30 de outubro de 2023

Tetris - Depois dos quarenta - 01

 


    No pico deste verão, às 3 da manhã, estava eu a trabalhar sem ar condicionado e com 35 graus de temperatura ambiente. Já estava mais do que na hora de tentar descansar um bocado, já não havia o que fazer, e portanto encaminhei-me para sair. Estava quebrado pelo calor, mais do que pelo trabalho.

    Já tinha pensado em deixar de trabalhar ali há algum tempo, mas não tinha sabido dizer que não a quem me pediu para trabalhar nestes dias, e portanto tinha cumprido com a palavra dada. Sempre foi um ponto de honra para mim o não virar o bico ao prego e deixar alguém na mão, mesmo que isso me prejudicasse mais do que beneficiasse. Um parvo sem noção.

    Encaminhei-me para a sala de espera geral para sair pela porta.

  Estavam bastantes pessoas sentadas nas cadeiras, algumas de olhos fechados, outras de canadianas ou de cadeiras de rodas, algumas a conversar em sussurros. Na televisão transmitiam as televendas. Quase silêncio e bastante calor.

    Vieram umas enfermeiras da Pediatria a correr atrás de mim para me apanharem antes que saísse.

"Doutor, doutor! Não se vá embora!".

Vinham com uma senhora com uma menina pequena ao colo.

"Não há Pediatria hoje no hospital... Mas podia ver a criança? Tem um bracinho magoado...".

    Olhei para a menina ao colo da mãe. Estávamos todos em pé no meio da sala, e ela obviamente não me queria deixar mexer no cotovelo e esperneou um bocadinho. Toda a gente a olhar.

"Estás cheia de soninho, não é? Pois... também eu... deixa cá ver o teu cotovelinho... sim, eu sei que não queres... eu sei que é muito chato...", trlick!, "Pronto... já está... já não te faço mais mal..." ... calou-se. As enfermeiras e a mãe ficaram admiradas e agradecidas. A plateia da sala de espera olhava curiosa para mim, sujo de gesso, em fato de treino, desgrenhado, olheirento, e farto de ali estar. Parecia e sentia-me um desenterrado, desterrado, longe de casa.

    Virei-me logo e fui-me embora.

    Pela primeira vez não senti orgulho ou regozijo.

    E subitamente deixou de me fazer sentido o trabalhar tanto, ou melhor, o decidir estar ali, ou melhor ainda, o achar que as pessoas eram mais bem tratadas se eu ali estivesse; ou o ganhar dinheiro que podia ser importante para depois, sacrificando sucessivamente os agoras e todas as formas com que poderiam ter sido preenchidos em alternativa. Não tinha havido agoras que me oferecesse a mim próprio durante anos, e muito menos partilhara agoras suficientes com aqueles que gostavam de mim. Em vez disso, tinha até então extraído satisfação na minha capacidade de encaixar trabalho por cima de trabalho no calendário, num tetris perfeito.

    Foi nesse exacto momento que o fiel da minha balança desvariou de dor, e um dos pratos rebentou a corrente que o prendia e embateu violentamente cá em baixo, partindo o chão de mármore e despenhando-se na cave da minha consciência - o prato dos sorrisos que não vi, das saudades acumuladas, do ressentimento do amor perdido, dos últimos momentos que podia ter tido com as pessoas queridas que partiram entretanto.


*


    "Olha para a tua trajectória e pensa se alguma vez fizeste alguma coisa para magoar alguém, se tiveste intenção de causar dor a alguém. Não tiveste. E podem dizer-me que não interessa a intenção, que o que interessa são as consequências. 

Eu não concordo.

    Tudo interessa e as intenções também! Porque elas demonstram o que está no nosso coração. E para além disso, tu foste reagindo ao que foi acontecendo na tua vida... e que, sinceramente, não tirou o bom de dentro de ti.

    Sabes, eu uso uma expressão quando me refiro a alguém ou alguma coisa que me faz sentir o porquê de viver e que sei que é um sinal de que o amor existe (e estou a falar simplesmente de amor, amor puro... não necessariamente de relações amorosas): colo de deus.

    Veio-me essa expressão em alturas em que não estava muito bem. Então, para tentar sentir-me melhor, fechava os olhos e imaginava que estava literalmente no colo de deus... e por vezes resultava. Ficava numa paz e sentia que podia acontecer qualquer coisa, que nada interessava naquele momento. E a partir daí, quando conhecia alguém ou via alguma coisa simples e especial, sabia que era aquele o colo de deus. 

Só podia ser.

    E tu... já foste e és o colo de deus para muita gente e ainda serás para muita.

    Agora estarás a pensar que eu estou a dizer isto porque não te vejo os defeitos e tal... mas não tem absolutamente nada a ver com isso. Provavelmente terás defeitos como toda a gente, mas orientas-te por um fundo bom.

    O que eu disser não vai mudar o que sentes ou pensas... mas tu estás no caminho do bem e, na verdade, eu acho que sempre estiveste.

