28 de dezembro de 2005

CAROS AMIGOS... E COLEGAS!

Numa das minhas navegações pela net encontrei este artigo http://resistir.info/portugal/ppp_saude.html#asterisco que na minha opinião está interessante!
Fala um pouco sobre as PPP (parcerias público-privadas) que andam tanto em moda:)

Boas leituras ;)

24 de dezembro de 2005

I might be wrong - parte IV - especial de Natal - Arroz de marisco

Este ano o espírito natalício chegou mais tarde do que é costume. Escrevo-vos na véspera de natal, faltam poucas horas para a meia noite, e a minha pequena casa já se encheu de família a fazer doces atrás de doces; está um cheiro a fritos que parece uma roulote de farturas dentro de uma fábrica de donuts. Estão todos a brincar uns com os outros, vai aqui uma barulheira danada, os cães correm a roubar nozes da cesta, tudo isto envolto numa fumarada propícia a um encontro de sebastianistas...
Chegou realmente mais tarde... não me sentia nada natalício, mas ao ver a minha casa desta maneira, uma pessoa transfigura-se. O frio está na rua, a família em casa e os doces na mesa. Algumas prendas debaixo da árvore... está tudo no seu devido lugar. Vamos sentir-nos mais quentinhos com a comida e com os copos, e até podemos ver algumas pessoas sorrir nesta altura do ano. É uma oportunidade para esquecermos as nossas diferenças, as nossas quezílias, e sermos um pouco mais tolerantes.
Não me interpretem mal, caros leitores. O Natal não deve ser tudo isto. O Natal pode ser isto. Se as pessoas quiserem, mas mais que isso, se sentirem e forem espontâneas.

Quem lê este blog já está habituado aos textos do Acre, e por isso não necessita de esclarecimentos adicionais: sabe com certeza que não estou aqui para fazer uma declaração de boas festas ao jeito joséssocrático. E portanto já estão avisados que mais frase menos frase vem aí chumbo grosso!

Mas... o meu coração amanteigado (diga-se, aterosclerosado com tanto frito e gordura) obriga-me a deixar votos de que passem umas boas festas, tal como eu vou passar de certeza. Nem todos têm a nossa sorte, por isso devemos dar graças ao que temos e ao nosso modo de vida.

*

Ser, estar, parecer, permanecer, ficar e continuar. São estes os verbos copulativos que aprendi na escola. Como copulativos que são (interessante como na altura fazemos piadas sobre sexo com tudo e mais alguma coisa, mas somos tão burrinhos que nem sabemos o que significa cópula), servem para ligar, ou seja, não podem (normalmente) ser utilizados sozinhos.

Para mim o Natal é um substantivo próprio copulativo. Serve para unir as pessoas que se sintam bem com isso; a quem apeteça dar carinho e atenção, mesmo àqueles que não nos tratam por vezes tão bem como gostaríamos. Não é uma obrigatoriedade de sermos cínicos com toda a gente. Se assim for, mais vale ir passar a noite a jogar no casino, ou a beber ginjinha num qualquer miradouro sobre o Tejo (já o fizeram? quando o fizerem, venham partilhar comigo a vossa experiência...). É por isso que não consigo compreender as pessoas que vão comprar prendas nesta altura sentindo-se obrigadas, mandam montes de sms para os telemóveis de toda a gente, e depois vêm com a conversa de que o natal é consumismo e hipocrisia. Se é isso tudo, então mandem-se ao rio, meus caros! Quem vos obriga? Não vejo ninguém em tronco nú, cabeça rapada à gilette, pulseiras e cara de egípcio, atrás de vós prontos a chicotear-vos caso não estacionem o carro no El Corte Inglés!

Não tenho graveto, não tenho paciência, não tenho tempo. Não vejo o natal como uma altura especialmente agradável para se darem prendas. Não as dou no Natal e ponto final. E quem me levar a mal, é porque não percebe a minha maneira de ser e de gostar das pessoas. É porque as respeito que não lhes dou prendas. É uma forma de lhes dizer: gosto de ti, não só no natal, por isso nem me sinto obrigado a dar-te o que quer que seja, porque gosto da tua companhia e é assim que te presenteio, como tu a mim. A não ser que seja algo que cai do céu e que é tão, mas tão apropriado que é impossível não oferecer. Como isso raramente acontece... e porque haveria de acontecer no natal? Laplace não se aplica nos casos de probabilidades extremamente raras!

