9 de novembro de 2005

Primeira pessoa do singular ou do plural?

“Será que dá para um sofá? Dá, dáá, dáá… e aquela viagem ao Brasil? Dá, dáá, dáá…”. O dedo corre automaticamente para o botão para mudar o posto.
- Onde queres que te deixe?
- Deixa-me ali na estação, mais ali à frente…
- Então não vens comigo?
- Dá-me mais jeito ficar aqui, até logo.
O pensamento solta-se tão depressa como o corpo do carro e a porta fecha-se. Quase até que passa das sinapses ás cordas vocais. Ar fresco! O caminho hoje é feito a pé, caminhar é sempre bom, dar uma volta na própria companhia. Esta decisão está a ser difícil, as coisas não são rosas e ainda por cima já estou farto de estar sempre a lavar louça! Perco tempo a fazer comida, arroz, bifes, esparguete, alho daqui, cebola dali, margarina, já sabes – mal passado! Nunca está nada bem. Este vento sabe bem… nunca, nada, que palavras fortes. É difícil, custa, gostava de ter isto e aquilo, aqueles têm aquilo… ás tantas os carros apitam. O pensamento fez o corpo desaguar no meio do trânsito.
- Epá, ‘tás drogado ó quê? Estes gajos que se metem na passa… – primeira a fundo e lá vão eles à procura de outro problema.

“De 400 a 5000 euros peça o que quiser…”
– Estes gajos dão dinheiro em barda – desviando o olhar da televisão – ‘Tão pá acorda! Que é que me querias contar?
– Ah, nada demais, só para saber como andas…
– Eu sempre na mesma – uma testa que se franze e um sobrolho que se dobra – e tu puto?
– Estou bem, um pouco dessintonizado.
Uma gargalhada sincera. O galão leva uma sopradela que lhe desvia a espuma e o vapor que dele sai ganha o sentido do sopro, voltando de seguida ao seu calmo rumo. Os olhos fixam o menisco e o copo fica com um golo a menos.
– Isso é o que se diz quando não se quer contar o problema. Tu lá sabes.
– Já viste aquela ali? Era cá uma baleia na secundária… olha lá agora! – Pá, ó vidraças, e se fosses ver se eu estou ali na esquina? Estamos aqui os dois para tentar sintonizar o tipo e tu só com merdas!
– Mas há algum problema?

“É só ligar e em 24h tem o dinheiro na sua conta…” – a voz fica robótica e dilui-se em ruído. O dedo vai atingindo aleatoriamente os botões do rádio sem resultado.
– Até o rádio não funciona? Mas será que alguma coisa funciona na minha vida? – o rádio recebe um murro abafado. Os olhos brilham mais, dir-se-ia que molhados. O pensamento é confuso. Não é arrependimento mas antes um tapete que sai debaixo dos pés, o que já não aparece feito… É sempre melhor pensar que há anões mágicos que fazem com que tudo apareça feito, ao bom estilo da fada dos dentes. Eu faço um esforço, ele também, mas parece que não chega… O que será que falta? Será que falta? Não temos vida para isto, parece que era tudo mais fácil antes!
As buzinas e os sinais de luzes fazem lembrar que o sinal deixou de estar vermelho.
– Ele tem de me ajudar…

“Quem tem pode, você também pode ter tudo o que quer, basta ligar…”
– Então mas conta lá como é a vida de casado…
– É baril, não é muito diferente. Até é melhor, é um jogo mais difícil.
Jogo mais difícil, mas o casamento é um jogo mais difícil? A pausa faz crescer a curiosidade.
– A nossa casa tem aspiração central, é porreiro, é mais fácil de limpar, a minha avó diz que é muito melhor! – A curiosidade não foi saciada.
– Mas a tua avó é que aspira? Por isso é que é um jogo difícil? – um pouco de ingenuidade escandalosamente forçada parece resultar com pessoas que se têm em boa conta.
– Achas que aspirar é um jogo? Lembras-te da minha despedida de solteiro? – um aceno de cabeça com os olhos fixos sem pestanejar cataliza o diálogo.
– Pois é. Então posso dizer que desde então faço Lisboa Badajoz em menos de três horas!
Bateu e fez ricochete com alguma violência.
– Mas a tua despedida foi naquele strip club ranhoso!? Que é que tem isso a ver com Badajoz? – talvez caramelos!
– Isso amigo foi a oficial, a “off the record” – os dedinhos fazendo as aspas e o sorriso de canto de boca empregues como elementos cénicos dando corpo à cena – passou pelo outro lado da fronteira! Quarenta euricos e pau… do bom e do melhor, e ainda me passa uma jola pelo estreito! Um gajo que se sabe cuidar! – e acompanhou a frase mantendo o sorriso e descendo as mãos paralelamente ao tronco, um elemento cénico normalmente interpretado como reforço de alguém que se cuida, que pensa em si!
Acho que o sorriso não conseguiu sair como era pretendido mas com a mesma ingenuidade escandalosamente forçada a corda foi esticada.
– Então e planos futuros? – a voz não conseguiu ser verdadeira.
– Amigo, agora venham os miúdos! Mas já chega de falar de mim! Fala-me de ti. Pelo teu telefonema parecias precisar duns conselhos…
Há frases que fazem um ser humano levantar-se como uma mola de esferográfica pressionada entre os dedos.
– Olha-me só as horas, tenho de ir fazer o jantar, hoje chegamos tarde a casa. Um abraço.
– OK. Já sabes que podes contar comigo – desta vez o elemento cénico foi o polegar para cima. Que raio quer isso dizer?

