28 de dezembro de 2005

CAROS AMIGOS... E COLEGAS!

Numa das minhas navegações pela net encontrei este artigo http://resistir.info/portugal/ppp_saude.html#asterisco que na minha opinião está interessante!
Fala um pouco sobre as PPP (parcerias público-privadas) que andam tanto em moda:)

Boas leituras ;)

24 de dezembro de 2005

I might be wrong - parte IV - especial de Natal - Arroz de marisco

Este ano o espírito natalício chegou mais tarde do que é costume. Escrevo-vos na véspera de natal, faltam poucas horas para a meia noite, e a minha pequena casa já se encheu de família a fazer doces atrás de doces; está um cheiro a fritos que parece uma roulote de farturas dentro de uma fábrica de donuts. Estão todos a brincar uns com os outros, vai aqui uma barulheira danada, os cães correm a roubar nozes da cesta, tudo isto envolto numa fumarada propícia a um encontro de sebastianistas...
Chegou realmente mais tarde... não me sentia nada natalício, mas ao ver a minha casa desta maneira, uma pessoa transfigura-se. O frio está na rua, a família em casa e os doces na mesa. Algumas prendas debaixo da árvore... está tudo no seu devido lugar. Vamos sentir-nos mais quentinhos com a comida e com os copos, e até podemos ver algumas pessoas sorrir nesta altura do ano. É uma oportunidade para esquecermos as nossas diferenças, as nossas quezílias, e sermos um pouco mais tolerantes.
Não me interpretem mal, caros leitores. O Natal não deve ser tudo isto. O Natal pode ser isto. Se as pessoas quiserem, mas mais que isso, se sentirem e forem espontâneas.

Quem lê este blog já está habituado aos textos do Acre, e por isso não necessita de esclarecimentos adicionais: sabe com certeza que não estou aqui para fazer uma declaração de boas festas ao jeito joséssocrático. E portanto já estão avisados que mais frase menos frase vem aí chumbo grosso!

Mas... o meu coração amanteigado (diga-se, aterosclerosado com tanto frito e gordura) obriga-me a deixar votos de que passem umas boas festas, tal como eu vou passar de certeza. Nem todos têm a nossa sorte, por isso devemos dar graças ao que temos e ao nosso modo de vida.

*

Ser, estar, parecer, permanecer, ficar e continuar. São estes os verbos copulativos que aprendi na escola. Como copulativos que são (interessante como na altura fazemos piadas sobre sexo com tudo e mais alguma coisa, mas somos tão burrinhos que nem sabemos o que significa cópula), servem para ligar, ou seja, não podem (normalmente) ser utilizados sozinhos.

Para mim o Natal é um substantivo próprio copulativo. Serve para unir as pessoas que se sintam bem com isso; a quem apeteça dar carinho e atenção, mesmo àqueles que não nos tratam por vezes tão bem como gostaríamos. Não é uma obrigatoriedade de sermos cínicos com toda a gente. Se assim for, mais vale ir passar a noite a jogar no casino, ou a beber ginjinha num qualquer miradouro sobre o Tejo (já o fizeram? quando o fizerem, venham partilhar comigo a vossa experiência...). É por isso que não consigo compreender as pessoas que vão comprar prendas nesta altura sentindo-se obrigadas, mandam montes de sms para os telemóveis de toda a gente, e depois vêm com a conversa de que o natal é consumismo e hipocrisia. Se é isso tudo, então mandem-se ao rio, meus caros! Quem vos obriga? Não vejo ninguém em tronco nú, cabeça rapada à gilette, pulseiras e cara de egípcio, atrás de vós prontos a chicotear-vos caso não estacionem o carro no El Corte Inglés!

Não tenho graveto, não tenho paciência, não tenho tempo. Não vejo o natal como uma altura especialmente agradável para se darem prendas. Não as dou no Natal e ponto final. E quem me levar a mal, é porque não percebe a minha maneira de ser e de gostar das pessoas. É porque as respeito que não lhes dou prendas. É uma forma de lhes dizer: gosto de ti, não só no natal, por isso nem me sinto obrigado a dar-te o que quer que seja, porque gosto da tua companhia e é assim que te presenteio, como tu a mim. A não ser que seja algo que cai do céu e que é tão, mas tão apropriado que é impossível não oferecer. Como isso raramente acontece... e porque haveria de acontecer no natal? Laplace não se aplica nos casos de probabilidades extremamente raras!

Aqui há uns anos, quando perguntaram ao Herman José o que é que ele achava das críticas que lhe faziam sobre a alegada descida da qualidade dos seus programas e sketches... ele respondeu de uma forma que me pareceu brilhante na altura: "As pessoas quando comem arroz com marisco também têm
de comer o arroz, não comem só as gambas..."; esta frase ficou-me gravada na memória desde então. Se há coisas nas quais concordo que se aplique tal conceito, há outras em que cada vez mais me convenço de que não é assim. Aliás, julgo que não é preciso falar na carreira que o Herman tem feito desde a Herman Enciclopédia para o desacreditar.
Será que é sempre preciso um termo de comparação para a valorização das coisas, das situações e das pessoas? Será que é preciso morder uma vesícula biliar para podermos dizer de nossa justiça que um Chocaccino (do Cup&cino, que, de resto, subscrevo com veemência), é doce? Acho que não...

Tenho que o dizer: não suporto aquelas pessoas que me mandam mensagens de natal e boas entradas, e que eu sei que não me ligaram durante o ano que passou e nem me vão ligar no ano que aí vem. Fico a sentir-me esquisito, e optei por não responder, e nem mandar a ninguém. E é curioso que as pessoas que não me mandaram mensagem foram precisamente aquelas de quem mais gosto (com poucas excepções). Isto significa que as vi há pelo menos uma semana atrás, ou falei com elas frequentemente, e portanto não se justifica! Há uma excepção, e acho que essa pessoa sabe quem é, que tem desculpa. Preferia que, se só me contactam no natal, nem no natal me contactassem. Muitas delas ocupam lugar de destaque nas minhas memórias, gravadas a letras de ouro; gosto de me lembrar delas assim, não preciso que me enviem mensagens. E há aqueles números que já apaguei do tlm, e que já nem sei de quem são... e se assim é, é porque me irritei com elas porque nunca se mostram interessadas em cultivar a amizade que eu um dia tentei cultivar.
Eu tenho destas coisas, sinto-as muito vivamente. De nenhum fruto queiras só metade, já dizia o Saramago. Se me queres como amigo, não me deixes desamparado, fala comigo tal como eu falo contigo. Se estou sentido é porque te recusaste a beber café comigo por um motivo estúpido e falso; se estou irritado, é porque gosto da tua companhia e não te vejo interessado(a) tal como eu em manter o contacto. Tens que falar comigo mais vezes. Não me mandes "FW's" para o email, não me mandes sms da net onde se podem mandar 5 iguais para pessoas diferentes ao mesmo tempo! Não percas tempo... o teu e o meu. Não percebes que é só uma maneira indirecta de me desvalorizar? Quem me dera que algumas pessoas lessem isto e percebessem o que quero dizer. A minha vontade é que essas pessoas percebessem que as estou a mandar à merda precisamente porque gosto delas; é a minha maneira de deixar, de todo, de contactar com elas, de lhes dar oportunidade de ouvir: "ok, gosto do que eras para mim, gosto do que podias ter sido, mas esta forma distante de relacionamento não me agrada, por isso prefiro pensar que emigraste para a Nova Zelândia e nunca mais vou falar contigo porque não podes, e não porque não te apetece". Querem melhor manifestação de respeito pelos sentimentos humanos?

Temos tão pouco tempo para as pessoas de quem gostamos e com quem gostamos de estar! Tempo real, tempo mental, o que quiserem... porquê gastar tempo e dinheiro? O natal não é para as pessoas se sentirem mal ou culpadas. Tenho muita sorte, estou rodeado pelos que gosto mais e que gostam mais de mim. Não quero que me desejem um bom ano. Quero que o passem comigo.
Por isso, amigo Herman... fica lá tu com o arroz, que eu como as gambas. E tal como ele... parece que muita gente não se importará com o negócio.

Vejo-vos por aí...
Acre, vosso amigo verdadeiro.

13 de dezembro de 2005

Carta a uma jovem burguesa - parte III

Por fim, a última parte da carta. Espero que leiam com a atenção que ela merece, senão não vale a pena. Não que seja muito trabalhosa... simplesmente só dessa forma é que conseguirão beber todo o sumo que ela vos pode oferecer.


Finalmente o amor. O seu caso não é isolado. É o caso de muitas jovens que não aceitam a solução de um casamento de conveniência e que não têm a coragem e a serenidade bastantes para amarem fora do quadro das convenções burguesas. Experiências incompletas dão uma força desconhecida aos apetites sexuais. A idealização substitui as realizações e a rapariga, já mulher feita para o amor, tortura-se numa expectativa febril, na antecipação do momento que tarda. Aí você pode encontrar a razão de alguns dos seus estados de irritabilidade, a razão de muitas dessas «fugas do mundo» que lhe são tão frequentes, a razão de algumas dessas desalentadas lágrimas que você gostaria de poder reprimir. Para esse sofrimento não é necessária a existência desta ou daquela concepção. Sua irmã, tão serena, tão conformada, tão moral, tão feliz nas suas greta-garbices com flirts mais ou menos de ocasião, vive a mesma sofreguidão insatisfeita. Apenas ela aceitou esta realidade, ao passo que você, não aceitando a solução de sua irmã, aceita, vive no frenesim de uma entrega que não chega porque, embora contrariada, você a evita, sente à sua roda a falta de um carinho que lhe é indispensável e sofre por se ver só, quando se sabe mulher, com apetites, paixões, desejos de ternura e afecto. Eu sei, porque você mesma ma disse, quanto é incompleto para si esse amor que hoje sente por um homem que diz amá-la. Você vive num refreamento doloroso, numa procura de emoções que a vão desiludindo. Ama sem confiança e sem coragem. Chega à situação quase absurda de duvidar da afeição que tem. Que quer então que lhe diga? É muito difícil e perigoso dar conselhos neste campo. Só posso dizer-lhe que, nas suas condições, uma rapariga deve meditar serenamente nos prós e nos contras, não se entusiasmar com possibilidades-fantasmas, ter em conta as duras condições de vida (esforçar-se por conhecer com toda a calma o carácter do homem de quem gosta) e, depois, não temer, não recear a entrega, desde que ela seja com um homem que a ama e por quem é amada, desde que não seja um acto-obrigação, mas um sentimento profundo, instintivo e imperioso que a conduz. Diz bem, boa amiga, a virgindade de uma mulher é um peso enfastiante.