Aqui há uns anos, quando perguntaram ao Herman José o que é que ele achava das críticas que lhe faziam sobre a alegada descida da qualidade dos seus programas e sketches... ele respondeu de uma forma que me pareceu brilhante na altura: "As pessoas quando comem arroz com marisco também têm
de comer o arroz, não comem só as gambas..."; esta frase ficou-me gravada na memória desde então. Se há coisas nas quais concordo que se aplique tal conceito, há outras em que cada vez mais me convenço de que não é assim. Aliás, julgo que não é preciso falar na carreira que o Herman tem feito desde a Herman Enciclopédia para o desacreditar.
Será que é sempre preciso um termo de comparação para a valorização das coisas, das situações e das pessoas? Será que é preciso morder uma vesícula biliar para podermos dizer de nossa justiça que um Chocaccino (do Cup&cino, que, de resto, subscrevo com veemência), é doce? Acho que não...

Tenho que o dizer: não suporto aquelas pessoas que me mandam mensagens de natal e boas entradas, e que eu sei que não me ligaram durante o ano que passou e nem me vão ligar no ano que aí vem. Fico a sentir-me esquisito, e optei por não responder, e nem mandar a ninguém. E é curioso que as pessoas que não me mandaram mensagem foram precisamente aquelas de quem mais gosto (com poucas excepções). Isto significa que as vi há pelo menos uma semana atrás, ou falei com elas frequentemente, e portanto não se justifica! Há uma excepção, e acho que essa pessoa sabe quem é, que tem desculpa. Preferia que, se só me contactam no natal, nem no natal me contactassem. Muitas delas ocupam lugar de destaque nas minhas memórias, gravadas a letras de ouro; gosto de me lembrar delas assim, não preciso que me enviem mensagens. E há aqueles números que já apaguei do tlm, e que já nem sei de quem são... e se assim é, é porque me irritei com elas porque nunca se mostram interessadas em cultivar a amizade que eu um dia tentei cultivar.
Eu tenho destas coisas, sinto-as muito vivamente. De nenhum fruto queiras só metade, já dizia o Saramago. Se me queres como amigo, não me deixes desamparado, fala comigo tal como eu falo contigo. Se estou sentido é porque te recusaste a beber café comigo por um motivo estúpido e falso; se estou irritado, é porque gosto da tua companhia e não te vejo interessado(a) tal como eu em manter o contacto. Tens que falar comigo mais vezes. Não me mandes "FW's" para o email, não me mandes sms da net onde se podem mandar 5 iguais para pessoas diferentes ao mesmo tempo! Não percas tempo... o teu e o meu. Não percebes que é só uma maneira indirecta de me desvalorizar? Quem me dera que algumas pessoas lessem isto e percebessem o que quero dizer. A minha vontade é que essas pessoas percebessem que as estou a mandar à merda precisamente porque gosto delas; é a minha maneira de deixar, de todo, de contactar com elas, de lhes dar oportunidade de ouvir: "ok, gosto do que eras para mim, gosto do que podias ter sido, mas esta forma distante de relacionamento não me agrada, por isso prefiro pensar que emigraste para a Nova Zelândia e nunca mais vou falar contigo porque não podes, e não porque não te apetece". Querem melhor manifestação de respeito pelos sentimentos humanos?

Temos tão pouco tempo para as pessoas de quem gostamos e com quem gostamos de estar! Tempo real, tempo mental, o que quiserem... porquê gastar tempo e dinheiro? O natal não é para as pessoas se sentirem mal ou culpadas. Tenho muita sorte, estou rodeado pelos que gosto mais e que gostam mais de mim. Não quero que me desejem um bom ano. Quero que o passem comigo.
Por isso, amigo Herman... fica lá tu com o arroz, que eu como as gambas. E tal como ele... parece que muita gente não se importará com o negócio.

Vejo-vos por aí...
Acre, vosso amigo verdadeiro.

13 de dezembro de 2005

Carta a uma jovem burguesa - parte III

Por fim, a última parte da carta. Espero que leiam com a atenção que ela merece, senão não vale a pena. Não que seja muito trabalhosa... simplesmente só dessa forma é que conseguirão beber todo o sumo que ela vos pode oferecer.


