30 de janeiro de 2007

I might be wrong VIII - Sim, Não, ou Não sabe/Não responde ?


Depois de algum tempo arredado destas lides, não poderia deixar de escrever qualquer coisa, estimulado como fui pelo texto do Pedro, mais uma vez aclamado sem surpresa pela crítica.Devo dizer que fiquei contente por ver um texto relacionado com o aborto, mas completamente diferente dos que se costumam ler por aí. Estou completamente farto do tema, do esgrimir de argumentos... houve até alguém bem próximo de mim que me disse que o país iria entrar em depressão generalizada após o referendo. Imediatamente me lembrei de que diziam exactamente o mesmo antes da Expo98 e do Euro2004.

Como dizia, estou realmente sem vontade alguma de defender a minha posição e o meu voto. Tenho uma opinião, naturalmente. E posso até dizer que, em parte, consigo delinear meia dúzia de argumentos, e noutra, tenho a opinião que tenho não sei bem porquê. Vem do meu interior, não se traduz por palavras, e na verdade não será necessário fazê-lo. Porventura, essa será talvez a parte mais importante da minha convicção, porque é uma espécie de essência destilada das minhas vivências, do que observei até agora por aí, e das minhas reflexões sobre o tema - confesso que já pensei muito nisto, e talvez por isso é que desisti de fazer valer a minha dama em debates, entre amigos, colegas, etc. Não deixa de ser aparentemente paradoxal que, após ter gasto tanto tempo a reflectir, e após ter ouvido e observado tantas realidades diferentes e antagónicas, seja menos capaz e tenha menos vontade de produzir uma argumentação. Isso será, talvez, porque me tenha convencido de que esta não é, de todo, uma questão de convencer pessoas. Ou elas conseguem sair de si mesmas e dos seus espectros que as rodeiam, ou então não serão capazes de ter uma opinião justa, e muito menos fazer campanha de defesa dessa opinião.Para quem já estava a esfregar as mãos de contente, esperando um rol de armas de destruição maciça como defesa acérrima de uma das facções, desengane-se.

Como disse e sublinho, não tenho pachorra para falar de argumentos. Mas ainda tenho menos para aturar a esmagadora maioria de pessoas que, no nosso país, opta por fazer campanha, tanto pelo sim como pelo não em resposta ao referendo. Na televisão, pessoas como Edite Estrela ou Zita Seabra, para falar em algumas das mais mediáticas, não deviam ser porta-estandartes. Nem vale a pena caracterizar pessoalmente estas duas indivíduas, mas apesar do ridículo que são, continua a ser-lhes dado tempo de antena, e isto é algo que não entendo. Opiniões o mais politizadas e partidarizadas possível não é o que se pretende, numa questão que envolve a nossa consciência e nada mais do que isso. E já basta.
A maioria das pessoas não está habilitada a decidir sobre esta questão que envolve as outras 9.999.999 pessoas, ou por ser demasiado nova, ou por ser demasiado velha, ou por ser demasiado rica ou pobre, ou por ser homem (aqui com algumas reservas, mas não muitas), ou por ser demasiado alheia. Estou aqui a imaginar um bancário, de 45 anos, estéril, que vive para o trabalho, não é casado, tinha negativa a filosofia, português e história quando andava na escola, e a única coisa que lhe dá prazer é ver o benfica a jogar aos domingos. Esta pessoa terá nas urnas o mesmo peso do que uma mulher que já fez um aborto por decisão própria, porque achava que devia fazer, arriscando-se a várias complicações do ponto de vista penal e da própria saúde.Torno a dizer que não é minha vontade defender o sim ou o não. Mas que este referendo é um bocado estranho... ai isso tenho-o para mim e ninguém mo tira.

Mas falarei agora um pouco de pessoas comuns, porque as mediáticas são mediáticas muitas vezes por serem autênticas anormais.
Fiquei a saber que na minha faculdade (não vou lá há montes de tempo - a partir do 4º ano continuamos o curso noutros sítios) o pessoal dos 3 primeiros anos anda a fazer campanha pelo sim e pelo não. Sem rodeios, digo à boca cheia: que... RIDÍCULO. Claro que os jovens têm direito à opinião e são parte interessada. Na verdade, no meu curso em particular, até acho que devem pensar sobre o assunto. Mas terem a pretensão de poderem fazer campanha, ou seja, defender acerrimamente uma opinião e tentar convencer os outros... já acho estupidez pura. Para já, não vão convencer ninguém, porque as pessoas têm tendência de ficar na sua. E em segundo lugar... são crianças! E ainda por cima, em boa parte dos casos, riquinhos! Que background social poderão ter para se poder pronunciar em campanha? Na verdade, estes jovens, mais do que ninguém, cheiram que tresandam aos próprios meios socio-económicos nos quais se inserem, e as suas opiniões não são mais do que a súmula dos interesses destes mesmos meios.