Como vê, apesar da sua franqueza e dos elementos que me deu para eu conhecer com exactidão o seu temperamento e o seu carácter, eu não posso fazer mais do que apontar um caminho geral sujeito a naturais inadaptabilidades. Se fizesse mais do que isso emparelharia incomodamente ao lado de bruxos e pitonisas. Não veja, pois, no que atrás digo um conselho ou um incitamento. No amor só interessados conhecem a intensidade da atracção, a infelicidade que resulta de não se possuir a felicidade que esperam tirar da posse. Só aos interessados cabe ver, meditar e decidir.

Eis, boa amiga, uma longa carta em resposta à sua não menos longa. Espero que conseguirá vencer todas as dúvidas que a assaltam, que saberá pensar com serenidade na sua vida e no rumo futuro, que procurará agir como uma pessoa que pensa como pensa e não como qualquer burguesinha neurasténica e impulsiva. Espero que conseguirá vencer as suas infantilidades e compreender a precipitação das suas ultra-rápidas resoluções.
Amigo de sempre, ac.

11 de dezembro de 2005

Carta a uma jovem burguesa - parte II

Aqui vos apresento a segunda parte da carta. Para os que chegam com o comboio em andamento, remeto-vos para o post anterior.


Agora o problema familiar.

Você sente que a família lhe impõe uma vida que não é a desejada, que refreia as liberdades que você gostaria de ter, que intervém quase policialmente no que vai no seu espírito. Os seus pais, sua tia e até sua irmã bombardeiam-na com críticas e conselhos parvos e apresentam-lhe uma chocante perspectiva de vida. Você sente-se só, atacada e incompreendida. Sente que não está de posse das necessárias armas defensivas e que a sua total defesa implicaria um contra-ataque que levaria forçosamente ao rompimento. Daí esse seu enervamento ante os mais pequenos incidentes familiares, as suas respostas mal-humoradas, a sua irritação constante ante a vida da casa. Daí também o ódio (não tenhamos medo à palavra) que você em certos momentos de exaltação chega a sentir por pessoas que ama (acredite: que ama, apesar de tudo). Essa é a tragédia de todas as raparigas da sua classe que não se sentem ligadas a ela por egoísmo ou por gosto. São de facto incompreendidas, na medida em que avisados parentes ou conhecidos têm por «estarolices e leviandades que hão de passar com os anos» as reacções contra uma sociedade de injustiças, hipocrisias, de convencionalismo. Você sabe bem como eu sinto essa tragédia e a simpatia que me inspiram essas jovens de boa vontade e de generosos sentimentos.

Mas repare, boa amiga. A libertação da família, a independência em casa, a posição de igual para igual em relação aos mais próximos parentes só podem dar-se quando a rapariga tem a sua vida própria, quando a rapariga não é economicamente dependente da família. Então, sim, já pode reagir com todo o vigor contra as cadeias familiares. Mas, enquanto isso não sucede, os seus pais têm-na segura e julgam-se com direito de determinar o seu futuro. A ideia da propriedade privada sobre os filhos é uma ideia comum a todas as famílias burguesas.

Agora reflicta.
Que tem feito você para construir uma vida independente, para assegurar o seu sustento por suas próprias mãos? Tem você aproveitado todas as facilidades, que a sua própria família lhe deu, para conseguir uma profissão? Como estranhar que os seus pais sonhem com o seu casamento como um meio de a arrumarem, assegurando-lhe um futuro de bem-estar material?

Eis porque lhe digo, boa amiga, que você deve trabalhar no sentido de conseguir criar condições para viver à sua custa. Sem isso (e sem a hipótese, que em si, boa amiga, lhe parece absurda, de um casamento de conveniência), você continuará necessariamente a ter a mesma vida familiar conflituosa e desagradável, continuará as suas reacções, magníficas, sim, mas sem issue.
Finalmente o amor.
(continua).

10 de dezembro de 2005

Carta a uma jovem burguesa - parte I

Caros leitores:
após um mês de aparente afastamento dos meandros da escrita, afastamento esse que não foi de forma alguma premeditado ou propositado mas apenas obra do acaso e das contrariedades quotidianas, eis que vos apresento um texto que, na minha opinião, é simultaneamente uma pérola e uma lição de vida.Trata-se de uma carta escrita por alguém célebre da nossa praça pública, que me deu tanto prazer a ler que resolvi subscrevê-la aqui, para que possam dela desfrutar e, se assim entenderem, tecer comentários ou opiniões.
Devido à extensão da carta, e porque eu sei que nem todos os caros leitores resistem ao afã de ler muitos caracteres de seguida, decidi dividi-la em partes. No fim divulgarei o autor, e nessa altura poderão comparar as informações e opiniões que sustentam sobre ele, com as ideias veiculadas pela carta.

Já estava há muito tempo à espera de um momento particularmente oportuno para lançar no blog esta carta. Pois bem, creio que chegou a altura certa: tive uma conversa com uma pessoa em que debatíamos a real importância das classes socio-económicas no comportamento, desejos imediatos e ambições das pessoas, e a relevância destes três parâmetros sociológicos na escolha racional de um parceiro; no sentimento puro e instintivo desenvolvido por essa pessoa; e no êxito ou fracasso (comparando com a nossa experiência pessoal directa e indirecta) a que essa relação estará ou não à partida votada quando estabelecida entre pessoas de classes consideravelmente diferentes. Esta conversa foi breve mas muito interessante. Eu e essa pessoa discordámos parcialmente, e vim para casa com esta carta na cabeça. Se não encontrarem pontos de contacto entre o assunto da conversa e a carta (como eu encontrei, e gritantes), também não os vou explicar :)

Não obstante, a carta não se esgota nisto, pelo contrário. Espero que considerem o desafio tão produtivo como eu achei.
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Carta a uma jovem burguesa

Peço-lhe duas coisas. A primeira: que procure ler as minhas palavras com a ideia de que há da minha parte uma total isenção, isto é, que eu apenas procuro ajudá-la e de forma alguma impor-lhe um parecer ou forçar uma atitude. A segunda: procure ler as minhas palavras com o máximo de isenção da sua parte, isto é, sem que o seu orgulho e vaidade naturais e aquilo que você julga serem segredos da sua vida íntima possam desvirtuar o sentido das minhas ideias ou fazê-la reagir numa, aliás instintiva, irredutibilidade. Esforce-se por ver no que digo um caso geral que, por certas razões, pode ser o seu e evite pensar que eu aponto e generalizo o seu caso particular. Se assim fizer, conseguirá meditar com mais calma, o que neste caso significa: com uma melhor compreensão das realidades.

Outra observação prévia: recordo-lhe as conversas que tivemos e a possibilidade que então houve de nos observarmos à vontade. Lembre-se de que sou tão conhecido por si como você o é por mim. Faço esta observação para evitar que você julgue estar numa situação em que algumas pessoas têm por vezes julgado estar em relação a mim, isto é, conhecerem os tópicos fundamentais da minha vida, os meus objectivos, as minhas preferências e julgarem ao mesmo tempo ser pessoas «desconhecidas» ou «incompreendidas». Creio que você será suficientemente previdente para saber que eu também conheço os tópicos fundamentais da sua vida, os seus objectivos, as suas preferências e ainda um outro e mais doloroso aspecto: as suas impossibilidades.

Você pede-me indicações acerca do seu comportamento futuro. Repare, boa amiga, que as circunstâncias em que o faz mostram que você espera determinadas indicações e só por essa razão, só por julgar que eu posso, de certa forma, ir ao encontro dos seus desejos contrariados e das suas recalcadas ambições, só por isso você me procura neste momento. Você quer (melhor: necessita) que alguém lhe diga: «tem razão a tua revolta e a tua insatisfação; deves dar largas a todos os teus desejos, deves quebrar de vez todas essas cadeias que te prendem os movimentos.». Era isso que você esperava ao escrever-me. Eu também falaria assim, boa amiga, se as minhas palavras resolvessem a situação, se elas não só lhe dessem um ânimo e uma vontade mas também modificassem o meio em que você vive, as suas aptidões para lutar pela vida, as circunstâncias desfavoráveis em que você tem de agir. Mas, como assim não sucede, se eu assim falasse, estaria a dar-lhe uma perspectiva errada, estaria a conduzi-la a uma atitude precipitada e louca onde você soçobraria, pode crer-me.

São três os problemas fundamentais da sua vida: o problema da conduta geral ante a vida; o problema da família; e o problema do amor. O primeiro é o que parece dominar e determina essa tão característica insatisfação, essa desgostosa incerteza da conquista da própria felicidade, essas enérgicas reacções capazes de vencer montanhas e esses recuos de abatimento e de desânimo. Mas os outros dois problemas apresentam-se com mais vigor no dia-a-dia da vida e são eles que obcecam, que indispõem, que exaltam, que fazem perder a disposição para meditar e combater.

Você gostaria de ter uma vida mais harmónica com as suas concepções. Gostaria que tal vida absorvesse e arrastasse. Gostaria de se entregar a ela com paixão definitiva, de viver por ela e para ela. Faço-lhe essa justiça, porque sei que isso lhe dá confiança em si e fortalece a sua boa vontade. Mas repare. As raparigas criadas e desenvolvidas no seu meio, raparigas fartas e ociosas, receberam desde pequenas a influência desse meio e não são poucas as dedadas que nelas marcaram a fartura e a ociosidade. Eu posso supor que você não tema a adversidade, não tema as dificuldades mais brutais. Posso mesmo supor que o seu desejo seja caminhar para elas, no propósito de as defrontar e vencer. Mas esse é um impensado desejo que não tem em conta as suas próprias debilidades, os seus próprios defeitos, as raízes que afinal a prendem - contra a sua vontade - à sociedade em que você se fez mulher. Não é no movimento brusco e violento que uma rapariga burguesa - burguesa na educação, no standard económico, em anos de vida - se desprende da sua classe e aceita no fundo do seu ser as contingências de uma nova vida, que implica sacrifícios diários dos mais variados. Não é num movimento brusco que a sensibilidade (da pele e dos sentimentos) se modifica, se tempera, se enrija. Esse género de felicidade que você deseja, a felicidade pela coerência e pelo acordo dos actos com as concepções, não se conquista por mero acto de vontade. É numa batalha de anos, num crescendum de forças íntimas, numa amoldação progressiva às dificuldades e à luta, que se cria a única condição que pode tornar possível a conquista de uma tal felicidade: o acordo real entre as concepções, os apetites, a sensibilidade, os desejos mais profundos e instintivos. Eu não quero desanimá-la, boa amiga. Quero apenas fazer-lhe ver - para que você consiga forjar o seu futuro - que está ainda nas primeiras e mais instintivas reacções e que tem na sua frente um longo embora prometedor caminho. Creia que seria para si própria um motivo de desilusões uma mudança radical imediata da sua vida. Você não está preparada para isso, não pode estar preparada para isso. Em breve seria vencida e estaria votada a um regresso doloroso a uma vida que odeia. Você deve ter em conta a sua situação, as suas verdadeiras qualidades e as suas verdadeiras dificuldades, para, dentro da realidade da sua vida, procurar agir de forma consequente. Pode crer, boa amiga, que lhe é possível fazer muito, sem que tenha de imediatamente dar um audaciosíssimo passo em frente.