Finalmente o amor. O seu caso não é isolado. É o caso de muitas jovens que não aceitam a solução de um casamento de conveniência e que não têm a coragem e a serenidade bastantes para amarem fora do quadro das convenções burguesas. Experiências incompletas dão uma força desconhecida aos apetites sexuais. A idealização substitui as realizações e a rapariga, já mulher feita para o amor, tortura-se numa expectativa febril, na antecipação do momento que tarda. Aí você pode encontrar a razão de alguns dos seus estados de irritabilidade, a razão de muitas dessas «fugas do mundo» que lhe são tão frequentes, a razão de algumas dessas desalentadas lágrimas que você gostaria de poder reprimir. Para esse sofrimento não é necessária a existência desta ou daquela concepção. Sua irmã, tão serena, tão conformada, tão moral, tão feliz nas suas greta-garbices com flirts mais ou menos de ocasião, vive a mesma sofreguidão insatisfeita. Apenas ela aceitou esta realidade, ao passo que você, não aceitando a solução de sua irmã, aceita, vive no frenesim de uma entrega que não chega porque, embora contrariada, você a evita, sente à sua roda a falta de um carinho que lhe é indispensável e sofre por se ver só, quando se sabe mulher, com apetites, paixões, desejos de ternura e afecto. Eu sei, porque você mesma ma disse, quanto é incompleto para si esse amor que hoje sente por um homem que diz amá-la. Você vive num refreamento doloroso, numa procura de emoções que a vão desiludindo. Ama sem confiança e sem coragem. Chega à situação quase absurda de duvidar da afeição que tem. Que quer então que lhe diga? É muito difícil e perigoso dar conselhos neste campo. Só posso dizer-lhe que, nas suas condições, uma rapariga deve meditar serenamente nos prós e nos contras, não se entusiasmar com possibilidades-fantasmas, ter em conta as duras condições de vida (esforçar-se por conhecer com toda a calma o carácter do homem de quem gosta) e, depois, não temer, não recear a entrega, desde que ela seja com um homem que a ama e por quem é amada, desde que não seja um acto-obrigação, mas um sentimento profundo, instintivo e imperioso que a conduz. Diz bem, boa amiga, a virgindade de uma mulher é um peso enfastiante.

Como vê, apesar da sua franqueza e dos elementos que me deu para eu conhecer com exactidão o seu temperamento e o seu carácter, eu não posso fazer mais do que apontar um caminho geral sujeito a naturais inadaptabilidades. Se fizesse mais do que isso emparelharia incomodamente ao lado de bruxos e pitonisas. Não veja, pois, no que atrás digo um conselho ou um incitamento. No amor só interessados conhecem a intensidade da atracção, a infelicidade que resulta de não se possuir a felicidade que esperam tirar da posse. Só aos interessados cabe ver, meditar e decidir.

Eis, boa amiga, uma longa carta em resposta à sua não menos longa. Espero que conseguirá vencer todas as dúvidas que a assaltam, que saberá pensar com serenidade na sua vida e no rumo futuro, que procurará agir como uma pessoa que pensa como pensa e não como qualquer burguesinha neurasténica e impulsiva. Espero que conseguirá vencer as suas infantilidades e compreender a precipitação das suas ultra-rápidas resoluções.
Amigo de sempre, ac.

11 de dezembro de 2005

Carta a uma jovem burguesa - parte II

Aqui vos apresento a segunda parte da carta. Para os que chegam com o comboio em andamento, remeto-vos para o post anterior.


Agora o problema familiar.

Você sente que a família lhe impõe uma vida que não é a desejada, que refreia as liberdades que você gostaria de ter, que intervém quase policialmente no que vai no seu espírito. Os seus pais, sua tia e até sua irmã bombardeiam-na com críticas e conselhos parvos e apresentam-lhe uma chocante perspectiva de vida. Você sente-se só, atacada e incompreendida. Sente que não está de posse das necessárias armas defensivas e que a sua total defesa implicaria um contra-ataque que levaria forçosamente ao rompimento. Daí esse seu enervamento ante os mais pequenos incidentes familiares, as suas respostas mal-humoradas, a sua irritação constante ante a vida da casa. Daí também o ódio (não tenhamos medo à palavra) que você em certos momentos de exaltação chega a sentir por pessoas que ama (acredite: que ama, apesar de tudo). Essa é a tragédia de todas as raparigas da sua classe que não se sentem ligadas a ela por egoísmo ou por gosto. São de facto incompreendidas, na medida em que avisados parentes ou conhecidos têm por «estarolices e leviandades que hão de passar com os anos» as reacções contra uma sociedade de injustiças, hipocrisias, de convencionalismo. Você sabe bem como eu sinto essa tragédia e a simpatia que me inspiram essas jovens de boa vontade e de generosos sentimentos.

Mas repare, boa amiga. A libertação da família, a independência em casa, a posição de igual para igual em relação aos mais próximos parentes só podem dar-se quando a rapariga tem a sua vida própria, quando a rapariga não é economicamente dependente da família. Então, sim, já pode reagir com todo o vigor contra as cadeias familiares. Mas, enquanto isso não sucede, os seus pais têm-na segura e julgam-se com direito de determinar o seu futuro. A ideia da propriedade privada sobre os filhos é uma ideia comum a todas as famílias burguesas.