Os putos do sim, muito convencidos de que têm consciência política e de que são humanos. Habitualmente sabem de trás para a frente "Mensagem" do Fernando Pessoa, só vêem filmes no Quarteto (se possível, do Kusturica), adoram acordeão, e só falam de bandas e escritores que ninguém conhece. E se conhecermos, bem ... "já foi melhor do que é agora!" - dizem, desdenhosamente. O que eu gosto mesmo é quando digo que não tenho paciência para os seus discursos panfletários, e eles me respondem (tendo menos 500 anos de idade do que eu) que eu sou uma amiba, um afectado pelo torpor, uma amiba sem consciência política. Ao que eu lhes digo: tu ainda não eras nascido quando deu "Os amigos do Gaspar" pela primeira vez na televisão, pois não? Então tem mas é juízo e faz essa penugem mal semeada, que não ficas parecido com o Che. E vai lá ouvir o Çaçetti na tua aparelhagem de 300 contos, ou ler o Fiodor Mikhailovitch Dostoievski!

Os putos do não são pelo menos tão mauzinhos como os do sim. Antes de mais nada, não vi muitas pessoas com poucos recursos financeiros e de backgrounds menos favoráveis a defender o não. Por outro lado, sempre que aparece alguém na televisão a defender o sim, é quase sempre uma tia ou um monárquico, ou então alguém de uma organização cristã católica qualquer. E é sempre pessoal rico.Apetece-me dizer-lhes: ó meu amigo, gostavas de viver na monarquia, era? Mas sabes que naquele tempo não havia dentistas e o pessoal quando ficava sem dentes não passava a usar placa como a avozinha? E também não havia Holmes Place? E tinhas de entregar metade das tuas colheitas ao rei? Sim, porque quase toda a gente era camponesa, ou só conheces essa palavra dos folhetos do Pizza Hut? Arranhavam ali no duro e não havia debulhadoras para fazerem os fardos de feno para os animais! Já foste ao castelo de S.Jorge? Parece-te cor de rosa e com torres douradas como o do Rei Artur? Cola mas é esse símbolo da monarquia que tens atrás no Audi A4 na peidola e não me venhas chatear com essas tretas do direito à vida! E tu, minha amiga, quando fores a correr para Espanha no fim do Verão com o resto do dinheiro das férias que os teus pais te deram, depois de uma estadia com os teus amigos em Vilamoura, diz-lhes que vais comprar caramelos! Mas lembra-te que o que os teus pais não souberem, Deus saberá! E por falar em Deus: sabias que um verdadeiro cristão renuncia aos bens materiais e anda descalço na rua? Vai lá agora sair à noite descalça para o bairro alto! Na verdade, tenho uma ideia melhor: porque é que não pões também entre os dedos um balão com um digestivo, como a tua mamã, e te sentas aos pés dela, no taco de carvalho ou no tapete Luis 15 junto à lareira crepitante, enfiadinhas as duas em robes vermelhos e dourados, e quando ela estiver já com um grão na asa, lhe perguntas sobre os namorados antigos dela? Queres uma rainha como a de inglaterra? Bem, essa ainda não percebeu que se enganou no cálice. Inúmeras e repetidas vezes. E o que tinha lá dentro não era bem água benta. "A rainha que não se curva perante ninguém". Bah! Tretas! Tem uma cifose tão grande que já parece uma maria-café!