Pena é que não tenha começado ontem o que só agora vai talvez começar. Mas houve razões e a compreensão de que elas foram independentes da sua vontade deve animá-la ao esforço que agora tem de fazer. Sinceramente lhe digo que poderá um dia alcançar a felicidade que deseja, o acordo absoluto entre os actos e as concepções. Mas, para isso, tem de batalhar muito, com serenidade que não exclui ardor e paixão, com inteligência que não exclui os movimentos instintivos, com confiança que não exclui impaciência e insatisfação.
Agora o problema familiar.

(continua)

15 de novembro de 2005

Entropia

Era uma vez…nada. Esqueçam. Não queria começar por “era uma vez”. Mas comecei. Contrariedades. Fossem todas elas como o levantar da cama, sempre quente, sempre com a companhia/companheira da vida e partir para o frio ambiente que rodeia este espaço de amor. Enfim, o calor que não se quer perder por nada deste mundo mas que temos de abandonar por instantes.
Porquê? Estamos tão bem, falsamente isolados das agressões exteriores, enfrentando o calor dos nossos corpos, um contra o outro, até a nossa entalpia quebrar à mesma velocidade que nos confrontamos com a entropia corporal que nos invade.

- Não, não vás! Fica! – diz ela com metade da almofada discretamente saliente nas suas mejillas.
- Tenho que ir…
- Pelo menos deixa que o teu calor se apodere do fino crepitar dos lençóis sobre a minha pele…
- Hoje chegarei cedo a casa.
- Hoje sais cedo dela…
- Deixo-te o meu calor para que dormites um pouco mais sobre o meu odor, sobre as sensações vividas e vivas que temos vivido e que viveremos!
- Vai e vem depressa. Sem demoras. Sem pressas. Calmo. Mas depois, vem e sê a luz que me aquece por dentro e por fora, como uma acha incandescente que a cada beijo, como se de um sopro se tratasse, emerge das cinzas!

Cedo vou e cedo venho. Tenho-te sempre nos meus braços e contigo enfrento todas as vicissitudes do dia a dia. Não digas que esperas por mim, sabendo que sempre me guardaste no teu canto cortical mais privilegiado que arranjaste! Não digas que esperas por mim, sabendo que podes encontrar o meu calor num pedaço de tecido que tenha estado perto de ti. Não digas que sentes saudades minhas quando sabes que as memórias nos despertam para a vida e não para a falta dela! Não digo que espero por ti porque sei que somos a entalpia e a entropia, o dia e a noite. Enganei-me. Somos a entropia e o dia, a entalpia e a noite: não depende do ciclo terrestre, nem do ciclo circadiano. Depende de nós. Afinal, esperamos por ambos porque sabemos que são precisos dois corpos para se estabelecer um equilíbrio. Mais uma vez enganei-me. Sabemos que são precisas duas pessoas para se estabelecer um equilíbrio.
Quentes, elevamo-nos até ao espaço celestial mais recôndito, passando por inúmeras nuvens feitas de um algodão finíssimo e consistente. Olho lá para fora e vejo dois corpos celestes e (bendita a ilusão de óptica que alegremente me desperta) uma nuvem em forma de C, invadida pelo reflexo lunar, deitada, abraça-os intensamente brilhantes, como se de uma face sorridente se tratasse. Mergulhamos num movimento rápido de olhos. Várias vezes. Acordo e olho para o lado. Entre os teus pontapés espontâneos, qual reflexo rotuliano, apercebo-me do brilho ténue que a tua face espelha lateralmente à luz matutina. O teu pescoço pulsa lateral e centralmente de forma díspar. O teu cabelo repousa levemente sobre a tua orelha, coberta e discreta. Perfeita. Não, não me refiro exclusivamente à orelha. Passo a face posterior do meu indicador de forma tangencial à tua cara e acordas levemente. Olhas para mim e pensas de forma telepática comigo. O frio lá fora é avassalador.

- Não, não vás. Fica…
- Não, não vou.
- Não? – diz ela desenhando um esboço sorridente pois as sinapses ainda demoravam.
- Não. Hoje o calor apodera-se do fino crepitar dos lençóis. Hoje, sem demoras, sem pressas e calmos, seremos a nossa chama. Sei que aqui estará sempre quente e eu não suporto o frio.


Para ti.

9 de novembro de 2005

Primeira pessoa do singular ou do plural?

“Será que dá para um sofá? Dá, dáá, dáá… e aquela viagem ao Brasil? Dá, dáá, dáá…”. O dedo corre automaticamente para o botão para mudar o posto.
- Onde queres que te deixe?
- Deixa-me ali na estação, mais ali à frente…
- Então não vens comigo?
- Dá-me mais jeito ficar aqui, até logo.
O pensamento solta-se tão depressa como o corpo do carro e a porta fecha-se. Quase até que passa das sinapses ás cordas vocais. Ar fresco! O caminho hoje é feito a pé, caminhar é sempre bom, dar uma volta na própria companhia. Esta decisão está a ser difícil, as coisas não são rosas e ainda por cima já estou farto de estar sempre a lavar louça! Perco tempo a fazer comida, arroz, bifes, esparguete, alho daqui, cebola dali, margarina, já sabes – mal passado! Nunca está nada bem. Este vento sabe bem… nunca, nada, que palavras fortes. É difícil, custa, gostava de ter isto e aquilo, aqueles têm aquilo… ás tantas os carros apitam. O pensamento fez o corpo desaguar no meio do trânsito.
- Epá, ‘tás drogado ó quê? Estes gajos que se metem na passa… – primeira a fundo e lá vão eles à procura de outro problema.

“De 400 a 5000 euros peça o que quiser…”
– Estes gajos dão dinheiro em barda – desviando o olhar da televisão – ‘Tão pá acorda! Que é que me querias contar?
– Ah, nada demais, só para saber como andas…
– Eu sempre na mesma – uma testa que se franze e um sobrolho que se dobra – e tu puto?
– Estou bem, um pouco dessintonizado.
Uma gargalhada sincera. O galão leva uma sopradela que lhe desvia a espuma e o vapor que dele sai ganha o sentido do sopro, voltando de seguida ao seu calmo rumo. Os olhos fixam o menisco e o copo fica com um golo a menos.
– Isso é o que se diz quando não se quer contar o problema. Tu lá sabes.
– Já viste aquela ali? Era cá uma baleia na secundária… olha lá agora! – Pá, ó vidraças, e se fosses ver se eu estou ali na esquina? Estamos aqui os dois para tentar sintonizar o tipo e tu só com merdas!
– Mas há algum problema?

“É só ligar e em 24h tem o dinheiro na sua conta…” – a voz fica robótica e dilui-se em ruído. O dedo vai atingindo aleatoriamente os botões do rádio sem resultado.
– Até o rádio não funciona? Mas será que alguma coisa funciona na minha vida? – o rádio recebe um murro abafado. Os olhos brilham mais, dir-se-ia que molhados. O pensamento é confuso. Não é arrependimento mas antes um tapete que sai debaixo dos pés, o que já não aparece feito… É sempre melhor pensar que há anões mágicos que fazem com que tudo apareça feito, ao bom estilo da fada dos dentes. Eu faço um esforço, ele também, mas parece que não chega… O que será que falta? Será que falta? Não temos vida para isto, parece que era tudo mais fácil antes!
As buzinas e os sinais de luzes fazem lembrar que o sinal deixou de estar vermelho.
– Ele tem de me ajudar…

“Quem tem pode, você também pode ter tudo o que quer, basta ligar…”
– Então mas conta lá como é a vida de casado…
– É baril, não é muito diferente. Até é melhor, é um jogo mais difícil.
Jogo mais difícil, mas o casamento é um jogo mais difícil? A pausa faz crescer a curiosidade.
– A nossa casa tem aspiração central, é porreiro, é mais fácil de limpar, a minha avó diz que é muito melhor! – A curiosidade não foi saciada.
– Mas a tua avó é que aspira? Por isso é que é um jogo difícil? – um pouco de ingenuidade escandalosamente forçada parece resultar com pessoas que se têm em boa conta.
– Achas que aspirar é um jogo? Lembras-te da minha despedida de solteiro? – um aceno de cabeça com os olhos fixos sem pestanejar cataliza o diálogo.
– Pois é. Então posso dizer que desde então faço Lisboa Badajoz em menos de três horas!
Bateu e fez ricochete com alguma violência.
– Mas a tua despedida foi naquele strip club ranhoso!? Que é que tem isso a ver com Badajoz? – talvez caramelos!
– Isso amigo foi a oficial, a “off the record” – os dedinhos fazendo as aspas e o sorriso de canto de boca empregues como elementos cénicos dando corpo à cena – passou pelo outro lado da fronteira! Quarenta euricos e pau… do bom e do melhor, e ainda me passa uma jola pelo estreito! Um gajo que se sabe cuidar! – e acompanhou a frase mantendo o sorriso e descendo as mãos paralelamente ao tronco, um elemento cénico normalmente interpretado como reforço de alguém que se cuida, que pensa em si!
Acho que o sorriso não conseguiu sair como era pretendido mas com a mesma ingenuidade escandalosamente forçada a corda foi esticada.
– Então e planos futuros? – a voz não conseguiu ser verdadeira.
– Amigo, agora venham os miúdos! Mas já chega de falar de mim! Fala-me de ti. Pelo teu telefonema parecias precisar duns conselhos…
Há frases que fazem um ser humano levantar-se como uma mola de esferográfica pressionada entre os dedos.
– Olha-me só as horas, tenho de ir fazer o jantar, hoje chegamos tarde a casa. Um abraço.
– OK. Já sabes que podes contar comigo – desta vez o elemento cénico foi o polegar para cima. Que raio quer isso dizer?