Agora reflicta.
Que tem feito você para construir uma vida independente, para assegurar o seu sustento por suas próprias mãos? Tem você aproveitado todas as facilidades, que a sua própria família lhe deu, para conseguir uma profissão? Como estranhar que os seus pais sonhem com o seu casamento como um meio de a arrumarem, assegurando-lhe um futuro de bem-estar material?

Eis porque lhe digo, boa amiga, que você deve trabalhar no sentido de conseguir criar condições para viver à sua custa. Sem isso (e sem a hipótese, que em si, boa amiga, lhe parece absurda, de um casamento de conveniência), você continuará necessariamente a ter a mesma vida familiar conflituosa e desagradável, continuará as suas reacções, magníficas, sim, mas sem issue.
Finalmente o amor.
(continua).

10 de dezembro de 2005

Carta a uma jovem burguesa - parte I

Caros leitores:
após um mês de aparente afastamento dos meandros da escrita, afastamento esse que não foi de forma alguma premeditado ou propositado mas apenas obra do acaso e das contrariedades quotidianas, eis que vos apresento um texto que, na minha opinião, é simultaneamente uma pérola e uma lição de vida.Trata-se de uma carta escrita por alguém célebre da nossa praça pública, que me deu tanto prazer a ler que resolvi subscrevê-la aqui, para que possam dela desfrutar e, se assim entenderem, tecer comentários ou opiniões.
Devido à extensão da carta, e porque eu sei que nem todos os caros leitores resistem ao afã de ler muitos caracteres de seguida, decidi dividi-la em partes. No fim divulgarei o autor, e nessa altura poderão comparar as informações e opiniões que sustentam sobre ele, com as ideias veiculadas pela carta.

Já estava há muito tempo à espera de um momento particularmente oportuno para lançar no blog esta carta. Pois bem, creio que chegou a altura certa: tive uma conversa com uma pessoa em que debatíamos a real importância das classes socio-económicas no comportamento, desejos imediatos e ambições das pessoas, e a relevância destes três parâmetros sociológicos na escolha racional de um parceiro; no sentimento puro e instintivo desenvolvido por essa pessoa; e no êxito ou fracasso (comparando com a nossa experiência pessoal directa e indirecta) a que essa relação estará ou não à partida votada quando estabelecida entre pessoas de classes consideravelmente diferentes. Esta conversa foi breve mas muito interessante. Eu e essa pessoa discordámos parcialmente, e vim para casa com esta carta na cabeça. Se não encontrarem pontos de contacto entre o assunto da conversa e a carta (como eu encontrei, e gritantes), também não os vou explicar :)

Não obstante, a carta não se esgota nisto, pelo contrário. Espero que considerem o desafio tão produtivo como eu achei.
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Carta a uma jovem burguesa

Peço-lhe duas coisas. A primeira: que procure ler as minhas palavras com a ideia de que há da minha parte uma total isenção, isto é, que eu apenas procuro ajudá-la e de forma alguma impor-lhe um parecer ou forçar uma atitude. A segunda: procure ler as minhas palavras com o máximo de isenção da sua parte, isto é, sem que o seu orgulho e vaidade naturais e aquilo que você julga serem segredos da sua vida íntima possam desvirtuar o sentido das minhas ideias ou fazê-la reagir numa, aliás instintiva, irredutibilidade. Esforce-se por ver no que digo um caso geral que, por certas razões, pode ser o seu e evite pensar que eu aponto e generalizo o seu caso particular. Se assim fizer, conseguirá meditar com mais calma, o que neste caso significa: com uma melhor compreensão das realidades.

Outra observação prévia: recordo-lhe as conversas que tivemos e a possibilidade que então houve de nos observarmos à vontade. Lembre-se de que sou tão conhecido por si como você o é por mim. Faço esta observação para evitar que você julgue estar numa situação em que algumas pessoas têm por vezes julgado estar em relação a mim, isto é, conhecerem os tópicos fundamentais da minha vida, os meus objectivos, as minhas preferências e julgarem ao mesmo tempo ser pessoas «desconhecidas» ou «incompreendidas». Creio que você será suficientemente previdente para saber que eu também conheço os tópicos fundamentais da sua vida, os seus objectivos, as suas preferências e ainda um outro e mais doloroso aspecto: as suas impossibilidades.

