1 de agosto de 2007

Killing Me Softly - parte 1


"Queijas, anos 80. Agora está lá um Pingo Doce. A baliza, feita pelos putos, nunca caiu."
É madrugada e está quase na tua hora. Está entreaberta a janela do quarto, e as frinchas dos estores, aqueles que não me lembro de alguma vez conseguir fechar completamente, deixam entrar alguns raios da luz tão própria dos candeeiros deste momento. O silêncio é total e só estou aqui eu.
Por esta altura, talvez só as carrinhas da distribuição do pão, dos bolos, dos jornais. Talvez apenas elas interrompem o silêncio lá fora, de vez em quando. Os pássaros ainda dormem. Ainda é cedo para que a sua confusão de chilreares dê forma ao novo dia que aí vem. Também ainda não é altura do sol nascer, mas se eu estiver acordado já consigo sentir na minha pele as ondas de ar cada vez mais quente, aquelas que fazem adivinhar que vem aí mais um dia de calor.
Está quase na tua hora. Espero a qualquer momento que a porta do meu quarto expluda e me acordes brutalmente. Sem preparação paliativa, será algo como “João.”, ou “Está na hora.”. Ou, em dias mais criativos, “São cinco e meia.”. Apenas e só uma palavra ou frase, em tom grave, numa frequência que faz tremer pelo menos um bocadinho as fundações do prédio, que se ouvirá na casa toda, e que invariavelmente me fará saltar na cama e responder instintivamente “Hã!”. Ou então, de forma mais educada, “Sim!”, se é que há no instinto alguma educação. De qualquer forma, eu nem saberei o que digo, pelo que estas palavras monossilábicas próprias do acordar poderiam perfeitamente ser substituídas por um grunhido assustado, proferido com aquele ar residual que parece ficar nos pulmões depois de uma noite inteira sem respirar. Ou por aquela primeira tossidela de quem acaba de nascer.
Mas hoje eu acordei espontaneamente, e sem nenhum motivo em especial. Estás sentado numa cadeira, junto ao armário, perto da janela. Não sei como conseguiste arranjar espaço, no meio de tanta tralha e confusão. Roupa usada, caída no chão ou empoleirada em cima da bicicleta – é o melhor cabide que conheço – bolas de desportos vários, quilos e quilos de fotocópias empilhadas no chão, das quais só devo ter lido metade, e que nunca vou conseguir arrumar apesar de estar de férias – vou talvez conseguir mudá-las de lugar, e ficarão igualmente desarrumadas, embora talvez um pouco mais longe do meu campo de visão imediata. O que é certo é que conseguiste, e a luz dos candeeiros, filtrada pelas frinchas do estore, aquela luz tão própria dos candeeiros amarelos àquela hora em que estão quase a apagar-se embora ainda o sol não tenha nascido, desce obliquamente, esboça a tua silhueta e projecta-a na minha nudez deitada. Não é possível ver a tua cara, mas conheço-a bem. És como uma fotografia com demasiado contraste, em que se perdem os pormenores mas ficam mais fortes as formas realmente importantes. Ainda assim, sei que estás com o teu robe turco, azul claro roçado.

- Não consigo tirar da cabeça a música “Killing me softly”. Só conheço o cover da Aretha Franklin que passava imensas vezes na Rádio Nostalgia. E só há poucos dias percebi que era essa a música que te fartavas de assobiar; especialmente aquela parte do início. Só que as notas estavam desafinadas… passei anos a ouvir-te assobiar aquilo e nunca percebi o que era, mas imitava-te, mentalmente e não só.
- Sempre te disse que era duro de ouvido...
- Sim … com os anos fui percebendo. Mas apesar de conhecer perfeitamente a música, nunca lhe tinha ligado o teu assobio. Fazia-lo constantemente no banho, de manhã muito cedo, enquanto eu ainda dormia ou ia acordando. Esse teu assobio ficou-me marcado como se fosse um condicionamento por hipnopedia. Como no “Admirável Mundo Novo”, sabes? E há dias, quando estava a ouvir essa mesma música enquanto conduzia, quis assobiá-la, e quando o fiz cortou-se-me a respiração; estremeci; o coração acelerou mais do que o carro; senti-me como percorrido por um relâmpago. Encostei o carro na berma e percebi que me tinha lembrado imediatamente de ti, de uma forma completamente imprevisível e ininteligível. Foi aí que entendi o que era o assobio, e senti-me mesmo muito estranho. Foi como uma revelação.

