8 de novembro de 2005

História para adormecer

Acordaste em sobressalto. Desesperada. Atiras o lençol para o lado e sentas-te na cama, a tremer; levas as mãos à cabeça e soluças baixinho, no escuro do teu quarto, ainda a viver o pesadelo horrível ao qual puseste ponto final com o teu acordar.

Seriam lembranças do passado? Temores do presente, desconfianças no futuro?

Abres a porta e sais para fora da tua conchinha, fazendo aquele tsss tsss tão familiar de uns pezinhos pantufados no chão. Abres o frigorífico e toda uma luz gelada sacode o escuro da cozinha. Não é isso que queres. Enches um copo com água, escancaras a janela marcada por outras conversas... e respiras o ar frio da madrugada ainda menina. Sentes nos braços o parapeito húmido enquanto espreitas de olhos embaciados cá para fora, para o mundo exterior, onde o silêncio é de quando em quando quebrado pelo som cavo e ritmado de pneus a atropelarem as lombas da estrada. Trum trum... trum-trum, trum-trum trumtrumtrumtrumtrumtrum...
Observas, hipnotizada, os semáforos intermitentes como eu. Cuidado... perigo... avançar com cuidado... avançar com cuidado... perigo...
Sou mãos nos teus ombros, polegares no teu pescoço exposto e restantes dedos repousantes nas tuas clavículas. Sentes? Não consegues dormir? Acalma, foi só um pesadelo... já passou, vem dormir, não fiques ao frio.
Sou agora colo pairante no ar, no qual flutuas de volta à tua cama. Sentes a leveza? És menos densa que o ar... sou calor que sublima o frio nocturno da tua pele e te devolve o aconchego do teu quarto.
Deita-te. Sou o teu colchão. Não, espera... estou também por cima de ti, sou ao mesmo tempo o teu lençol. Sou uma brisa quente e fria que passa pelo bordo da tua orelha sem nada dizer e te arrepia os cabelos. Consegues senti-la?
Sou corpo que ondula por baixo do teu, acariciando-te as costas. Também sou pé que te seduz a barriga da perna com artes de algodão e ofícios de trincha de pintar...
Sou pontas dos dedos que te tocam o peito ao de leve e te fazem levantar a pele como água em púcaro por cima de brasas. Respira fundo e ondula comigo. Devagarinho...
Fecha os olhos doces, tão doces... doce-diabético. Sou mão que desliza pelo teu ventre que não mostra qualquer defesa. Devagarinho... enervantemente devagar. Sou lábios que te tocam a bochecha, perto do biquinho da boca. Consegues sentir a humidade quente à tua volta? Crispa os dedos dos pés no colchão.
Respira agora mais depressa. Estás inquieta, não é? Acalma... tens todo o tempo do mundo e lá fora ninguém te espera...
Sou a mesma mão que desce pelo teu ventre que não defende mas tenta atacar. Sou outra mão que te acaricia o coração... mais dentro, mais fundo. Devagarinho... consegues sentir o teu coração a bater depressa? Consegues sentir-me como sopro rápido no teu ouvido, que não diz nada do que queres ouvir? Consegues imaginar os meus dedos a massajar o teu couro cabeludo, puxando os teus cabelos húmidos com suave violência?
Sente-me como mão, a deslizar sobre o teu coração molhado, devagar, mais depressa, mais depressa ainda, como o barulho das lombas da estrada, insisto, como que a reanimar-te, ainda mais depressa... retesa os músculos todos, arqueia-te como um gato, sustem a respiração, cala-te! ... Consegues sentir como te quero bem?!...
Desfalece sobre o colchão, adormece cansada, descansada... amanhã é outro dia e o mundo esperar-te-à lá fora.

Descansa bem...

4 comentários:

  1. Olá João,

    Vou fazer-te uma pergunta ousada? Esse post foi “inspirado” no meu?
    Tenha sido ou não, mais uma vez fiquei impressionada com o teu texto. És super versátil na forma como escreves e… surpreendente.

    Bjs,
    Cláudia

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  2. Oi Cláudia :)

    Depois de ter lido o teu post percebi o que querias dizer.
    Por acaso não foi inspirado. Podia ter sido, já que tudo o que escrevo é feito das migalhas que apanho aqui e ali, e depois mastigo-as e pode sair pão de ló, lampreia de ovos, batido de atum... o que for.

    Este post é dedicado a uma pessoa a quem quero muito bem, incondicionalmente, e que costuma ter pesadelos. Quero que ele sirva para que ela se lembre de que eu estarei sempre presente em espírito a velar pelo seu sono, quando não conseguir dormir...

    Fico contente com a versatilidade que me apontas. Ultimamente tenho tido muitas ideias e torna-se difícil manter-me longe do teclado e coibir-me de escrever. Mas isto tem-me custado muita energia. Não sei se te acontece o mesmo ou a outra pessoa qualquer que leia este comentário, mas a verdade é que fico esgotado depois de escrever, mesmo um texto tão pequeno e aparentemente tão simples como este...
    Sempre me aconteceu, desde que me lembro de escrever. Não acontece a mais ninguém?

    Beijos:)
    João

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  3. acontece sim senhor. Este é mais um excelente texto da nova vaga do Verão de S. Martinho. Parece que a chuva dos últimos tempos foi capaz de fazer desabrochar a criatividade em alguns cérebros ressequidos (o meu parece ainda forrado com parafilm, mas enfim)...


    errr, quer dizer, fantástico também este texto.

    Um abraço,
    Rui

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  4. Se eu conseguisse retribuir-te à altura…
    Saberias o quanto gostei do teu texto,
    O quanto gosto de ti, o quanto gosto de nós...
    O quanto gosto de abrir a porta e ver q és tu...
    De atender o telefone e ouvir a tua voz...
    Do teu cheiro, sabor, toque...
    De quando namoramos, rimos, brincamos...


    Assim... nesta tentativa...
    Espero que sintas que também te quero bem...
    Quero que ilumines os meus sonhos,
    Para que não tenha pesadelos...
    E que ilumines simplesmente o meu sono,
    Iluminando sempre o meu pensamento...

    Obrigada! Adoro-te!

    Me...

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