Você pede-me indicações acerca do seu comportamento futuro. Repare, boa amiga, que as circunstâncias em que o faz mostram que você espera determinadas indicações e só por essa razão, só por julgar que eu posso, de certa forma, ir ao encontro dos seus desejos contrariados e das suas recalcadas ambições, só por isso você me procura neste momento. Você quer (melhor: necessita) que alguém lhe diga: «tem razão a tua revolta e a tua insatisfação; deves dar largas a todos os teus desejos, deves quebrar de vez todas essas cadeias que te prendem os movimentos.». Era isso que você esperava ao escrever-me. Eu também falaria assim, boa amiga, se as minhas palavras resolvessem a situação, se elas não só lhe dessem um ânimo e uma vontade mas também modificassem o meio em que você vive, as suas aptidões para lutar pela vida, as circunstâncias desfavoráveis em que você tem de agir. Mas, como assim não sucede, se eu assim falasse, estaria a dar-lhe uma perspectiva errada, estaria a conduzi-la a uma atitude precipitada e louca onde você soçobraria, pode crer-me.

São três os problemas fundamentais da sua vida: o problema da conduta geral ante a vida; o problema da família; e o problema do amor. O primeiro é o que parece dominar e determina essa tão característica insatisfação, essa desgostosa incerteza da conquista da própria felicidade, essas enérgicas reacções capazes de vencer montanhas e esses recuos de abatimento e de desânimo. Mas os outros dois problemas apresentam-se com mais vigor no dia-a-dia da vida e são eles que obcecam, que indispõem, que exaltam, que fazem perder a disposição para meditar e combater.

Você gostaria de ter uma vida mais harmónica com as suas concepções. Gostaria que tal vida absorvesse e arrastasse. Gostaria de se entregar a ela com paixão definitiva, de viver por ela e para ela. Faço-lhe essa justiça, porque sei que isso lhe dá confiança em si e fortalece a sua boa vontade. Mas repare. As raparigas criadas e desenvolvidas no seu meio, raparigas fartas e ociosas, receberam desde pequenas a influência desse meio e não são poucas as dedadas que nelas marcaram a fartura e a ociosidade. Eu posso supor que você não tema a adversidade, não tema as dificuldades mais brutais. Posso mesmo supor que o seu desejo seja caminhar para elas, no propósito de as defrontar e vencer. Mas esse é um impensado desejo que não tem em conta as suas próprias debilidades, os seus próprios defeitos, as raízes que afinal a prendem - contra a sua vontade - à sociedade em que você se fez mulher. Não é no movimento brusco e violento que uma rapariga burguesa - burguesa na educação, no standard económico, em anos de vida - se desprende da sua classe e aceita no fundo do seu ser as contingências de uma nova vida, que implica sacrifícios diários dos mais variados. Não é num movimento brusco que a sensibilidade (da pele e dos sentimentos) se modifica, se tempera, se enrija. Esse género de felicidade que você deseja, a felicidade pela coerência e pelo acordo dos actos com as concepções, não se conquista por mero acto de vontade. É numa batalha de anos, num crescendum de forças íntimas, numa amoldação progressiva às dificuldades e à luta, que se cria a única condição que pode tornar possível a conquista de uma tal felicidade: o acordo real entre as concepções, os apetites, a sensibilidade, os desejos mais profundos e instintivos. Eu não quero desanimá-la, boa amiga. Quero apenas fazer-lhe ver - para que você consiga forjar o seu futuro - que está ainda nas primeiras e mais instintivas reacções e que tem na sua frente um longo embora prometedor caminho. Creia que seria para si própria um motivo de desilusões uma mudança radical imediata da sua vida. Você não está preparada para isso, não pode estar preparada para isso. Em breve seria vencida e estaria votada a um regresso doloroso a uma vida que odeia. Você deve ter em conta a sua situação, as suas verdadeiras qualidades e as suas verdadeiras dificuldades, para, dentro da realidade da sua vida, procurar agir de forma consequente. Pode crer, boa amiga, que lhe é possível fazer muito, sem que tenha de imediatamente dar um audaciosíssimo passo em frente.

Pena é que não tenha começado ontem o que só agora vai talvez começar. Mas houve razões e a compreensão de que elas foram independentes da sua vontade deve animá-la ao esforço que agora tem de fazer. Sinceramente lhe digo que poderá um dia alcançar a felicidade que deseja, o acordo absoluto entre os actos e as concepções. Mas, para isso, tem de batalhar muito, com serenidade que não exclui ardor e paixão, com inteligência que não exclui os movimentos instintivos, com confiança que não exclui impaciência e insatisfação.
Agora o problema familiar.

(continua)