“Compre agora, pague depois!” – vocifera o rádio do porteiro.
– Boa tarde! – a custo pois o peso que vem nos braços tira energia à voz.
– Meus Deus vêm carregadíssimo, deixe que eu lhe dou uma ajuda.
As sardinhas de conserva em molho de tomate não se sentem tão apertadas como neste elevador. A chave roda, o pé ajuda a abrir a porta.
– Mas por onde andaste? – a voz chegou antes do corpo. Um barulho metálico ecoa no corredor qual andaimes que se despenham dum 10º andar ou então foi um tacho que escorregou duma mão. Como que atingida por um raio congelante dum silver surfer qualquer estancou.
– O que é isso?
– Não sabes? Geribérias! Também não sabia que existiam tais flores! Vais gostar sempre do mais difícil! Gostas?
A figura congelada assim continuava, raio congelante potentíssimo prova-se assim serem as Geribérias.
– Qual delas?
– Não sei! Escolhe uma entre estas 300.
– Porque fizeste isto?
– Lembrei-me que me andava a esquecer do mais importante, do quanto te amo! Isso e porque apanhei uma promoção óptima! – o elemento cénico de encolher os ombros foi utilizado, provando-se aqui que tudo tem um lado bom. O efeito do tal raio passou e um beijo quente desprendeu-se fazendo cair cerca de 300 geribérias – nenhuma florista tem tanta flor! – e uma série de outros adereços que nos enchem armários.

8 de novembro de 2005

História para adormecer

Acordaste em sobressalto. Desesperada. Atiras o lençol para o lado e sentas-te na cama, a tremer; levas as mãos à cabeça e soluças baixinho, no escuro do teu quarto, ainda a viver o pesadelo horrível ao qual puseste ponto final com o teu acordar.

Seriam lembranças do passado? Temores do presente, desconfianças no futuro?

Abres a porta e sais para fora da tua conchinha, fazendo aquele tsss tsss tão familiar de uns pezinhos pantufados no chão. Abres o frigorífico e toda uma luz gelada sacode o escuro da cozinha. Não é isso que queres. Enches um copo com água, escancaras a janela marcada por outras conversas... e respiras o ar frio da madrugada ainda menina. Sentes nos braços o parapeito húmido enquanto espreitas de olhos embaciados cá para fora, para o mundo exterior, onde o silêncio é de quando em quando quebrado pelo som cavo e ritmado de pneus a atropelarem as lombas da estrada. Trum trum... trum-trum, trum-trum trumtrumtrumtrumtrumtrum...
Observas, hipnotizada, os semáforos intermitentes como eu. Cuidado... perigo... avançar com cuidado... avançar com cuidado... perigo...
Sou mãos nos teus ombros, polegares no teu pescoço exposto e restantes dedos repousantes nas tuas clavículas. Sentes? Não consegues dormir? Acalma, foi só um pesadelo... já passou, vem dormir, não fiques ao frio.
Sou agora colo pairante no ar, no qual flutuas de volta à tua cama. Sentes a leveza? És menos densa que o ar... sou calor que sublima o frio nocturno da tua pele e te devolve o aconchego do teu quarto.
Deita-te. Sou o teu colchão. Não, espera... estou também por cima de ti, sou ao mesmo tempo o teu lençol. Sou uma brisa quente e fria que passa pelo bordo da tua orelha sem nada dizer e te arrepia os cabelos. Consegues senti-la?
Sou corpo que ondula por baixo do teu, acariciando-te as costas. Também sou pé que te seduz a barriga da perna com artes de algodão e ofícios de trincha de pintar...
Sou pontas dos dedos que te tocam o peito ao de leve e te fazem levantar a pele como água em púcaro por cima de brasas. Respira fundo e ondula comigo. Devagarinho...
Fecha os olhos doces, tão doces... doce-diabético. Sou mão que desliza pelo teu ventre que não mostra qualquer defesa. Devagarinho... enervantemente devagar. Sou lábios que te tocam a bochecha, perto do biquinho da boca. Consegues sentir a humidade quente à tua volta? Crispa os dedos dos pés no colchão.
Respira agora mais depressa. Estás inquieta, não é? Acalma... tens todo o tempo do mundo e lá fora ninguém te espera...
Sou a mesma mão que desce pelo teu ventre que não defende mas tenta atacar. Sou outra mão que te acaricia o coração... mais dentro, mais fundo. Devagarinho... consegues sentir o teu coração a bater depressa? Consegues sentir-me como sopro rápido no teu ouvido, que não diz nada do que queres ouvir? Consegues imaginar os meus dedos a massajar o teu couro cabeludo, puxando os teus cabelos húmidos com suave violência?
Sente-me como mão, a deslizar sobre o teu coração molhado, devagar, mais depressa, mais depressa ainda, como o barulho das lombas da estrada, insisto, como que a reanimar-te, ainda mais depressa... retesa os músculos todos, arqueia-te como um gato, sustem a respiração, cala-te! ... Consegues sentir como te quero bem?!...
Desfalece sobre o colchão, adormece cansada, descansada... amanhã é outro dia e o mundo esperar-te-à lá fora.

Descansa bem...

7 de novembro de 2005

Deambulando por aí...


Passo calmamente entre as brumas do tempo, enevoadas as trevas que plantam o terreno. Olho sobre o meu ombro e vejo a rua apinhada de personagens deambulantes, embriagadas, num ambiente frio e sombrio. Ao fundo vejo a luz de um candeeiro, que parece fugaz devido ao vidro baço que encerra a fonte de tal triste luminosidade. Todos em volta riem, bebem, choram, vomitam, desequilibram. A cada porta que passo, vejo um magote de pessoas abraçadas, algumas a agarrarem na testa de outros nauseados. É a alegria. A felicidade da decadência. O auge da actividade cerebral zero. O extremo da ausência de sinapses corticais. O famoso “piloto automático”. Olho sobre o meu outro ombro e a cena repete-se. “Porquê?”, pergunto-me. Olho-me ao vidro de uma porta, com uma portada de madeira branca visível na sua transparência, e vejo a resposta. O aspecto depressivo e fundo que o fácies expressa um dia surge por bem, porque desperta para o estado catatónico e cataléptico que o álcool nos induz. E sim, sabe bem. Sabe bem olhar para a bebida, ver a bebida, ingerir a bebida, sentir a bebida e observar a bebida a tomar conta de nós. É bom não é? Tira a dor. Tira a angústia. Faz-nos alegres, por muito pequeno que esse instante possa ser. Faz-nos sentir suicidas. Faz-nos sentir na corda bamba: entre a loucura e o tédio, a mania e a depressão, a raiva e a paz de espírito. Sentimo-nos poderosos e vulneráveis tal como as ondas do mar vão e vêm. Sinto-me com o poder lunar de inverter marés e com o poder universal de colapsar num buraco negro. Sim, aquele em que absorvemos tudo e, no entanto, isso não nos diz nada (ou não nos faz dizer nada).
Vejo-me ao vidro e acordo deste pensamento profundo abanado no ombro por um amigo: “Então jovem, já estás todo queimado?”. Nem comecei a beber e já vejo o que esta maldita me vai fazer. Não sei se hei de viver duas vidas paralelas. Uma, depressiva, em que esta rua é o meu caminho: escuro, soturno, macabro, sensação que me esventra e me possui as entranhas; outra, alegre, seguindo o mesmo caminho, só que atravessando uma das portas laterais…e depois outra…e outra…e outra. “O que é que tens?”, perguntam-me. Sinto-me o Ricardo Reis sem sentido do efémero. Sinto-me o Fernando Pessoa que usa o absinto como seu companheiro de mesa; o lápis e o papel fazem o outro lado. Ao menos ele conseguia expressar-se. Libertava-se através dos seus heterónimos. Para quê embriagar-me quando a visão se mantém a mesma? Agora vejo-me num estado estático. É o centro. O repouso. Não há mania. Não há depressão. E o que vejo eu? Cristais? O fundo do copo? A minha face caleidoscopicamente desenhada no vidro expressa aquilo que sou. Sinto-me agora multifacetado e dói-me o atravessar do vidro prismático como se estivesse a ser rasgado. Maldito fotão, maldito sejas. Às vezes queria que um pouco de mim morresse para que não imaginasse as atrocidades que se cometem em nome de quaisquer que sejam os princípios, os valores, a moral ou a ética. Mas como apago isso? “Estás a sentir-te bem?”. Estou. Mas não me ouvem. Apagar o quê? Só posso conhecer melhor o mundo se o sentir de todas as maneiras. “Quem é aquele no fundo da mesa? Ah, somos nós! Venham, juntem-se a mim e vamos abraçados lá para fora!”.
Olhem…aquela é a rua fria e sombria para a qual outrora olhara por cima do meu ombro. Está cheia de pessoas que deambulam e se embriagam, num ambiente quente e acolhedor. Lá ao fundo continua a luz do candeeiro que encerra, com um vidro pouco baço, uma alegre e refringente luminosidade. Todos em volta riem, bebem, choram, vomitam e desequilibram. É a alegria. A ignorância da decadência. Por fim, olho ao mesmo vidro e...não vejo a resposta.

4 de novembro de 2005

Amigos de contingência


Era uma vez uma tarde de feriado, em que se imaginaria uma certa acalmia dos serviços de urgência do hospital. No entanto, parecia que toda a gente tinha decidido magoar-se na banheira ou apanhar gripes; assim, a sala de espera estava atafulhada de gente que esperava impacientemente ser vista pelos médicos. Outros chamavam pela mãe, com braços partidos, pés torcidos, articulações deslocadas... e os balcões não tinham mãos a medir.
Mas esta azáfama não incomodava minimamente o neurocirurgião, que, sentado na salinha de convívio dos médicos, fumava o seu davidoff e repousava os seus olhos desinteressadamente na televisão, onde davam imagens da 1ª companhia. Quando já estava quase a dormir, entra uma enfermeira e chama-o para o bloco operatório. Alguém tinha dado entrada numa ambulância do ENEM, com um traumatismo craniano que lhe tinha provocado um hematoma epidural; tinha sido encontrado caído na via pública, inconsciente, sem documentos.
Espreguiça-se indolentemente, sacode a bata das cinzas e apanha o elevador para o piso -2. Veste depois os preparos da cirurgia e entra na sala de operações. Deitado na mesa, já entubado e envolto em panos, papéis, plásticos, encontra-se um enorme homem negro, com metade da cabeça rapada, algaliado, ligado aos monitores. Inconsciente, anestesiado, até parecia que estava só a dormir, não fosse o enorme inchaço no lado da cabeça que estava rapado. Não tinha marcas exteriores de contusão com objectos usuais, como garrafas, tacos de basebol ou pedras. Devia ter batido com a cabeça no chão.
Observando as imagens da tomografia, podia concluir que o indivíduo, que tinha cara de caboverdiano, tinha já um dos lobos cerebrais quase completamente comprimido pelo hematoma. Se não fosse imediatamente operado ia morrer pela certa.