O resultado do referendo, já se sabe, nada mudará, independentemente de qual for. Mas acho que deviamos aproveitar a oportunidade para juntar este pessoal todo das campanhas, e era pezinhos em latas de robialac com betão, enfiadinhos em sacas de sarapilheira, e Tejo com eles. É desta que fica sem peixes, porque a paciência deles para pregações também é limitada.
Acalmo-me.
Sou da classe média baixa. Estudo medicina, directamente ligada à problemática do aborto. Tenho amigos de todos os quadrantes, e ouço-os sempre com muita atenção, mesmo aqueles que descrevi há pouco. Raramente contraponho alguma coisa, prefiro ouvir para ver se aprendo algo novo. Tenho estado nos hospitais de lisboa, e contacto com os doentes da enfermaria, das urgências e das consultas. Observo-os e tento perceber de onde vêm, o que fazem, que nicho social ocupam. Presto atenção ao sofrimento que boa parte deles traz às costas. Contemplo e ouço as acções e decisões dos meus colegas, e também dos médicos que nos instruem (quando o fazem). Nos transportes (quando vou de transportes) ouço as conversas cruzadas dos portugueses anónimos, até mesmo sobre o aborto. Já vou para os 30, e acho que até posso dizer sem grande erro que passei pelo intervalo de idades mais provável de se ser confrontado com a decisão de um aborto. Tive algumas namoradas, e andei, tal como quase toda a gente que conheço, à rasca à espera que viesse a menstruação da namorada. Também tentei comprar preservativos em pequenas máquinas instaladas à porta de farmácias, à noite (aquelas que encravam sempre ou estão esgotadas). Passei por várias coisas relevantes, tenho uma opinião sólida, informada pelas ciências da vida e formada pela consciência. E nunca passei pela situação de fazer ou não aborto, não espero passar, e nem faço a mínima ideia do que deve ser. E por isso mesmo já percebi que fazer campanha sobre esta situação é não só inútil como estúpido. Mas abençoadas sejam as pessoas aprisionadas pelo raciocínio linear, porque são elas as donas do mundo (pelo número) e da felicidade (pela limitação de ideias).

Só uma pequena ideia que tenho para mim e partilho convosco, defensores do sim ou do não. Esta é uma boa oportunidade para nos congratularmos por termos nascido, por estamos vivos, por termos saúde, e por termos ou termos tido pais que nos amaram e nos educaram com maior ou menor dificuldade porque tiveram possibilidade para isso. Amém.

PS - Gosto sempre de passar na segunda circular e ver os simpáticos outdoors dos defensores do não. "Contribuir com os meus impostos para financiar clínicas de aborto? Não, obrigado!"... "Abortar por opção sabendo que já bate um coração? Não, obrigado!". Gosto, não sei! É como se dissessem: "Epá, caro gajo defensor do sim, criminoso sem escrúpulos e escumalha da sociedade, obrigado por me fazeres essa proposta de assassinar crianças, agradeço imenso, mas não posso aceitar! Recuso delicadamente, está bem? Mas não fiques chateado, que da próxima talvez dê para aceitar! E olha, cumprimentos lá em casa, espero que a tua avó tenha gostado dos ferreros que lhe enviei pelo natal!".
Também vibro com aqueles outros outdoors em que se vê uma mulher algemada a ser levada pela polícia, assim a preto e branco (agressivo! as formas aguçadas! os tons violentos, sujos, suburbanos, underground!) e que diz "Para parar com a vergonha vota sim" ou lá o que é. Acho que também devemos votar em referendo a revogação da lei que proíbe andarmos aí aos tiros em centros comerciais, especialmente em dias de jogo de futebol, porque me apetece fazer uns headshots... e depois ia ser uma vergonha eu ser imobilizado com um joelho nas costas e algemado e lerem-me os direitos, no meio de cadáveres baleados e poças de sangue e transeundes curiosos. Ou então, votarmos para a Zita Seabra e a Edite Estrela não poderem por lei aparecer na TV no "prós e contras" a defender ideias sobre o aborto. Isso é que é uma vergonha e ninguém vota contra.

*
No outro dia, ia a conduzir e a ouvir rádio. Então, tocou (uma vez mais) aquela música do André Çardet. E no fim, a radio-locutora diz assim: «esta música foi pedida pela vanessa, de odivelas, com uma mensagem muito enigmática: "para ti, que sabes quem és, que me enfeitiçaste"»; e depois a locutora continuou, explicando que o tal gajo era padeiro, e que a música era realmente romântica. É preciso ver que eu vinha na 2ª circular (antes de passar pelos tais outdoors) e eram quase 3 da manhã, portanto vendedor de gelados é que ele não devia ser. Epá, deus ma pardoe, romântico? Atentem neste refrão: "Eu não sei o que me aconteceu/foi feitiço, o que é que me deu/P'ra gostar tanto assim de alguém como tu?". É o mesmo que dizer: epá, não vales népias, és padeiro! Como é que eu fui gostar de ti? Bati com a cabeça? Devo estar drogada! Por favor, internem-me!

