nunca me pareceste surpreendido com o desenlace desse tal casal.

*
O mito da ginjinha que eu te ajudava a fazer cá em casa foi crescendo, e desenvolvendo-se à medida que eu a partilhava com amigos em sítios e situações completamente insólitas. Lembro-me de uma vez, na praia de Algés, à noite, em que estive com uns amigos a beber dela, e a comer barrinhas de chocolate Kinder ao mesmo tempo. Em outras ocasiões, trouxe balões de laboratório lá da Faculdade de Ciências, e cheguei a enchê-los com ginjinha e a ir para festas com os meus colegas, de tal forma que ainda hoje eles se lembram disso.
Também a forma como eu saí dessa faculdade, após três anos no curso de bioquímica, teve a tua influência pessoal. No segundo semestre do terceiro ano do curso, decidi mandar aquela faculdade às urtigas. Não gostava do curso, as coisas não corriam bem, mas continuei a ir às aulas práticas de laboratório para poder ajudar os meus colegas de grupo. Simultaneamente, comecei a estudar para os exames nacionais, para mudar de curso. Naturalmente, não vos disse nada, nem a ti nem à mãe, porque achava que esses exames iam correr bem, e quando vos contasse já tinha mudado para medicina, e achei que iam ficar contentes. Mas tal não aconteceu. Quando fiz os exames, percebi logo que tinham corrido bastante mal. E como eu não tencionava voltar para a faculdade de ciências, tive que ter uma conversa contigo a explicar-te o que tinha decidido.

Quando te convidei para uma cerveja e para conversar, na rua, de certeza que achaste estranho, porque não era nosso hábito. Mas aceitaste sem pestanejar e sem fazer grandes perguntas. Então, com duas Carlsberg à nossa frente, lá contei o que se tinha passado. Pedi desculpa por não ter dito nada, mas não ia voltar para bioquímica. Ia sair da faculdade, estar um ano fora do ensino superior, trabalhar, dar explicações, e estudar para os exames do ano a seguir, e entrar em medicina, que era o curso que eu sempre tinha querido tirar.
A tua reacção não foi nada dura. Surpreendeste-me mesmo, porque a conversa foi toda em tom de conselho por experiência própria. Não me repreendeste por não ter dito nada, nem sequer me disseste algo como “Então e porque é que não terminas primeiro esse curso?” ou então “E se para o ano os exames correrem mal outra vez?”, que eram frases que provavelmente qualquer outro pai diria ao seu filho. Na verdade, pelo menos no que toca aos exames do ano a seguir correrem bem ou mal, se o tivesses dito terias toda a razão. E eu nem tinha pensado na possibilidade de tornarem a correr mal. Foi, provavelmente, o maior risco que corri.

O que me disseste foi que existe uma idade em que é mais fácil estudar, e que por outro lado não sabias se ia haver dinheiro para me manter na faculdade por todos esses anos. Eu disse que ainda era novo, e que ia conseguir fazer o curso, e que o dinheiro ia-se vendo, que eu podia trabalhar e estudar. E para além disso, em bioquímica, estavam sempre a dizer-nos que não íamos ter emprego, e a minha namorada também era do mesmo curso, e eu achava que se fosse médico, para além de ser mais feliz, ia conseguir fazer com que tivéssemos uma vida um pouco mais fácil.
Disseste-me então, que 6 anos de curso, mais este que ia perder, eram muito tempo. E que a minha namorada entretanto ia começar a trabalhar, e que eu ia andar com os livros atrás. E as coisas iam mudar, que isto do amor e uma cabana não existe. Naquele dia de sol, com as imperiais à nossa frente, tu foste o meu Grilo Falante, e eu fui o teu Pinóquio.
Avisaste-me de forma meiga, e eu, claro, não prestei atenção. Fiz o que queria, o que me apeteceu. Estive um ano a trabalhar, voltei para a escola, para o 12º, para o pé dos miúdos – senti-me como se fosse a conduzir um carro em 5ª e reduzisse de repente para 2ª – depois repeti os exames, tirei dois 20 e entrei. Era um tiro que não podia falhar, e não falhei. E não vou dizer que foi só porque estudei muito – o que é verdade – mas também foi precisa muita sorte. Confiei que estava a arriscar, mas estava a fazer tudo em prol da minha futura vida profissional, da minha realização pessoal, e dos planos que tinha feito para mim e para a pessoa de quem gostava.

Mas no fim, quem tinha razão eras mesmo tu. Fazemos planos e castelos de cartas no ar, mesmo sabendo que é o vento que derruba as cartas. Tomamos certas coisas como garantidas, defendemos o que pensamos com unhas e dentes e raramente prestamos atenção ao que as pessoas mais velhas nos dizem. Avisaste-me da melhor forma que sabias que isso da namorada ia ser um grande problema, e foi mesmo, e muito pelas razões que apontaste: eu, qual Pinóquio, fui mesmo parar à barriga da baleia. Quando somos muito novos pensamos que podemos controlar as variáveis todas e que as coisas só podem correr bem, e correr bem da maneira como as planeámos. Mas às vezes também fazemos coisas certas pelas razões erradas.
Confesso que quando tomei aquela enorme decisão não medi nem metade dos riscos que corria. Quanto ao dinheiro, aí eu tinha razão. Por uma razão ou por outra, nunca tive que abandonar a faculdade, embora em determinadas alturas tenha custado bastante a estabilizar o barco. Foi na base do vamos vendo, devagarinho… e quase sem dar por isso já estou quase no fim do curso. E não me arrependo nem um bocadinho. Mesmo que me arrependesse... ter saudades do passado é correr atrás do vento, como diz um provérbio russo.

Apesar de saber que detestas médicos, nunca me disseste nada sobre isso. Talvez tenha sido por saber disso que só me viste uma vez de bata e estetoscópio.