- Este preto teve sorte que alguém o viu e o trouxe para cá! Metem-se nos copos e depois escorregam e batem com a cabeça!
- Provavelmente nem deu conta. Só deve ter perdido os sentidos quando o hematoma lhe começou a comprimir os miolos...
- Vamos lá então fazer-lhe saltar a tampa, senão morre.

Depois de lhe removerem o couro cabeludo, conseguiram a muito custo abrir-lhe o crânio e retirar uma porção do osso do tamanho da palma de uma mão. Mal retiraram a tampinha, sairam grandes quantidades de sangue. Era uma hemorragia massiva.

- Metam-lhe mais soro e tipem-lhe o sangue! Ele vai precisar de bastante!

Talvez o indivíduo bebesse muito, a avaliar por outros sinais que para aí apontavam. Para além disso, estava a ser muito complicado parar a hemorragia, porque ele evidenciava dificuldades na coagulação.
- Tragam também concentrado de plaquetas que isto não pára de sangrar nem por nada!

Três horas e meia depois, com o negro já a caminho dos cuidados intensivos, estava o neurocirurgião nos vestiários do bloco operatório a vestir-se. Entretanto, conversava com colegas sobre o doente operado.

- Vai ter sequelas de certeza. O preto tinha o cérebro completamente metido para dentro! Parecia que tinha tido um côco encostado ao cérebro! E o que me irrita mais é que se for preciso daqui a um mês já anda aí todo contente nos copos outra vez. Bem, pelo menos talvez não morra disto.

Estalou os dedos, espreguiçou-se outra vez, e vai para a sala de médicos ver mais um bocado da 1ª companhia.

*

Sete meses depois, regressava o médico a casa, depois de ter estado a jantar num restaurante italiano da margem sul com uma amiga enfermeira. Vinha calmamente a pensar na vida e na desculpa que ia arranjar desta vez para chegar a casa tão tarde, sem ter avisado a esposa, já meio alterado por causa do vinho que tinha bebido, e também por causa do charro que tinha fumado no carro com a amiga, pouco antes de se ter despedido calorosamente dela.
Perto da praça de espanha, ao passar por baixo do aqueduto das águas livres, manda a beata do davidoff acabado de fumar pela janela, mas com o vento ela volta a entrar e cai-lhe por entre as pernas. Desesperado pela dor da queimadura, tenta encontrar e apagar a beata, mas ela esconde-se bem. E na curva apertada, espeta o seu potente automóvel contra os separadores de cimento.
Como não levava cinto, voa através do pára-brisas e vai aterrar do outro lado da via, a 10 metros de distância.
Às 4 da manhã, são poucos os carros que por ali passam. Mas, poucos minutos depois, vinha um fiat punto amarelo, rebaixado, de vidros fumados. O condutor abre o vidro, e imediatamente escapulem-se as batidas de um hip hop manhoso de lá de dentro. Ao ver um corpo ferido no chão, e um carro virado do avesso do outro lado da rua, nem pensa em mais nada e vai socorrer a pessoa que ali estava.

- Você está bem?
- Hmmm! Não sinto nada... e o que sinto dói-me...! Foda-se! Tenho os ossos todos partidos... leve-me! Arghh... foda-se... nem consigo ver.

Então o outro homem levou-o ao hospital, onde toda a gente o conhecia. Rapidamente foi para o bloco operatório, onde o operaram a múltiplas fracturas expostas e dois traumatismos cranianos.
Esteve internado um mês, e faria fisioterapia durante um ano.
Entretanto, a sua visão da vida mudou muito. Teve mais tempo para descansar do trabalho, das noitadas no hospital, das longas intervenções cirúrgicas. Aproximou-se mais da família, lembrou-se do que o tinha levado a casar-se com a esposa, conheceu-a de novo.
Resolveu ocupar esse tempo a visitar amigos que não via há muito tempo; a ler romances e outros livros que não os de medicina; a ir ao cinema, a restaurantes diferentes, a ter novas experiências.

Numa dessas noites de devaneio, uns recentes amigos de copos levaram-no a um sítio clandestino, perto do bairro alto, que funcionava num prédio devoluto. O médico perguntou-se para onde o levavam, pois as escadas eram tão escuras que nem sabia onde punha os pés. De resto, como já estava para lá de Bagdad, podia estar em Espanha que para ele era igual.

- Aqui come-se uma cachupa óptima! Vais ver... com esses copos todos já precisas de qualquer coisa no estômago para fazer de mata-borrão!
- Pois, já comia qualquer coisa, já. Mas também bebia uma imperial! De certeza que é o sítio certo? Não parece nada...
- 'Tá descansado que é mesmo aqui. Tenho é que tocar à porta, a ver se nos ouvem...

Depois da porta aberta, saem os donos do "estabelecimento", uns caboverdianos bonacheirões, que perguntam se eles querem frango ou cachupa, enquanto os levam a uma sala atulhada de mesas ocupadas com gente a jogar às cartas, a rir, a tirar fotografias, a beber... e a comer cachupa.
Meia hora depois, enquanto estavam a comer, os amigos do médico levantam-se e vão à casa de banho. Então, ele observa com a sua visão turva a sala cheia de fumo, e saca de um davidoff.
Prende então o seu olhar numa pessoa que parece estar a olhar para ele fixamente. O enorme preto levanta-se e senta-se à sua frente, já bastante com os copos, e ficam a olhar um para o outro durante longos segundos. Então, falam ao mesmo tempo:

- Recuperou da cabeça?
- Então esses ossos estão no sítio, chefe? Grande espeta!

Ambos se calam e começam depois a rir, bêbados e desnorteados, enquanto dizem, Como é que você sabe? e se riem ainda mais, sem saber porquê.

31 de outubro de 2005

Só mais uma oportunidade!

Há dez anos atrás, em plena morna adolescência, costumava jogar freneticamente um jogo que se tornou para toda uma geração um clássico dos computadores: o Doom. Não é um jogo muito complicado. Bastava crivar de balas todas as criaturas que se me deparassem à frente, evitar os projécteis que voavam de tudo quanto é sítio, e ir correndo sempre em frente para avançar até ao próximo nível. Mesmo assim, quando as coisas corriam menos bem, lá caía no chão, e o ecrã tingia-se de vermelho antes que conseguisse apanhar uma daquelas malinhas de primeiros socorros (brancas, com uma cruzinha vermelha) que me devolviam magicamente parte da energia e garantiam assim a sobrevivência.
Isto porque os adversários eram realmente maus, e a sua razão de existência era exclusivamente aniquilar-me. E voltava ao início do nível, desarmado, o que complicava muito a tarefa.
Mas não fazia mal. O jogo permitia que salvasse infinitas vezes a situação, e por isso bastava apenas restaurá-lo a partir de onde tinha salvo por último. E isto dava uma sensação de segurança que me encorajava a avançar destemidamente (entenda-se irracionalmente) contra as hordes de inimigos. Sem medos! Se morrer morri! Da próxima vão ver...
Viciei-me de tal maneira neste tipo de jogos "save now, die later", que me lembro que ia para a cama a pensar neles, e mesmo nos sonhos dava por mim a recomeçá-los quando não me agradavam, qual realizador em busca de um filme perfeito. E foi um conceito que de tal forma se interiorizou em mim que, em inúmeras situações reais, quando tinha que tomar uma decisão, ou quando estava perante um dilema, ou ainda quando algo corria mal, havia um pequeno arrepio que me percorria; um calorzinho acendia-se no meu estômago e o coração batia duas ou três vezes mais depressa, enquanto numa fracção de segundo essa ideia de segurança aparecia subitamente, para depois desaparecer da mesma forma. Como se me lembrasse: "não te preocupes, podes voltar atrás!" e imediatamente depois "ah, isso é no jogo". Durante vários anos, mesmo depois de deixar de jogar computador, isso aconteceu-me inúmeras vezes.
Quando era ainda mais novo, aprendi rapidamente que os erros nos ditados podiam ser corrigidos apagando com borracha de tinta. No entanto, não podia apagar muitas vezes, porque se assim fosse acabava por deixar uma janela para o outro lado da folha. No entanto, não era grave. Nestas idades temos sempre oportunidades infinitas para aprender, e as consequências dos erros nunca são demasiado dolorosas.

Muito mais tarde, quando comecei a desenhar com o intuito de exprimir sensações e sentimentos, apercebi-me de que o uso da borracha comprometia o trabalho final. Se o lápis fosse muito duro, vincava o papel; se fosse demasiado mole, borrava o desenho. Decidi naquela altura que nunca mais usaria borracha nos meus desenhos. Enquanto desenho, vou esboçando a ideia com traços leves, gradualmente mais intensos, até terminar a minha expressão. E os traços aberrantes (ou erros, dependendo da perspectiva) vão sendo, mais do que substituídos, sobrepostos por outros traços mais fortes, que os endireitam, como suportes para feijoeiros mágicos. E os erros, em vez de suprimidos, passam a fazer parte da massa global do desenho, tal como as linhas de força. Não desapareceram, estão lá, embora quase imperceptíveis para outros olhos que não os meus.
Nos jogos de computador, temos todas as oportunidades que quisermos para seguir em frente. Normalmente até podemos fazer batota e ter vidas infinitas. E com os "saves" de situações anteriores, até sabemos como é o jogo dali para a frente, o que o torna desleal para os nossos inimigos. Na infância e adolescência, contam com os nossos erros e chegam a encorajá-los para depois nos mostrarem que é com eles que aprendemos: é o mesmo que nos ajudarem a desenhar as letras com a mão sobre a nossa e manejando o lápis por nós, ou como nadar com braçadeiras...
Quando desenhamos, também temos muitas oportunidades de endireitar o que ficou torto, e mesmo que o resultado seja péssimo podemos sempre tentar outra vez. As segundas oportunidades dependem, nestas circunstâncias, da nossa vontade.

Mas crescemos.