- Então e agora? Já assobias a música sem desafinar?

- Não. Soa-me muito melhor o teu estilo.


*

Agora já não corro para apanhar autocarros. Sobretudo, porque ando quase sempre de carro. Mas quando vou de autocarro, não corro atrás dele. Se estou atrasado, deixo-me estar e pronto. Mesmo que o próximo venha daqui a bastante tempo, sinto sempre que a culpa não foi minha por não o apanhar. Ele é que passou cedo demais, não fui eu que acordei tarde demais.
Mas, há já muito tempo, puxavas-me o braço e corrias, e eu ia pelo ar. Os meus pés pequenos chegavam ao chão de vez em quando e davam impulso para mais uns metros de arrastão – naquela altura parecia-me que corrias muito depressa. E eu ria-me até me doer a barriga por não conseguir acompanhar o teu passo, e íamos mesmo velozes, e tu também te rias porque eu não conseguia parar de rir e porque sabias que eu estava no limite e mesmo assim corrias mais depressa de propósito. Não me lembro de alguma vez ter de esperar por uma camioneta quando ia contigo. E depois, na camioneta, estava cheio de calor, e a camioneta ia mesmo muito depressa, o motor acelerava tanto que fazia um som altíssimo e agudo, e parecia que se ia desfazer toda, enquanto descia aquela rua das árvores, no Estádio Nacional. Em muito pouco tempo estávamos na estação de comboios da Cruz Quebrada.

Quando eu dizia na escola que ia contigo procurar pedras – “as pedras certas” - para a praia da Cruz-Quebrada, não percebiam e gozavam comigo. E estranhavam essa e muitas outras coisas que eu dizia, e que tinha aprendido contigo. As crianças estranhavam-me e gozavam, e os adultos admiravam-se pela minha maneira perfeita de falar, com palavras caras. Não percebiam de onde vinham aquelas ideias diferentes, pouco comuns para uma criança tão pequena.
De qualquer maneira, nem uns nem outros sabiam que tu pegavas nessas pedras e com elas construías obras de arte. E também não percebiam muito bem o que queria eu dizer quando lhes dizia que “fazia barro”contigo.
Não me lembro de alguma vez me ter sentido posto de parte por me acharem diferente. Em vez disso, habituei-me a sê-lo e a gostar disso. A minha idade dos porquês foi muito enriquecedora. Aprendi desde muito novo a escrever impecavelmente, sem erros, e a gostar de ler e de escrever, porque tu não gostavas nada que eu escrevesse com erros – ficavas com os olhos muito grandes e falavas mais alto, especialmente quando eu repetia um erro.

Certa vez, estava eu doente, sem ir à escola, e houve um teste importante – uma prova, como se dizia na altura. Uma prova importante, se é que há provas importantes na terceira classe. E eu estava doente, mas como era importante, disse que tinha que ir fazer a prova e fui, levado pela minha mãe, com o pijama por baixo da roupa. Cheguei bastante atrasado, sentia-me mal disposto, febril, e tinha aquele gosto terrível a laranja-aspegic na boca. Mas fiz a prova, e tive nota máxima, melhor nota do que toda a gente lá na sala. Já não me lembro que prova era, mas lembro-me, isso sim, de que escrevi lá coisas que me tinhas ensinado e de que tínhamos conversado e que me vieram na altura à cabeça. De resto, as minhas composições eram quase sempre lidas pela professora em voz alta, para toda a turma ouvir.