    Uma vez ouvi uma frase deste género: "se não dermos comida ao nosso bicho interior, ele vai-nos incomodar até lhe darmos o que nos faz felizes". E aqui a palavra bicho eu substituo por alma... eu não sei o que te faz feliz, mas foi isso que tu sempre quiseste de certeza. 

    Meu querido, tu mereces tanto ser feliz!

    Talvez não o tenhas feito sempre porque acabaste por silenciar a tua alma.".


D.S., em mensagem dirigida a mim.

14-10-2023


*


    Hoje ouvia Lofi lounge no youtube enquanto escrevia. Havia um salmão com leite de côco a assar no forno para o jantar. A música fundia-se com o canto grave do vento que soprava as frinchas das portas mal vedadas da varanda da sala, temperado pela chuva abandonada em saraivadas.

    Estava em boa companhia, a 283 quilómetros de casa.

    Depois voltei ao trabalho para cumprir com uma última palavra dada.

    Na rua a chuva molhava agora os tolos, e parecia despejar-se dos focos dos candeeiros rodeados de escuridão, de que saí para o branco fluorescente do hospital. E os meus colegas ficaram estupefactos quando lhes disse que não vinha mais.

"Mas porquê? Passa-se alguma coisa? Estás bem?"

    Nunca estive melhor.


28 de outubro de 2023

Falou e disse - 08


    Senhora Mãe - Como se chama a tua professora de inglês?

    A minha filha - xixer

A mulher que eu amo



    A mulher que eu amo achou-me especial, one of a kind, e nunca entendeu o porquê de a ter escolhido.

    A mulher que eu amo sabia que eu tinha sempre frio nas pernas ao jantar e por isso tapou-mas com uma mantinha e encheu-me o copo de vinho depois de ter aberto a garrafa, porque sabia que eu não tinha força para sacar a rolha.

    A mulher que eu amo cozinhou pratos incríveis e sabia que o fazia, mas apresentou-mos com a humildade de quem nunca tinha entrado numa cozinha, quase a medo, como se eu fosse repudiar o colo de Deus.

   A mulher que eu amo submeteu-se na cama, não porque a obrigasse, mas porque ela assim determinou, e sabia que em que cada gemido que lhe saisse e de cada vez que se viesse toda me deixaria mesmerizado.

    A mulher que eu amo deu-me festinhas quando não consegui, mas tentou na mesma uma e outra vez, e achou sempre que a falha foi dela e pediu sempre só mais uma oportunidade.

    A mulher que eu amo quis mostrar-me o mundo e o seu único pedido - e duvidou disto até ao último momento - foi que eu aparecesse no aeroporto a horas de não perder o voo.

   A mulher que eu amo fez-me massagens nos pés e mãos, pelas dores causadas pelos dias seguidos em que estive a trabalhar e a deixei sozinha.

     A mulher que eu amo ofereceu-me uma escova de dentes e colocou-a num copo ao lado da dela, e transformou a sua casa num lar para nós onde eu só ia às vezes.

    A mulher que eu amo recebeu migalhas de mim e achou sempre que não tinha direito ao pão todo.

    Mas um dia a mulher que eu amo percebeu que o seu silêncio é mais forte do que todas as minhas palavras, porque me transmite


dor

sofrimento

medo

ansiedade


 distância



alheamento




desdém





indiferença


sem que eu saiba qual deles é, ou se se se cancelam uns aos outros para produzir o vazio.

    A mulher que eu amo é uma geisha que descobriu finalmente a dimensão do valor que tem, e por isso decidiu que é muito melhor não estar abaixo de mim, mas também não a meu lado.

     Talvez por isso a ame cada vez mais.


27 de outubro de 2023

Falou e disse - 07

    Na praia, uma mulher fazia festinhas nos ombros de um homem, sentados em conchinha a olhar o mar, em jeito de massagens.


    Anónimo - Vês porque é que te paguei o almoço?

    Anónima - Pensava que era por causa dos bicos.

    Anónimo - Good comeback!

8 de outubro de 2023

"Tu tens que me comer!"

 


            Os pneus esmagaram as primeiras folhas de outono contra o empedrado de granito enquanto o automóvel estacava ao lado de um portão de ferro com balões azuis e vermelhos  pendurados.  O calor que se fazia sentir era anormalmente elevado para a época do ano. O Joca e a sua filha iam a uma festa dos cinco anos de um colega da escolinha, e quando chegaram já muitas crianças corriam e pulavam por toda a parte.

           No meio do jardim, um enorme barco pirata insuflável suportava os pulos dos miúdos e abanava por todos os lados. Ouviam-se guinchos de crianças e algumas vozes dispersas de conversas dos pais, de copos e garrafas de cerveja na mão. A criança largou a mão do pai e foi a correr descalçar-se atabalhoadamente para depois se lançar no insuflável sem cumprimentar primeiro quem quer que fosse.

O Joca deslocava-se quinzenalmente de outra cidade distante para estar com a filha, e portanto não conhecia bem a maior parte dos seus coleguinhas ou os respectivos pais, pelo que ficou meio perdido no meio da balbúrdia, com um embrulho na mão e outro no estômago.

Havia trocado algumas mensagens com amigos antes da viagem.