Toda a minha vida foi feita de segundas oportunidades, e não me canso de o referir. Mudei de corte de cabelo, de curso, de namorada, de roupa. Mudei de ideias. Em alguns casos mudei de valores. Excepcionalmente, mudei até de princípios. Mas quanto mais velho fico, mais me convenço de que é cada vez mais difícil obter segundas oportunidades. Mais, mais, mais exigência. Menos, menos, menos tolerância.
Errar é humano, perdoar é divino. E as pessoas normalmente não são divinas, pelo que não dão segundas oportunidades umas às outras. As decisões são cada vez mais difíceis de tomar, porque acarretam consequências progressivamente mais pesadas. "Estás a ficar um homenzinho!" - diziam os grandes quando só tinha meio metro. Mas agora que tenho pouco mais de metro e meio e ainda me sinto muito novo e verde, achar-me-iam pretensioso se me quisesse escudar na posição de puto inexperiente. Para além disso, vivo num mundo em que quase todos os que me rodeiam se regem pelo princípio de que não há segundas oportunidades para causar primeiras impressões...
O disparar de um tiro; o acto de travar para evitar um acidente; uma frase que apetece dizer, um virar de costas irresistível, um beijo que se quer roubar... cada vez menos há a liberdade de optar sem consequências. Cada vez menos tenho a noção do que vai acontecer a seguir. E, para piorar, cada vez tenho menos tempo para escolher o rumo a tomar em cada encruzilhada; algumas vezes são dias, outras horas, e em casos específicos temos de agir em segundos, sob pena de perder o timing: o interesse de uma pessoa que nos agrada; o segundo certo para uma fotografia; a reanimação de uma pessoa em paragem cardio-respiratória. Toda esta pressa maximiza a probabilidade de fazer escolhas erradas.

Aprendi à custa de muitos remorsos a arrepender-me apenas do que fiz, e não do que não fiz. Bem sei que é um lugar comum, mas evita que nos atormentemos com o passado.
Mas agora a tormenta é outra, e muito mais forte, à medida que chego ao cume da montanha do ser-se adulto.
É que é muito doloroso ter que esperar por uma segunda oportunidade que nunca irá chegar...

14 de outubro de 2005

Sleight of hand

É curioso pensar sobre como a vida toma o seu rumo. Distraídos, nem sentimos o tempo a passar por nós, enquanto vamos percorrendo o nosso caminho... saltamos troncos caídos no carreiro, baixamo-nos para passar por baixo de um ou outro ramo de árvore, enquanto pensamos a todo o momento nas nossas opções e no que elas implicam. Pensamos mesmo?
Nunca fui um fatalista, nem tão pouco determinista. Não acredito que tenho um destino encomendado. Mas acho que, embora o nosso percurso seja influenciado pelas nossas vontades mais ou menos intensas, é-o como um barco muito pesado que segue em frente, e que, de vez em quando, se desvia uns poucos décimos de grau de cada vez que acordamos da letargia e sopramos nas velas com uma direcção diferente!
Quando era novinho, via o meu pai como exemplo de princípios e virtudes, e queria ser como ele quando crescesse. Depois veio outra fase em que pensei que, apesar de lhe reconhecer várias qualidades (entre as quais a educação que me proporcionou), não quereria seguir-lhe as pegadas. De certa forma, a minha capacidade de análise, à medida que se ia desenvolvendo, permitia-me desejar que só queria absorver a parte boa dele (se é que se pode imaginar uma divisão tão artificial), evitando as suas falhas. Por fim... e talvez fruto da tal letargia que nos impede de ter consciência de que a vida é um bem precioso que não pára de se esvair como areia por entre os nossos dedos bem abertos... dou por mim a ser muito parecido com ele, particularmente nas falhas que, alegadamente, tem. Não deixa de ser curioso. É apenas um exemplo de que a nossa força, usada a espaços, entremeada com períodos de dormência, não chega para desviar o barco tanto como estaríamos convencidos de ser capazes de fazer.

Quando desenho, raras são as vezes em que consigo acabar uma ilustração tal e qual como a imaginei de início. Erros, traços erráticos, apagadelas de dedo, vão contribuindo para que o resultado final seja menos ou mais diferente do desejado inicialmente. Quando, num dado ponto do espaço e do tempo, paramos para reflectir no futuro, há sempre meia dúzia de ideias que pretendemos ver concretizadas, como se imaginássemos um esqueleto de como pretenderíamos que a nossa vida fosse nos próximos anos. Mas, daqui a algum tempo, ou mesmo há algum tempo atrás (noutro local, noutra altura, portanto), essas ideias serão/eram, pelo menos, ligeiramente diferentes. E o barco vai andando, sempre em frente, como que puxado por um raio de tracção de um disco voador extraterrestre, mesmo que, de quando em vez, seja um bocadinho desviado por guinadas; umas, suaves, prolongadas, quase imperceptíveis, como um sopro num dente-de-leão; outras, mais fortes e curtas, em jeito de mioclonias durante o sono.
É raro lembrarmo-nos do esqueleto vital que tínhamos esboçado antes, e isso é independente do detalhe de nos sentirmos ou não felizes com a vida que temos actualmente. As coisas nunca correm exactamente como queremos; na maior parte dos casos, acontecem de forma muito diferente. Feliz ou infelizmente? Nunca o saberemos; e ocorre-me a ideia de que o facto de não nos lembrarmos é uma defesa do Eu, do Nós, contra a potencialmente desastrosa tomada de consciência do fracasso que sentiriamos se pudessemos comparar o idealizado com o realizado.
Olho para a minha vida e vejo que tenho seguido um percurso muito atípico. De cada vez que calha meditar sobre isso, sinto-o com um misto de orgulho, inquietação, vaidade e resignação. Não que o meu barco seja leve e fácil de manobrar. Simplesmente, o eixo em torno do qual ele oscila tem um declive bastante diferente do da maior parte dos outros barcos. Como diria um grande amigo meu, não sou exemplo para ninguém; ele tem com certeza uma grande dose de razão.

Vamos então ficando mais velhos, como num passe de mágica. Nem damos por isso! Sinto-me como um caracol a arrastar-me vagarosamente pelo presente, mas quando olho para trás vejo que passou tudo tão depressa. Até mesmo o que custou a passar. A vida é um cigarro que só se apaga no fim... nem que lhe chova em cima, entretanto.

No fim desta reflexão, a lição que vou aprendendo é esta: rematemos, nem que seja de longe! Escrevamos, nem que a sintaxe seja ilógica! Não tenhamos medo de tocar o outro, de lhe provocar reacções, de o acordar da latência! Não nos deixemos parar pelo medo do ridículo; pelo embaraço; pela impaciência de chegar a amanhã! Bebamos um bocadinho de cada taça! Declaremos despudoradamente as nossas paixões! Não percamos o timing... por favor.
Já que o barco vai em frente, porque não gozar a viagem ao máximo? Quando ele chegar à margem, não vamos ter tempo para arrependimentos. Mas também não teremos outra oportunidade!

24 de setembro de 2005

Desde México

Es increíble como las conexiones en la vida se dan.
Las presentaciones en algunos casos no importan tanto, creo que son las palabras y el pensamiento real lo que te hacen conocer a una persona.
Claro, aunque siempre es necesario tener una referencia de mi, de dónde vengo y de lo que hay en mi vida.
nací hace 22 años, en la hermosa y surreal Cd. de México, por el momento estudi y trabajo, tengo conflictos en mi vida un poco distintos a los de los otros jóvenes...
ya ahora estoy aquí, conectadome desde el otro lado del Atlántico con ustedes, no hay mucho que decir hoy, poco a poco espero que se interesen en conocerme a mi, mi mundo y mi cultura.

17 de setembro de 2005

...

Como pode a emoção
Tão veementemente ser tocada
Num tempo sem lugar
Neste e naquele altar
Em que a sagacidade do sonho
Ultrapassa a vida
Que dele tando carece!
Que força nos impele ao ignóbil mundo
Em que a tristeza aquece
A fiel magia de uma prece
Poética ...musical...
Que o tempo não esquece!
Loucura
Que abarcas o desespero
Que enaltece este fundo sem chão...
Só tu
Música serena e bela
Só a ti me apetece!

4 de setembro de 2005

I might be wrong - parte III - Partir os meninos todos

Estava eu já em alta, com meia dúzia de imperiais no bucho e a caldeira a trabalhar com umas ganzas, no meio dos camaradas do Avante, a fazer moches de cada vez que dava uma carvalhesa (o pessoal jovem de lá sabia a música toda! Isto é que é dedicação à ideologia...) e recebo uma mensagem de um bacano que eu conheço: "Queres vir fazer uma maratona de futsal em Talaíde? Pagas 10 euros mas os prémios são bons! Aparece amanhã em frente à igreja, às 18:30". E eu pensei: Ah e tal, vou lá partir os meninos, é como roubar um doce a uma criança... tenho bué experiência e tal, chego lá, número 10, pareço o maradona, os putos até vão parecer bonecos a cair. Nem é preciso um gajo tar em forma, vem tudo das férias, aposto que os gajos fumam bué e nem andam a pé, e são aquelas equipas das empresas que não jogam um caralhinho à bola, tipo aqueles gordos com barba por fazer, matarruanos que guiam aquelas carrinhas memo à sacana, que aparecem lá só por causa do jantar a seguir ao jogo, e umas bujas... tá limpo. Respondi a dizer que sim senhor, que que contassem comigo. E o dinheiro do prémio, dinheiro fácil, faz-me jeito!

No dia a seguir, ainda tava uma beca cheio de sono... meio a ressacar... e dou conta que nem ténis tenho pa jogar à bola. Procuro lá por entre os chanatos, as galochas de quando ia apanhar girinos para o lago que havia no inverno em frente à minha casa, os patins em linha da minha irmã aos quais tirei as rodas para fazer um carrinho de esferas, os pares de ténis que não quis deitar fora embora estivessem todos fudidos e com os dedos dos pés à mostra... encontrei uns adidas antigos, um número abaixo do meu, que não calçava desde que a decathlon abriu. E pensei: Ah, isto vai dar de certeza! Até faz o pé maneirinho, tipo rui costa, vai parecer que estou a fazer crochet com a bola! É mesmo a dar a pinta de predestinado! Já tou a ver os bacanos todos com ténis da Sanjo, Rainha ... e eu com uns ténis à puto... vou lá e parto os meninos todos! E os gajos a dizerem: epá o gajo corre bué, cuidado com ele!

Cheguei lá ao pavilhão... fiquei com o número 25, mas não me chateei, até fiquei contente porque assim olhavam pa mim e diziam ah, o gajo é o 25, não deve jogar népia, senão era o 7 ou o 10, caguem nele... e depois eu ia ter espaço para explanar o meu futebol. Não que eu precisasse, mas sempre dá para brilhar mais uma beca se não tiver uma carraça atrás de mim.
Tinham dito pa levar uns calções azuis, arranjei lá um fato de treino velho, azul, e mandei-lhe umas naifadas... aquilo ficou uma perna mais curta que a outra, pareciam calções de Râguebi, mas que sa foda, o que interessa é não os ter à mostra.