“Compre agora, pague depois!” – vocifera o rádio do porteiro.
– Boa tarde! – a custo pois o peso que vem nos braços tira energia à voz.
– Meus Deus vêm carregadíssimo, deixe que eu lhe dou uma ajuda.
As sardinhas de conserva em molho de tomate não se sentem tão apertadas como neste elevador. A chave roda, o pé ajuda a abrir a porta.
– Mas por onde andaste? – a voz chegou antes do corpo. Um barulho metálico ecoa no corredor qual andaimes que se despenham dum 10º andar ou então foi um tacho que escorregou duma mão. Como que atingida por um raio congelante dum silver surfer qualquer estancou.
– O que é isso?
– Não sabes? Geribérias! Também não sabia que existiam tais flores! Vais gostar sempre do mais difícil! Gostas?
A figura congelada assim continuava, raio congelante potentíssimo prova-se assim serem as Geribérias.
– Qual delas?
– Não sei! Escolhe uma entre estas 300.
– Porque fizeste isto?
– Lembrei-me que me andava a esquecer do mais importante, do quanto te amo! Isso e porque apanhei uma promoção óptima! – o elemento cénico de encolher os ombros foi utilizado, provando-se aqui que tudo tem um lado bom. O efeito do tal raio passou e um beijo quente desprendeu-se fazendo cair cerca de 300 geribérias – nenhuma florista tem tanta flor! – e uma série de outros adereços que nos enchem armários.

5 comentários:

  1. Simplesmente fantástico


    Um abraço,
    Rui

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  2. Genial, Pedro.
    A-do-rei.

    Bjs,
    Cláudia

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  3. Caro Pedro

    Penso ser a primeira vez que escreves um texto tão pessoal. Está admirável a forma como consegues passar de diálogo para diálogo, e de cena para cena, com os interregnos publicitários da rádio (detestáveis, de resto). Toda a estrutura do texto está imaginativa e envolvente, e fico honrado por ser um dos personagens.
    Compreendo bem porque é que escolheste os diálogos que escolheste. Parecias um presidente da república a consultar várias figuras públicas antes de tomar uma decisão complicada, como dissolver um parlamento ou promulgar uma lei :)

    Admiro também a forma como consegues, apesar das contrariedades e da tempestade emocional que espelhas em cada palavra, terminar o texto com uma forma tão surpreendente e tão romântica. Espero que ela tenha gostado de ler o texto, e também espero que tenhas ficado mais perto de acertar agulhas com o caminho que tens escolhido.

    A temática do teu texto (bem subjacente, mas não demasiadamente explícita) é um problema que admiro mas para o qual não tenho solução. Quanto mais velho fico, menos quero pensar nele. Nunca sabemos o nosso futuro, mas pelo andar da carroça vou ser um daqueles que todas as noites joga à bola com pessoal diferente, ou poker... e daqui a uns anos vou ser o tio dos putos em cada festa de aniversário, ao pé dos croquetes e amendoíns, aquele que ainda joga às escondidas com eles :P

    Um grande abraço daquele que "não é exemplo para ninguém" :)

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  4. amendoíííííns... o acento é só para reforçar :$

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  5. Tem de haver uma primeira vez para tudo! Gostei de escrever este instantâneo meio fantasiado meio real. Não sei se sairá algo mais de jeito, desconfio que foi filho único!

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