14 de março de 2006

Dia...


O tilintar do espanta espíritos que sobre mim dança, ao vento, evoca os tempos distantes quando vinha da secundária à hora de almoço.
Depois da neve, da chuva e do frio, eis que um calor de verão assombra este dia. Cheira a erva seca maresiada e em plano de fundo ouvem-se os pássaros cantar ao som de uma ou outra ambulância que ao longe passa, profanando o silêncio que me trouxe à escrita.
Há uma calma que paira em tons de azul e de repente tudo parece perfeito, relembrando que entre a tralha quotidiana ainda existem momentos assim!

6 de março de 2006

Hey you!



É com dificuldade que tento emergir da lassidão que me persegue. O meu cérebro arrasta-se à luz das sombras e passa por tudo menos pelas letras que se diluem no exsudado conjuntival destes olhos sonolentos. E penso! Quantos os olhos que algures se lavam, esgotados, entreabertos, vislumbrando apenas o foco de luz que os fere à sua passagem... limbo pestanejado que inglório procura depor o dia?
Ouço “Vissi d’arte” da Tosca de Puccini (“vissi d’arte, vissi d’amore, non feci mai male ad anima viva!”). Talvez porque a noite o permite e a restrição moral do estado semi-consciente já adormece em mim, encontro nesta solidão a voz que, escrava da arte e do amor, comigo implora por piedade divina (“Nell’ora del dolre perche, perche, Signore, perche me ne rimuneri cosi?”). As horas passam a cada olhar desmesurado e arrítmico. O peso do estudo, a aridez das páginas onde ainda sinto o cheiro queimado e quente da máquina que as pariu, secam qualquer sentimento em mim. Passo de ser humano a máquina e roboticamente vivo alucinada... iludida! Bem sei que os conhecimentos são imperativos para as leges artis, contudo há toda uma vida interior que nunca o chega a ser se não abrirmos a janela e deixarmos entrar o ar.
Por vezes parece que estou enclausurada num cubo preto, opaco, onde os conhecimentos que outrora floresciam na minha mente são sugados pelo fundo negro e “tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível”. Interrogo-me acerca da validade do esforço, se servirá de alguma coisa os anos esgotados entre as aspas de outros que já foram (e são) nossas.
Decerto que valerá mas impõe-se cautela. O tempo aguarda algures mas não espera e a agudez subtil da arte em que sem cair tropeçamos exaspera. Por fim, pode ser tarde para recuperar a alma que se constrói com experiências literárias, musicais (perdão pela falta de imparcialidade), plásticas. Há dias que não vejo a luz do dia e digo isto há anos...
Não quero com este texto talvez sem nexo e insalubre quebrar a motivação e laços empreendedores com a medicina que incondicionalmente amo... Apenas me apeteceu escrever um pouco para relembrar o espírito que por muito que se esforce, o que resta são imagens, pedaços de vida que em nós ficou de forma tão subtil e inusitada que se algum dia pudesse descobrir a fórmula tudo se revelaria mais simples e duradouro.
A música que ouvia deu lugar a outra e tantas outras sucedem e eu ainda aqui tentando encontrar um propósito para estes acetatos que agora engulo para mais tarde crucificar num quadrado de qualquer exame, talvez quem sabe vomitar frente a quem feliz o apanhe. Depois? Depois esquecerei tudo porque nada disto foi descoberto por mim. Tudo foi imposto face à aliciante nota tão importante para a aceitação das nossas escolhas e tão pequena face àquilo que deveria ser o propósito das nossas acções.
E pensar que o futuro da medicina, a nata, coalha nos bordos dos rectângulos das verdades absolutas e inequívocas mas deléveis, como um baralho que se desfaz à mais subtil brisa. O pior é que todos nós fazemos parte desse baralho, tacteando às escuras os desígnios daqueles que nos calçam com botas rotas (“Hey you, out there in the cold getting lonely, getting old can you feel me? (...) Hey you, don’t help them ti bury the light, don’t give in without a fight.”).

3 de março de 2006

Tetris 7 - Jogos de luz e cor


Tenho o meu dedo no botão.

Tenho as mãos frias e húmidas, respiro devagar e superficialmente. O coração bate, rápido e fraco. Engulo em seco enquanto sinto a traqueia apertada pelos braços da glândula tiroideia.
Já não me lembro há quantos anos não tinha insónias. Normalmente quando caio na cama estou tão cansado que me basta fechar os olhos. Mas não hoje. Fiquei a ver a luz dos candeeiros da rua a esvair-se nos cortinados por entre as frinchas dos estores, enquanto mudava de posição vez após vez.

Estou inquieto, mas em mim algo pequeno brilha de satisfação.
A minha mente povoa-se de pensamentos incertos, desconexos, mas todos eles convergem ainda para um lugar, como pequenos riachos que tombam inevitavelmente para o fundo do vale.