Primeiro jogo. Comecei a aquecer e tal... do outro lado os outros, com treinador e o caralho... altos exercícios, todos cromos! Eu tipo a dar toques na bola, fodax, aquecer pa quê? Chuta-se meia dúzia de vezes à baliza, do meio campo, e tá limpo! Molha-se o cabelo e faz-se um penteado à Quaresma (porque há gajas a ver o jogo) e olha, vamos lá partir a loiça toda.
A outra equipa tinha um equipamento todo ZLBD, tecido reforçado com os melhores linhos do Egipto, com umas abas em corte tipo selecção de futsal campeã do universo, patrocinado pelos Canalizadores Tavares e Filho, branco. Comecei-me a rir: ah, estes nem andar sabem. Muita fraquinhos, vai ser futebol espectáculo. Todos meiinha branca por cima do joelho, à Cristiano Ronaldo... deus me perdoe. Levam uma fruta naqueles joelhos, perdem logo a mania. Até têm um grito de guerra! E são 10! Nós só somos 5! 10 jogadores pa quê? Estes putos metem-se a jogar playstation e depois não correm nada. E aposto que têm asma e rinite alérgica... eix... até tiram foto da equipa! Grandas cromos...

Começou o jogo. Epá, tá uma beca de calor... humidade relativa superior a 100%, de certeza. Começo a transpirar, dou um sprint, chuto à baliza... parti-me todo. Epá, isto tá a custar um bocado. O segundo ataque... parto lá os rins a um gajo... corro assim de ladecos pelo campo, faço o corredor todo, passo o meio campo... epá cá vai disto, baaaamm... a bola vai ao poste e entra. Fodax granda golo, 1-0, eu bem tinha dito... grande jogador, tou a passar ao lado de uma grande carreira! Tudo a aplaudir e o caralho, obrigado, obrigado! Corro para a defesa outra vez. Mas os gajos a trocar a bola... nem fintam nem nada... tão feio! Têm medo, de certeza, e depois dizem números uns para os outros, e o treinador também diz números, um gajo deles vai marcar canto, diz um número, acho que era 18, devia ser a idade dele, achei por bem dizer-lhe a minha que é 25, de onde é que veio este gajo, Golo deles.
E continuam a dizer números uns para os outros... e a fazerem figuras geométricas no campo, fodax às tantas aquilo parecia um caleidoscópio, já nem sabia qual deles é que tava a marcar, são todos iguais. Comecei a ficar uma beca cansado... golo deles, golo deles, golo deles, fodax, sou substituido. Sento-me lá num banco de lado, faço logo uma poça no chão, de suor. Golo deles, golo deles, golo nosso. Intervalo.
"Atão pá? Os gajos trocam bué bem a bola... nota-se que treinam e o caralho... e eu vim ontem da terra, aquilo lá para beber minis é fodido pá!"
"Epá eu tenho aqui umas bolhas nos pés, já não jogo há bué! É melhor ficar cá atrás agora...".
Resumindo, no fim do jogo, 8-5 para eles. Ainda podemos passar, no próximo jogo é que é! Estes treinavam, nota-se bem... a gente não treina, nunca tinha jogado com a minha equipa, mas tínhamos o fábio, o cajó, o bernardino, e o serrado, tudo grandas estrelas da bola. Não tínhamos era feito a pré-época, mas isso não deve importar assim muito. Não foi por isso que perdemos, de certeza!

Fui para casa, descansei... comi uns pacotes de açúcar... fiz mais umas cenas, meti-me na net, vi uns vídeos com umas gajas... bué fixe... relaxei uma beca... voltei para lá... agora é que é! Vou partir os gajos todos. Cheguei lá e vi uma gaja a aquecer! Estes têm uma gaja na equipa! Eix... vai ser lindo. "Apalpas a gaja e ela larga a bola, eheheheh!". A primeira vez que peguei na bola, dou uma cueca num, e cá vai disto, Bam do meio da rua, com toda a força nas costelas da gaja, o rabo de cavalo dela parecia um cometa! Fui lá pedir desculpa e tentar ajudar a levantar, a gaja levanta-se sozinha: tá-se bem! joga a bola pá! E eu... ai é? fodax, és rija pa caraças... Estes defendiam à zona, metiam o autocarro em frente à baliza e depois jogavam em contra-ataque. Pá... levámos 8-5 outra vez. Vim pa casa todo fudido, atão os gajos tinham uma gaja na equipa e a gente perdeu? Descansei uma beca... nem deu para dormir bem, mas eu sou rijo pá, corro bué, dormir é pa gays.

Cheguei lá de manhã, um sol do caralho... bué calor dentro do pavilhão. O resto da equipa aproveitou para ir dar uma volta a Santos, beber umas bujas para matar o tempo. Chegaram 5 minutos antes do jogo, só deu para meter o equipamento, mas aquecer pa quê? Isso é pó pessoal mais velho que tem lesões e reumático! Eles eram uns putos, todos crominhos, parecia que tinham um equipamento à Estoril, amarelo e azul ou lá o que é!. Pá, devem jogar mal, este pessoal mais jovem não joga nada, têm a vida facilitada, são franguinhos, em vez de pés devem ter raquetes, tal como a bola vem a bola vai! De certeza! Sou mais velho, é só preencher bem os espaços, à Baresi... passinho à frente, passinho atrás, corrige a posição, tá limpo.
Tá bem tá. Levámos 14-3 dos putos, bazámos dali e levámos a mala cheia pa casa... eram 10 da manhã. E por altura deste texto, falta meia hora para começar o 4º jogo, o qual vamos perder 3-0 por falta de comparência.

Pude tirar algumas conclusões com esta maratona de futsal:

1 - Não posso sair tanto à noite, não posso mamar tantas bujas, e ganzar, nem pensar nisso é bom. Pulmões é mentira, e depois jogar à bola torna-se irremediavelmente coisa do passado.
2 - Fodax, uns ténis já se compravam. Logo depois do primeiro jogo tinha as unhas dos pés partidas. Os dedos parecem parecem caracóis esmigalhados, com bocados de carne, sangue, pele, unha partida, e uma aguadilha estranha.
3 - Correr para ficar em forma também dá jeito. E treinar um bocado antes dos torneios, é capaz de ser vantajoso. E um gajo sabe jogar à bola, não sabe jogar futsal. E queremos levar a bola pa casa... É como saber guiar e saber conduzir. Jogadas estudadas com números? Treinador? Bué gajos a rodar na equipa? Sempre a trocar a bola? Eles são capazes de ter uma beca de razão.
4 - Perdi 3 quilos desde ontem. É verdade, eles tinham lá uma balança!
5 - Não torno a masturbar-me antes de ir para os jogos dos torneios.
6 - Um gajo já não tem 18 anos para ir para os copos e no dia a seguir estar fresco como uma alface!

Enfim... vou meter os pés num alguidar com água e sal.

2 de setembro de 2005

Posso fazer uma pergunta?


Há vezes em que é preciso abrir a janela e deixar entrar o fresco da noite para não morrer sufocado. Há vezes... em que é preciso esfregar as costas da mão numa lâmpada incandescente até que o sangue ferva... para acordar da música feita de acordes menores, tristes, cantados em voz baixa, com agudos doridos e sofridos... e reintroduzirmo-nos à ideia de que o mundo não gira à nossa volta.

Passamos toda a vida a saltar entre o planeta EU e o planeta NÓS. Mal nos distraímos, somos sugados para o buraco negro do nosso ego. Depois eventualmente acordamos e reactivamos a indispensável consciência da nossa dimensão relativa. E outra e outra vez, como quando uma criança brinca com um interruptor da luz.
A nossa pequenez pode ser sufocante... frustrante... mas também pode ser reconfortante. Tudo depende do lado em que estamos da barricada: se junto daqueles que têm medo de ser felizes - esses, encolhidos, vivem na trincheira e eventualmente morrem mais velhos, tuberculosos, com água pelo joelho - ou junto dos outros, que se amarram aos foguetes para ver mais de perto o fogo de artifício, e aceitam sempre o mau como preço a pagar pelo bom; a adrenalina do risco como parte da recompensa. Esses muitas vezes não regressam para contar como se faz...
Encurralados entre os dois extremos, estão aqueles cuja vida se transformou numa tentativa desesperada de misturar água e azeite, e fazer sumo de azeite. Aqueles que alternam a euforia de viver dos corajosos com a tristeza de um bebé que chora porque quer sempre mais atenção; variam da sangria desatada de cantar e pular... para o medo de espreitar por cima do muro!
Esconde-te... sobrevive... acorda, levanta-te, vibra, estala, anseia! Explode! ... Foge! Corre! Atira-te ao chão, rebola, desvia-te... rasteja... submete-te, esbate-te. Uma vida com distribuição apenas aparentemente normal...

Portugal é um país de bipolares, com tendência maior para a depressão. De certeza que já alguma pessoa importante o disse. Vivemos de auges e períodos áureos... muito, muito espaçados no tempo.
Como orgasmos de uma frígida.
Como as miríades ondas da nossa interminável costa, que vêm e vão...

30 de agosto de 2005

Sei lá...