“Não te preocupes, se não te sentes bem em socializar deixas lá a miúda e vens embora, nem todos os pais ficam, é sempre assim” – dizia uma.

A outro, dizia: “Ficar aqui especado e a tentar fazer conversa da treta? Hell, no!”.

E este tinha respondido: “Ai é da linha do Estoril? Esse restaurante da marginal é excelente! E em conta! Já lá foi? Não?! Como não? A Carlota e a Teresinha adoram!”.

O pai do aniversariante perguntou-lhe se queria beber alguma coisa e disse-lhe que estivesse à vontade, mas recusou de forma delicada, argumentando que infelizmente tinha coisas para fazer. Perguntou à mãe do menino a que horas pensavam cantar os parabéns e partir o bolo, trocaram números de telefone, e saiu dali consolado por ter pelo menos três horas para descansar da viagem.

Foi feito num ápice o percurso de quinze quilómetros até ao sótão que tinha arrendado com o objectivo de estar com a filha, e pouco tempo depois já estava deitado na cama, entregue a si e às suas ansiedades, no silêncio batido pelo tique-taque do relógio de parede. 


*


Acordou uma hora depois, um pouco mais sereno. Decidiu regressar à festa de anos mais cedo para ver a filha a divertir-se e talvez tirar-lhe algumas fotografias. Esmagou novamente as primeiras folhas de outono com o automóvel e atravessou o portão de ferro, e em menos de dois minutos puseram-lhe uma carlsberg na mão.

Viu-a aos pulos no insuflável, eufórica, enquanto lhe fazia caretas. As mães das outras crianças metiam conversa com ele à vez, talvez curiosas por um elemento estranho, e diziam-lhe que tinha uma filha muito fofinha e outras palavras de circunstância. Sentiu-se mais calmo, embora não conhecesse ninguém ali.

Depois, a menina decidiu sair do insuflável e enfiar-se num trampolim pequeno protegido por rede a toda a volta, e foi logo seguida por outra. Ao entrar, esta chamou-o de papá, fitando-o e sorrindo. A sua mãe, que estava por perto, explicou que a sua filha falava muito nele e nunca mais se tinha esquecido de como em junho, na festa de anos da filha do Joca, ele tinha brincado com as crianças todas e com ela. Nessa ocasião, enquanto os pais conviviam uns com os outros sentados ou com copos na mão, havia sido ele a vítima consentida das crianças, fazendo de monstro, rugindo, fingindo que as mordia, pegando-lhes em altura, perseguindo-as e sendo perseguido, sendo puxado, empurrado, preso, esmagado, até ficar com a t-shirt larga e rasgada. E como a sua filha o chamava de papá, as outras crianças imitavam-na.


*


O Joca era talvez das pessoas mais velhas presentes, embora parecendo um pouco mais novo, talvez porque continuava a vestir-se como um rapaz, a falar como um rapaz e a mexer-se como um rapaz.

“Pai, tu és o monstro e tens que nos apanhar!” – disse-lhe a filha, enquanto saltitava no pequeno trampolim e corria à volta junto à rede, enquanto o pai fingia que a tentava apanhar do lado de fora. A outra menina encostou-se à rede de propósito e gritou :”Papá, tu tens que me comer!”. Ouviram-se risos baixinhos das mães que observavam. Uma levou a mão à testa. Outra disse-lhe: “a sua filha tem tanta sorte por o pai brincar com ela! O Joaquim…se não fosse eu a brincar com a minha filha…”.

O Joca encolheu os ombros e levantou o cantinho dos lábios. Conhecia por experiência própria e alheia a realidade das mal casadas, das mal juntas, das bem divorciadas, das mal comidas porque eles não querem ou porque elas deixam de querer, dos erros de casting e das histórias dos casamentos porque-é-o-que-se-espera, porque-está-na-altura, porque-é-o-meu-melhor-amigo, e não desejava isso para si. Não tinha chegado a casar, mas isso não importava muito.

 Aquele instante serenou-o finalmente por completo, ao certificar-se de que esse chamamento surgiria de forma visceral num determinado momento, sem dúvidas, meios-termos ou sacrifícios de alma, ou talvez isso nunca acontecesse.

 Mas já o tinha sentido.

3 de outubro de 2023


Tenho um querer imparável de fazer uma corrida
De rédeas soltas,
Ou sem rédeas,
Ou como se nunca as tivesse tido.

Não senti os tiros de partida
E agora espero reviravoltas.

E corro, nado, voo,
Com a certeza dos sóis que nascem
E com lágrimas de vento,
Muito mais depressa que autocarros e aviões,
Mais depressa do que a vida,
Mais depressa do que o tempo,
Mais depressa do que o mundo,
Até que este inverta as suas rotações
E regresse, por um segundo
Àquele par espaço-tempo em que nos falhei,
E eu mostrar-te-ia
Tudo o que - hoje - eu sou,
Tudo o que - hoje - eu sei,
Tudo o que - hoje - eu posso,
E tudo o que sinto, o que sempre senti por ti
E que eu não permitia
Vez após vez,
Chance após chance,
Mês após mês,
Que visse a luz plena dos dias.