Acho que só comecei a jogar futebol e outras coisas próprias da idade quando os meus colegas já se estavam a desinteressar disso por causa das raparigas. Eu preferia ler e fazer outras coisas. Andar de bicicleta como os outros também foi muito mais tarde do que o normal – já poucos andavam de bicicleta. Por isso mesmo, e já com aulas de Educação Física, era sempre dos últimos a ser escolhido para as equipas nos intervalos em que jogávamos à bola. E ia sempre à baliza. Só já no 8º ano, quando construíram uma escola em frente à minha casa, é que passei a ocupar os dias a jogar futebol e basquet, intensivamente. Com os anos passei a correr mais depressa e a jogar tão bem ou melhor ainda do que quase toda a gente. Entretanto, muita gente já não jogava sequer, porque já tinha passado a idade dessas coisas.
Nunca fomos muito ricos, embora nunca nos tenha faltado absolutamente nada do que era importante. Mas, uma vez, tinha eu uns doze anos, chorei com os nervos quando um vizinho me furou uma bola com uma faca. Eu estava a jogar com um amigo meu, e esse vizinho foi-se pôr a assar sardinhas num fogareiro mesmo por trás de um cesto de basquet que tínhamos construído com um barrote roubado numas obras, uma placa de contra-placado a fazer de tabela, e um aro de uma jante de bicicleta. O terreno era de terra, nas traseiras da minha casa, e tínhamos andado lá com enxadas a limpar as ervas daninhas até me nascerem bolhas nas mãos. Na altura, os nossos campos eram sempre assim, com balizas ou cestos feitos por nós, miúdos, e eram cheios de montes e buracos e enormes calhaus de basalto; apesar de tudo, nunca torci um pé por causa disso, e até hoje não parti nenhum osso. Mesmo com a escola que construíram à frente da minha casa, não nos deixavam ir jogar para lá, e embora tivéssemos saltado inúmeras vezes as grades da vedação, o segurança – um homem mal encarado, bêbado e sem qualquer educação - chegava a chamar a GNR por causa das nossas invasões. Lembro-me de ver os jipes (era sempre mais do que um, o que me fazia sentir uma real ameaça à sociedade) da GNR a subir a rua em direcção à escola, e nessa altura corríamos o mais que podíamos, tornávamos a saltar a vedação e enfiavamo-nos no prédio de algum de nós, enquanto nos riamos sem parar. Depois haveria de se continuar o jogo interrompido por motivos de força maior, e havia sempre alguém que se lembrava do resultado. “Tava quanto a quanto? A bola tava nossa!”.
Naquele dia, um lançamento mal calculado foi embater no fogareiro do tal vizinho, que estava no chão. Ele não gostou e furou-me a bola, sem dizer uma palavra. Chorei, não por ter ficado sem a bola – que era de futebol – mas pelos nervos causados pela besta que era o meu vizinho, e principalmente porque aquela bola me tinha sido dada por ti, e tínhamos ido comprá-la numa loja de desporto na baixa, num dos nossos passeios a pé, sempre a pé, por toda a Lisboa.

Nessa altura arranjei um canivete daqueles da propaganda médica, dado pelo tio Luís, e não directamente a mim, de certeza. Era daqueles que só cortava se fizéssemos muita força, e não me era muito útil na altura, porque a principal função era tirar caricas das garrafas de cerveja. Dava tudo para ter visto a cara do meu vizinho quando se levantou para ir para o trabalho e viu os quatro pneus do carro dele furados. Com facas mato, com facas morro, terá pensado.

No outro dia vi o tal segurança, enquanto tomava o pequeno almoço no café aqui da esquina. Está velhíssimo, com a mesma cara de besta, cospe no chão, anda com bengalas e mal se mexe. Come todos os dias um caracol e uma meia de leite.

*
Não foi esse o meu début no mundo dos pneus. A estreia já tinha acontecido há uns anos, num episódio que me tornou muito famoso junto da minha comunidade. Tenho a certeza de que te lembras muito bem.
Estava eu na primeira classe, com 5 anos, e tinham-me dado uma daquelas agulhas de picotar com cabinho de madeira, juntamente com uma esponjinha paralelipipédica, para fazer aqueles trabalhos da escola com papel de lustro. E então resolvi, no caminho da escola para casa, ir espetando essa agulha nos pneus de alguns automóveis. Gostava da sensação daquele arzinho a sair tsssssss! Mas depois ia-me logo embora, e como o furo era pequenino não chegava a ver a inevitável transformação do pneu. Assim sendo, ter-me-á parecido prática inofensiva, pelo que repeti sucessivamente a coisa.
Não creio que o meu modus operandi tivesse obedecido a qualquer critério especial de selecção das vítimas. Certo é que consegui acertar nos carros dos pais de alguns amigos meus de cá da rua, e como um deles me viu a fazê-lo, juntaram-se para me linchar quando a minha avó me tinha dito para lhe ir fazer um recado à mercearia. A intervenção providencial da minha avó evitou o pior nessa altura.

Certo é que... fui dar contigo sentado no meu quarto, na mesinha de cabeceira branca da minha avó, a olhar fixamente para a janela. Estavas calado, com um olhar muito estranho. Os teus olhos azuis acinzentados brilhavam muito, não olhavas para mim. Não me lembro se disseste alguma coisa. Mas eu sei que pedi desculpa, e tentei explicar que o tinha feito “para ver como era fazê-lo”. Nunca mais me esqueci.