Grande bem haja, pessoal!

22 de janeiro de 2007

"Enganei-te bicho!"

Se há eventos cíclicos, o debate sobre o aborto parece sê-lo. Até ao referendo vai ser um degladiar de argumentos, uma contagem de espingardas enfim, uma alegre troca de galhardetes. Acho piada pois, e como há uns anos atrás, depois do referendo voltará tudo à mesma. Não acho que, qualquer que seja o resultado, mudanças efectivas se registem. Quem pensa abortar fá-lo-á, quem pensa em não o fazer, não o fará. Quem o faz no vão de escada, terá a possibilidade de não o fazer enquanto que quem vai a Espanha, já o pode fazer por cá. Se calhar, com a diferença dos preços, ainda compensará ir a Espanha, aproveitando-se para ir ver os saldos dos grandes armazéns.

Parece que por vezes as mudanças servem para deixar tudo exactamente na mesma e para ficar na mesma, mais vale estar como está. Não quero dizer com isto que vá votar não, não vou votar não. Além do mais, nem tenho muito a ver com isso pois, sendo homem, a última decisão nunca poderia ser minha, a não ser que, em vez dum aborto vão de escada, se trate dum aborto escada a baixo!

Gosto da expressão “vão de escada”. É rude. Descreve uma realidade com uma rudeza tal que até arrepia a pele. Imaginem um vão de escada, sítio escuro, húmido. Será ali pois que uma mulher irá fazer um aborto. Não sei porque, esta imagem não tem o efeito pretendido pelas pessoas que a empregam em mim. Sempre gostei dos vãos de escada, são óptimos esconderijos. Sabem-se segredos e contam-se histórias. Costumava jogar à bola num vão de escada dum prédio da minha rua antiga quando chovia. O que era espectacular é que mesmo com chuva podíamos jogar e os remates saíam com mais força. Devido ao espaço exímio a técnica dos diferentes artistas esbatia-se e assim o futebol tornava-se muito mais democrático.

Esta é a história do Homem: a luta contra a lei do mais forte. Ai os veados correm mais que nós? Então vamos atraí-los para uma falésia. Estão a ver amigos veados, de que lhes vale correrem mais? Quanto mais correm mais caem! Mas porque é que não nos damos por derrotados? Os outros bichos pensam, ok, os tipos correm que se fartam, ou corremos mais ou então vamos comer umas bagas! Mas nós não, está-nos entranhado o espírito vamos dar a volta a isto, eles são estúpidos. E os bichos, na sua simplicidade, caem que nem uns patos!

Onde é que eu ia? Ah sim, o vão de escada. Bem, eu vou votar sim, já o tive oportunidade de dizer. Não vamos entrar nas discussões do ele é de esquerda ele é de direita, por muito que se queira partidarizar esta questão. Por mais que pense, acho que a decisão menos má é deixar cada um decidir por si. Cada um, digo utopicamente referindo-me a casal. Muitos falam do direito à vida, do quanto um feto o é mesmo antes de o ser, da população envelhecida… eu acho que se esquecem de falar na outra dimensão da vida, a dimensão social. Jet set à parte, acho que um ambiente próprio é também uma dimensão importante da vida do próximo. E em última análise, quem vai conseguir que uma mulher que o queira não aborte? É a solução para isso um julgamento. Também há a visão que acho que reflecte bem a posição na vida de quem a tem, e é ela a de contar quantas mulheres estão efectivamente presas ou foram condenadas. A lei existe, mas não se cumpre… sem comentários.

Claro que uma boa pernita de veado é bem melhor que umas nozes ou umas amoras mas, tínhamos de provar que enganávamos o bichito. Enquanto comemos, temos a mania de descrever a magnificência do animal em vida, como que demonstrando que nos alimentamos de um ser que não era para nós. Interiormente pensamos – estúpido, dei-lhe a volta! Era o melhor da manada, com os chifres mais lustrosos e a pelagem mais farta.