Talvez porque a noite vai longa e o calor de mais um dia de verão deu finalmente lugar ao frio de um luar límpido e estrelado, onde dois lasers se cruzam em direcção ao nada; talvez por isso... eu sinta esta vontade enorme de escrever.
O espesso e pesado ar da estação, lascante e árido, fere e arde como as feridas a descoberto (após dascarnadas as crostas). É uma sensação estranha! Eu amo o sol, a praia, a água... embora não consiga esquecer a chuva, o gelo matinal a música percutida pela água que choca com o vidro.
Mas não pretendo ficar para aqui a fazer considerações acerca das minhas preferências sazonais. Gostaria sim de me lançar num campo de padrões e contrastes onde me perco, talvez por incompreensão e ignorância, talvez por feitio!
Há muito tempo que procuro entender por que razão determinados grupos de pessoas tendem a seguir à risca um determinado rumo, ladeado por gostos definidos e incontestáveis. O que leva um indivíduo a defender acerrimamente determinado comportamento ou maneira de estar?
As minhas dúvidas e interrogações baseiam-se em experiências vividas com vários amigos com os quais, nas mais diversificadas actividades, vou tendo oportunidade de contactar.
Descrevo tal relacionamento como clusters individualizáveis por traços visuais, gostos musicais e literários... papéis desiguais. Não sei qual a designação correcta de cada tribo, se assim lhe podemos chamar (penso que sim), muito embora as sinta e veja e tente compreender e compreendo!
Não é muito difícil chegar a esta constatação. Quem ainda não reparou no grupo hip-hop, tá’s bem, yo, calças largas, medalhas ao peito? Quem ainda não se apercebeu do grupo Bob Marley, rasta people de mochila às costas e chinelos na plataforma da estação de Santa Apolónia? Quem ainda não deu conta da cultura urbana e subversiva que ama o Chiado e o Bairro e vive sequiosa de lutar pelas causas mais à esquerda (atenção, não pretendo estar contra esta posição porque até eu sou de esquerda.. não o nego) ao som de Placebo, Jorge Palma, Jeff Buckley, Nick Cave, P.J. Harvey, Ben Harper (para alguns), The Gift, Ornatos (Pluto), Xutos, Radiohead e porque não Pearl Jam, entre tantos outros? Quem ainda não ouviu os berros da cultura trash, negra, macabra; culto da auto-destruição, muitas vezes presente em mentes conturbadas, puro fruto dos tempos... solidão? Há ainda a cultura dita “clássica”, nome que eu contesto quando no qual se pretendem incluir nomes como Debussy, Chopin, Bach, Ravel, Liszt... entre tantos outros! (optei por não entrar pelos campos da Pop, fiquei-me pelo Hip, pelo pessoal da House, entre tantos outros que de certo serão conhecidos por todos).
Perante o parágrafo anterior (bastante incompleto, dado o limite de espaço; vale pela intenção, assim o espero) facilmente se constatam as diferenças vigentes na sociedade jovem (sobretudo) actual. Vivemos de ícones, tentamos seguir as tendências que nos parecem ser as mais originais e estar de acordo com a nossa forma de viver a realidade. Procuramos a todo o custo a singularidade, muito embora sejamos atraídos para um campo de particulas em tudo semelhantes.
Antes de concluir o meu raciocínio, daria o exemplo do recente concerto U2 e do fanatismo exacerbado para ouvir uma banda que quanto a mim (e não entrando pelo campo das missões) vive do passado e do espectáculo visual; da expectativa criada nos milhares de fãs que muitas vezes ali estão mais por se tratar de U2, do que por apreciarem a sua música (quanto a mim demasiadamente repetitiva, como se fosse oriunda de um papel químico... mas isto é uma opinião pessoal). Bem sei que uma banda, para manter determinado status, necessita de criar todo um envolvimento e “grau de dificuldade” soretudo no que se refere à obtenção dos bilhetes contudo, e agora não me referindo exclusivamente a U2, penso que os ditos músicos dão mais música do que aquela que fazem. Perdoem-me os fãs!
Um conselho que costumo sempre dar e que tabém a mim foi dado é o de, aquando da audição de uma música, fechar os olhos e tentar seguir o rumo de cada instrumento, tentado posteriormente reuní-los num conjunto, que acabará por constituir a própria música. Em seguida junto a letra e tento perceber o que quer dizer. Desta simples actividade resulta ou uma obra-prima, ou algo que até parecia ter nexo mas que cai num marasmo completo, quando se tenta valorizar o verdadeiro sentido musical. Fica aqui o conselho...
Mas voltando à ideia inicial, e tomando como novo ponto de partida o que anteriormente referi, torna-se de certa forma claro que muito antes dos gostos que nos movem, vêm os sentimentos e emoções que experimentamos ou experimentámos aquando do primeiro contacto. Não condeno que alguém goste de algo que considero absolutamente horrível, se esse algo se fez/faz acompanhar de um sentimento marcante e belo (também isto é válido na versão marcante e triste).
Alguns dos exemplos que considero válidos são os “grupos da adolescência”. Quando falo com pessoas mais velhas, apercebo-me que há uma camada louca por Pink Floyd, Led Zeppelin, Rolling Stones, entre tantos outros que nada significam para muitos de nós, mas que marcaram toda uma geração que continua a segui-los/ouvi-los, talvez porque esse acto desperte e abra espaço para um certo reviver do passado, mesmo que pela memória de escassos minutos.
Todos nós nos movemos num espaço limitado de singularidade de comportamentos, ainda que a nossa vivência desses comportamentos seja única, tal como o nosso genoma. Podemos achar que ouvir música dita “não comercial”, é de facto não comercial esquecendo-nos porém que, como nós, muitos outros compram essa mesma música. Contudo, penso que poderemos afirmar que qualquer música, “comercial” ou não, desperta em nós sensações diferentes e únicas, boas ou más. É isso que faz com que gostemos ou não!
Foi precisamente por isso que decidi enveredar por este rumo, nesta noite, neste preciso momento em que ouço uma das músicas do “Paciente Inglês”, um dos filmes mais marcantes da minha vida.
Como é curioso!
Se me pedissem para resumir o filme tanto poderia dizer que se trata de uma história tipo novela de quinta categoria, em que um gajo cai de uma avioneta ficando todo queimado e é recolhido e acolhido por uma enfermeira, sendo que ao longo do filme nos vai sendo contada a sua história até ao fatídico episódio da queda... afinal ele está assim porque quis... quem mandou meter-se com a gaja!; Como poderia contar a história como de facto me marcou, tornando-se impreterível o relato da cena inincial em que K desenha as figuras representadas numa pedra; a noite da tempestade no deserto e o prenúncio de uma ligação entre ambas as personagens; a ária das Goldberg Variations de Bach tocada num piano no qual se escondia uma bomba; as velas colocadas ao longo do caminho que guiava a enfermeira até ao soldado; a dança aérea sobre o extenso areal, acompanhada pela música que ainda hoje, neste momento em que escrevo, me causa arrepios; entre tantas ouras cenas e momentos de rara beleza!
Talvez se ouvisse a música das “Palavras que nunca te direi”, também ela composta por Gabriel Yared, não sentisse aquilo que agora sinto. E porquê? Porque aquilo que em mim ficou apenas se faz de música... faltando os restantes sentidos... as imagens! E tudo isto para exemplificar a incongruência da intransigência que se faz sentir nos dias que correm.
Hoje tudo se partidariza... tudo se fragmenta! Todos puxam para seu lado, tal como as galáxias que se afastam. Contudo, se a extrapolação assim o permite, tudo se reunirá de novo, num ponto de atracção mútua, de polos opostos que interagem entre si!
Na minha opinião cada um de nós deverá libertar-se para sorver tudo o que hoje se encerra em blocos de tendências e modas. Quer gostemos, quer não, deveremos sempre dar uma oportunidade para que aquilo que para nós não faz sentido tenha uma oportunidade para se explicar... afinal... se faz sentido para tantos outros...
Não devemos discriminar mas sim aceitar, ainda que não partilhemos ou perfilhemos dos mesmos gostos e opções. Só assim, de consciência formada, poderemos dizer não e sim. E se dessa atitude a fragmentação resultar... será uma pseudo-fragmentação porque de certo, algo de diferente ficou em nós, algo de semelhante nos aproxima de outras (mesmas) realidades.
Façamos então um esforço para a compreensão... Só assim poderemos atingir uma vivência mais verdadeira connosco e com o mundo. Só assim poderemos enriquecer as relações interpessoais... o que se torna obrigatório para toda a gente e, em especial, para aqueles que como nós pretendem encarar a dura realidade da doença e do sofrimento- esse sim, global e universal, no “agora e sempre” em que vivemos.

e no regresso...

penso que o link falará por si;) espero que gostem:)

http://pwp.netcabo.pt/isabel_bogalho/exp2.swf

24 de agosto de 2005

"Faz hoje um ano ..." - The hidden truth

Pois é, amigos. Ele diz que o blog testemunhou todo o seu estado de espirito, ora deprimente e catabólico, ora eufórico e anabolizante. Eu digo que vós não haveis testemunhado a verdadeira transformação que vai além da psique que ele expôs! Na foto seguinte vemos o STP de há um ano, com a sua mítica Carlsberg (onde se lê "Carlsberg" podem colocar a marca de qualquer outra cerveja do mercado - este homem é pior que um barril de 500L da Super Bock, onde as leveduras fermentam sem parar: amigo, continuas assim e espera-te uma fibrose hepática difusa em que as tuas células de Ito não pararão de trabalhar!):


Mas não é na alusão à "Champomi" de copo que está a diferença! A próxima imagem falará por si só: extravagância, glamour e uma expressividade artística inigualável à da alta costura! Qual Versace, ao fim de um ano, STP mostrou os seus dotes que tinha vindo a cultivar com o seu nick original e famoso "Toufartodegajas". Como diria Artur Albarran: "Vamos ver...".

Jovem, espero que tenhas gostado desta forma de te congratular pelo facto de estares um homem novo! Que continues cheio de força e originalidade, divertido e ébrio, acutilante e sóbrio, enfim, numa multiplicidade de comportamentos que, certamente, os autores e leitores deste blog gostam/gostarão de ver.

8 de agosto de 2005

Faz hoje um ano ...

Faz hoje um ano... que tudo para mim começou a mudar. Os horizontes, os ambientes, as pessoas, a concepção do mundo, tudo o que tinha tomado como certo variou.
A dimensão que atribuía a cada coisa mudou dramaticamente. Acordei de um torpor doce no qual vivia há anos e tomei conhecimento de que a vida tinha muitos mais elementos do que aqueles que pensava ter. Muito mais coisas, boas e más.
Como uma luz forte que atravessa um quarto escuro por entre uma frincha de uma porta que se entreabre subitamente, fui cegado durante muito tempo. Durante quase um ano, diria. Agora sim, vejo melhor à minha volta; aprendi a roer as maçãs sem trincar as lagartas; os meus olhos já se habituaram à claridade.
Durante este ano, foi como se estivesse sempre pedrado. Com as pupilas dilatadas, midriáticas, vi tudo de uma forma muito mais aguda, arguta, aguçada. As arestas e cores vivas feriram-me uma vez após outra, sem que conseguisse filtrar toda aquela luz intensa. Fui contra algumas paredes, vislumbrei algumas miragens ... enquanto muralhas outrora sólidas se desmoronavam, rebentavam como bolas de sabão.
Faz hoje um ano que me separei da pessoa que mais conseguiu esculpir o bloco de pedra que sou. Também está a fazer um ano que conheci a pessoa que me encontrou a flutuar, à deriva, me acarinhou, evitou que me afundasse, e, mais tarde, na praia, me encalhou bem profundamente na areia, como um padrão dos descobrimentos.
A essas duas pessoas o meu profundo agradecimento por tudo o que me fizeram. As plantas crescem com adubo, mas também se tornam mais altas se lhes podarmos as folhas mais próximas da raíz...
Tantos anos de estudo fizeram-me medir o tempo em anos lectivos. Sem dúvida que o ano de 2004-2005 foi o ano de todas as mudanças, de conturbadas alterações...! Foi neste ano que perdi a inocência que me restava; foi neste ano que me tornei adulto, na boa e na má perspectiva.
O blog também fez um ano. E sinto-me mesmo orgulhoso por ele atestar todas estas mudanças; com alguns intervalos pelo meio, é certo, mas mostrando o percurso sinuoso que fiz. Este ano foi demasiado pequeno para tantas emoções - e vocês participaram delas!
Um abraço, e até ao meu regresso...