Como eu já disse, nunca fomos muito ricos, e não deve ter sido pouco o que se teve de pagar na altura por causa da minha diabrura. Houve até pessoas que quiseram que se pagasse pinturas novas por causa de riscos que não tinham sido produto da minha arte. Na altura, não corria o risco de que fizessem com o nosso carro a mesma coisa, porque não tínhamos. Tiraste a carta já bastante tarde, e dos meus amigos era o único cujos pais não tinham carro. Depois, lá arranjámos um Renault 5 vermelho em segunda mão.

A minha primeira bicicleta, do tipo BMX, foi comprada em parte com dinheiro que tinha poupado, e já eu tinha uns doze anos. Lembro-me que não chegava com os pés ao chão, mas não foi por isso que me instalaste rodinhas para aprender a andar, como se costumava fazer na altura. E tão pouco me amparaste enquanto aprendia. Lá tive que me amanhar e aprender a andar nela. Mas rapidamente ganhei confiança, o que precipitou o meu maior espetanço de sempre.
Foi num Verão, estava muito calor, e fui fazer uma descida que na altura me parecia enorme, e que acaba numa semi-curva, ladeada por aquelas pedras brancas baixinhas que desenham os estacionamentos mais antigos. Essa descida ficava perto de casa, mas suficientemente longe para demorar 10 minutos a lá chegar a pé, e era uma rua de alcatrão com pedrinhas de gravilha. Resolvi fazer a descida em tronco nu, sem mãos, e de olhos fechados, para sentir melhor o fresquinho da velocidade. Até agora, mesmo tendo ido de bicicleta até para o Algarve, foi a única vez que andei em tronco nu.

Quando a roda resvalou nas tais pedrinhas brancas, cá em baixo, aconteceu o pior.
Dos polegares, saíram metade das unhas. O meu tórax e parte do abdómen esquerdo, desde a clavícula até quase ao umbigo, ficaram em carne viva. Tive de levar a bicicleta ao ombro porque ela ficou bastante maltratada e a roda da frente ficou empenada, elíptica, com raios partidos, e o pneu rebentou. Lembra-te que antigamente os aros eram num metal super rijo e pesado, não eram como agora, que são de alumínio muito leve – talvez isto dê uma melhor ideia da violência do espetanço.
Estava muito calor, mas quando entrei no fresquinho das escadas do meu prédio, a coisa começou a doer a sério. Quando bati à porta – também só tive chaves de casa quando era mais velho – a minha avó abriu e eu estava a chorar. Deitei-me no chão de taco encerado do hall da minha casa, e a minha avó deve ter gasto dois pacotes de algodão em rama. Primeiro espremeu água, depois álcool, por cima da ferida. Os meus amigos que moravam noutro quarteirão vieram bater à minha porta por causa dos gritos, para ver o que se passava. Nessas férias, fiquei um mês sem me mexer como deve ser, e passadas semanas ainda saiam bocados de pele, crosta, e pedrinhas de gravilha do meu peito, durante o banho. Ainda hoje essa pele não bronzeia como deve ser.

Vejo agora boa parte dos meus colegas de primária que gozavam comigo por ser mais intelectual, e dos tais amigos da minha rua que quiseram fazer justiça pelas próprias mãos – naquela altura qualquer razão era boa para bater em alguém que fosse mais fraco. Com algumas excepções (e esses não eram os piores na altura), têm vidas lixadas, com empregos lixados, com salários lixados, e continuam com a mesma pouca cultura e educação que tinham.
A maneira como me educaste levou-me a tomar as desvantagens em meu favor. Não foi por ser o mais pequenino das turmas onde andei na primária e no ciclo que fui dos que levou mais tareias dos mais fortes e estúpidos (e mesmo assim levei várias), porque também foi contigo que aprendi a ser mais esperto e a escapulir-me. Em muitos casos até consegui que me protegessem e admirassem.
Não foi por ser mais baixinho que toda a gente que deixei de jogar basquet melhor do que os outros, ou que deixei de aprender a correr bastante mais depressa do que eles. Não foi por ter menos dinheiro ou menos condições que deixei de estudar e aprender mais do que os outros e ir mais longe do que muitos. Se hoje pertenço a uma pequena minoria, foi porque mesmo sem grandes palavras ou explicações, ou mesmo grandes exemplos, me mostraste que é possível atingir grandes objectivos, se dermos o máximo para sermos sempre melhores.
Não apesar das limitações, mas por causa delas.
*