*

Lembro-me da minha professora de português do 8º ano a explicar-nos o conceito de tempo psicológico: uma hora custa muito a passar numa sala de aula, mas fica ainda maior se estivermos à espera de uma pessoa de quem gostamos, a contar os minutos. Nunca como agora compreendo tão bem a extensão do tempo psicológico. Podem passar-se meses a tentar que me esqueça de alguma coisa desagradável sem o conseguir, e depois bastam alguns dias que, passando depressa, fazem parecer o passado muito mais distante do que é realmente. Como naquelas naves do Star Trek em que se entra em Warp speed, as estrelas tornam-se linhas rectas e fica tudo para trás em questão de poucos segundos.
É como se esse passado se tornasse a preto e branco, ou amarelado, como as fotografias dos anos 80, na tela da minha memória. Até há pouco tempo olhava as ruas e apenas notava os prédios devolutos com as suas janelas de madeira podre, os sem abrigo a dormir na rua, o cheiro a urina de algumas estações de metro...

De repente vejo um pequeno clarão de cor no cinzento invernal. Lentamente, começo a persegui-lo, vislumbro-lhe os contornos, a massa de que é feito, os comprimentos de onda que irradia...
Entretanto vejo que as cores sobressaem do cenário, intensas, cruas. Vejo a passarada de fim de tarde a pulular nas pinheiras, o sol enorme e amarelo (parece de verão!) a esconder-se por detrás do estádio do sporting, e um ventinho a tirar-me o cabelo, já comprido demais, da frente dos olhos. Respiro satisfeito. Não sei muito bem com quê, mas que importa?
O meu sumo de laranja é realmente laranja forte, doce, nem me provoca a azia costumeira. E nem me deixo enervar pela estupidez dos empregados que mo trazem num copo de base hexagonal, que nem encaixa no pires de bica. Até me rio e me lembro que se calhar quando eram miúdos não brincaram com aqueles jogos de enfiar peças poliédricas nos sítios com a forma adequada... ou então tentavam introduzir um cilindro num buraco de forma triangular. Se não desse... uma martelada resolvia o problema. Um pouco como cada um de nós tenta jogar ao tetris nas nossas vidas.

Bebo o meu café, e, no fim, tenho no pires um bocadinho de chocolate de sonho para adoçar a boca. Chocolate que se derrete na língua contra o céu da boca, em mil bolhinhas, que quase consigo ouvir o barulho delas a rebentar, como água oxigenada derramada numa ferida.
Vou destruindo os grãos de açúcar na mesa, com a ajuda das moedas do troco do café; fecho os olhos, sinto a circulação a dar-me a volta à cara, à cabeça... espreguiço-me languidamente como se não tivesse mais nada para fazer, com a doce despreocupação de alguém para quem nada mais importa do que estar ali, quieto, sem dizer nada.
Sinto a aura à minha frente a brilhar como se não houvesse amanhã.

*

Reparei, no Colombo, numa coisa que me fez pensar. Os antigos acreditavam que as estrelas eram furos num enorme cobertor negro, que nos deixavam entrever a luz que estava para além. No caminho para uma casa de banho vi um enorme lençol preto estendido numa parede, com muitas luzinhas tipo árvore de natal, brancas, a fazer de estrelas. Gosto mais da visão dos nossos antepassados; acho que era mais optimista...

*

Vejo o clarão à minha frente, mais intenso, a deslocar-se mais depressa. Não sei já bem se era noite ou dia, mas corri para a alcançar. Vai demasiado depressa, e caem do céu obstáculos à minha frente, nascem barreiras do chão. Os animais correm em sentido contrário como se de um incêndio se tratasse. A minha visão fica mais aguçada, fruto da adrenalina; sinto-me um verdadeiro felino predador, vejo as coisas com mais pormenor ao perto, mais desfocadas ao longe.
Chego à margem de um desfiladeiro profundo e vejo o clarão do outro lado...
Procuro uma ponte do tipo da do Indiana Jones e o templo perdido, mas não existe. Meço a distância, mas logo percebo que é ligeiramente maior que o meu melhor salto de sempre. Olho para baixo e não vejo o fundo. E o outro lado está mais elevado...
Tento gritar, mas é inútil. Os nossos ouvidos percebem frequências diferentes, falamos diferentes línguas... e o ruído é demasiado alto para me ouvir a mim mesmo. Mesmo assim, enquanto virava costas, jurei ouvir um breve riso de satisfação.
Mas não sinto amargura. Quando vejo uma torneira a pingar corro a fechá-la; quando está um tacho ao lume com água a deitar por fora, baixo o lume. Há sempre algo a fazer... mesmo que custe.
Olho uma última vez para o outro lado: por entre um ambiente vermelho fosco, já só vejo nuvens de vapor a sair do chão.
*

Tenho o meu dedo no botão. Carrego? Para quê? E se não souber a resposta? É um botão vermelho para destruir o mundo? Ou é o botão para a próxima paragem da camioneta?

*

Enquanto volto para casa, de novo o cinzento: vejo os prédios devolutos e em risco de desabamento; noto os sem abrigo a pedir esmola no metro; gente feia a cuspir para o chão; os cães a derrubarem contentores do lixo para procurar comida; o cheiro a suor dos autocarros. O mesmo ventinho bate-me na cara, mas o cabelo já não está comprido demais. Vou triste, mas com o alento de saber que há luz e cor para além do enorme lençol da escuridão. Mais do que uma questão de esperança, é uma questão de tempo até que as alcance de vez. Não é caso para amargura!
*

Depois da aura, dói-me a cabeça; ela lateja em ritmo descompassado com a minha pulsação, como se tivesse outro coração autónomo no lugar do cérebro. A noite é curta para quem dorme, mas também para quem escreve: já é de dia...
Tenho o meu dedo no botão. Vou desligar.