14 de outubro de 2005

Sleight of hand

É curioso pensar sobre como a vida toma o seu rumo. Distraídos, nem sentimos o tempo a passar por nós, enquanto vamos percorrendo o nosso caminho... saltamos troncos caídos no carreiro, baixamo-nos para passar por baixo de um ou outro ramo de árvore, enquanto pensamos a todo o momento nas nossas opções e no que elas implicam. Pensamos mesmo?
Nunca fui um fatalista, nem tão pouco determinista. Não acredito que tenho um destino encomendado. Mas acho que, embora o nosso percurso seja influenciado pelas nossas vontades mais ou menos intensas, é-o como um barco muito pesado que segue em frente, e que, de vez em quando, se desvia uns poucos décimos de grau de cada vez que acordamos da letargia e sopramos nas velas com uma direcção diferente!
Quando era novinho, via o meu pai como exemplo de princípios e virtudes, e queria ser como ele quando crescesse. Depois veio outra fase em que pensei que, apesar de lhe reconhecer várias qualidades (entre as quais a educação que me proporcionou), não quereria seguir-lhe as pegadas. De certa forma, a minha capacidade de análise, à medida que se ia desenvolvendo, permitia-me desejar que só queria absorver a parte boa dele (se é que se pode imaginar uma divisão tão artificial), evitando as suas falhas. Por fim... e talvez fruto da tal letargia que nos impede de ter consciência de que a vida é um bem precioso que não pára de se esvair como areia por entre os nossos dedos bem abertos... dou por mim a ser muito parecido com ele, particularmente nas falhas que, alegadamente, tem. Não deixa de ser curioso. É apenas um exemplo de que a nossa força, usada a espaços, entremeada com períodos de dormência, não chega para desviar o barco tanto como estaríamos convencidos de ser capazes de fazer.

Quando desenho, raras são as vezes em que consigo acabar uma ilustração tal e qual como a imaginei de início. Erros, traços erráticos, apagadelas de dedo, vão contribuindo para que o resultado final seja menos ou mais diferente do desejado inicialmente. Quando, num dado ponto do espaço e do tempo, paramos para reflectir no futuro, há sempre meia dúzia de ideias que pretendemos ver concretizadas, como se imaginássemos um esqueleto de como pretenderíamos que a nossa vida fosse nos próximos anos. Mas, daqui a algum tempo, ou mesmo há algum tempo atrás (noutro local, noutra altura, portanto), essas ideias serão/eram, pelo menos, ligeiramente diferentes. E o barco vai andando, sempre em frente, como que puxado por um raio de tracção de um disco voador extraterrestre, mesmo que, de quando em vez, seja um bocadinho desviado por guinadas; umas, suaves, prolongadas, quase imperceptíveis, como um sopro num dente-de-leão; outras, mais fortes e curtas, em jeito de mioclonias durante o sono.
É raro lembrarmo-nos do esqueleto vital que tínhamos esboçado antes, e isso é independente do detalhe de nos sentirmos ou não felizes com a vida que temos actualmente. As coisas nunca correm exactamente como queremos; na maior parte dos casos, acontecem de forma muito diferente. Feliz ou infelizmente? Nunca o saberemos; e ocorre-me a ideia de que o facto de não nos lembrarmos é uma defesa do Eu, do Nós, contra a potencialmente desastrosa tomada de consciência do fracasso que sentiriamos se pudessemos comparar o idealizado com o realizado.
Olho para a minha vida e vejo que tenho seguido um percurso muito atípico. De cada vez que calha meditar sobre isso, sinto-o com um misto de orgulho, inquietação, vaidade e resignação. Não que o meu barco seja leve e fácil de manobrar. Simplesmente, o eixo em torno do qual ele oscila tem um declive bastante diferente do da maior parte dos outros barcos. Como diria um grande amigo meu, não sou exemplo para ninguém; ele tem com certeza uma grande dose de razão.

Vamos então ficando mais velhos, como num passe de mágica. Nem damos por isso! Sinto-me como um caracol a arrastar-me vagarosamente pelo presente, mas quando olho para trás vejo que passou tudo tão depressa. Até mesmo o que custou a passar. A vida é um cigarro que só se apaga no fim... nem que lhe chova em cima, entretanto.

No fim desta reflexão, a lição que vou aprendendo é esta: rematemos, nem que seja de longe! Escrevamos, nem que a sintaxe seja ilógica! Não tenhamos medo de tocar o outro, de lhe provocar reacções, de o acordar da latência! Não nos deixemos parar pelo medo do ridículo; pelo embaraço; pela impaciência de chegar a amanhã! Bebamos um bocadinho de cada taça! Declaremos despudoradamente as nossas paixões! Não percamos o timing... por favor.
Já que o barco vai em frente, porque não gozar a viagem ao máximo? Quando ele chegar à margem, não vamos ter tempo para arrependimentos. Mas também não teremos outra oportunidade!

5 comentários:

  1. Texto absolutamente fantástico. Parabéns!

    “… Feliz ou infelizmente?”

    Acho que vais gostar de ler este artigo: http://www.matr.net/article-7954.html

    ResponderEliminar
  2. Muito bom mesmo, gostei imenso de ler e no fundo é mesmo isso aproveitar a viegem ao máximo porque no oceano da vida ha coisas tão fantasticas para ver, tocar, ouvir e cheirar!

    ResponderEliminar
  3. Cara crs:

    Muito obrigado. Ainda bem que gostaste. E a tua referência só mostra que entendeste a fundo o que eu queria transmitir com o que escrevi.

    Feliz ou infelizmente... porque nunca sabemos se o que desejamos será o melhor para nós. Ao ler o artigo, fiquei muito contente por perceber que há gente que também se debruça "cientificamente" por este tema! Fiquei surpreendido pela positiva :)

    Enfim... esta temática é um misto de "Deus escreve certo por linhas tortas" com... "Tem cuidado com o que desejas, porque pode-se tornar real".
    Uma coisa é certa... há já algum tempo atrás que aprendi a aceitar e a gostar que nem tudo dependa de mim. Assim a variabilidade multiplica-se, as hipóteses tornam-se infinitas, e entre desejos e limitações impostas há ainda muito espaço para tirar prazer pela vida!

    Espero que me honres mais vezes com a tua preciosa colaboração.
    Cumprimentos...
    João

    ResponderEliminar
  4. A constante deambulação pelos corredores o HSFX confirmam a efemeridade daquilo a que chamamos estar vivo. De repente e sem darmos conta, estamos na contingência de padecer e cair num tempo em contagem decrescente e em que só a força revitalizante da esperança nos mantém. Nessa altura, em que todos os planos desvanecem e em que o resguardo do lar numa noite de chuva e vento é mais mortífero do que o frio que se faz sentir, sentiremos verdadeiramente a falta do que deixámos por concretizar (muito mais do que daquilo que já conseguimos). É por isso que estou inteiramente de acordo com a atitude ousada e incoercível que deverá pautar um pouco da nossa vida, limitada pela ideia de "não estragar" o que já foi alcançado!

    Parabéns STP, foste mesmo ao centro da questão;)

    Beijinhos
    Isa:)

    ResponderEliminar
  5. Andavas a pensar nisto fazia algum tempo. Agora pensas um pouco diferente sobre a temática do será que somos o que fazemos... Dás mais importância aos factores externos e pouco controláveis. Quem iria adivinhar que logo ali depois da bruma estaria um iceberg! Realmente, nem num rabisco do teu projecto de esqueleto Dali incluiria estupefacientes... :) Mas nós ainda temos o poder de decidir!

    As fotos estão mesmo fixes!

    ResponderEliminar