30 de agosto de 2005

Sei lá...


Talvez porque a noite vai longa e o calor de mais um dia de verão deu finalmente lugar ao frio de um luar límpido e estrelado, onde dois lasers se cruzam em direcção ao nada; talvez por isso... eu sinta esta vontade enorme de escrever.
O espesso e pesado ar da estação, lascante e árido, fere e arde como as feridas a descoberto (após dascarnadas as crostas). É uma sensação estranha! Eu amo o sol, a praia, a água... embora não consiga esquecer a chuva, o gelo matinal a música percutida pela água que choca com o vidro.
Mas não pretendo ficar para aqui a fazer considerações acerca das minhas preferências sazonais. Gostaria sim de me lançar num campo de padrões e contrastes onde me perco, talvez por incompreensão e ignorância, talvez por feitio!
Há muito tempo que procuro entender por que razão determinados grupos de pessoas tendem a seguir à risca um determinado rumo, ladeado por gostos definidos e incontestáveis. O que leva um indivíduo a defender acerrimamente determinado comportamento ou maneira de estar?
As minhas dúvidas e interrogações baseiam-se em experiências vividas com vários amigos com os quais, nas mais diversificadas actividades, vou tendo oportunidade de contactar.
Descrevo tal relacionamento como clusters individualizáveis por traços visuais, gostos musicais e literários... papéis desiguais. Não sei qual a designação correcta de cada tribo, se assim lhe podemos chamar (penso que sim), muito embora as sinta e veja e tente compreender e compreendo!
Não é muito difícil chegar a esta constatação. Quem ainda não reparou no grupo hip-hop, tá’s bem, yo, calças largas, medalhas ao peito? Quem ainda não se apercebeu do grupo Bob Marley, rasta people de mochila às costas e chinelos na plataforma da estação de Santa Apolónia? Quem ainda não deu conta da cultura urbana e subversiva que ama o Chiado e o Bairro e vive sequiosa de lutar pelas causas mais à esquerda (atenção, não pretendo estar contra esta posição porque até eu sou de esquerda.. não o nego) ao som de Placebo, Jorge Palma, Jeff Buckley, Nick Cave, P.J. Harvey, Ben Harper (para alguns), The Gift, Ornatos (Pluto), Xutos, Radiohead e porque não Pearl Jam, entre tantos outros? Quem ainda não ouviu os berros da cultura trash, negra, macabra; culto da auto-destruição, muitas vezes presente em mentes conturbadas, puro fruto dos tempos... solidão? Há ainda a cultura dita “clássica”, nome que eu contesto quando no qual se pretendem incluir nomes como Debussy, Chopin, Bach, Ravel, Liszt... entre tantos outros! (optei por não entrar pelos campos da Pop, fiquei-me pelo Hip, pelo pessoal da House, entre tantos outros que de certo serão conhecidos por todos).
Perante o parágrafo anterior (bastante incompleto, dado o limite de espaço; vale pela intenção, assim o espero) facilmente se constatam as diferenças vigentes na sociedade jovem (sobretudo) actual. Vivemos de ícones, tentamos seguir as tendências que nos parecem ser as mais originais e estar de acordo com a nossa forma de viver a realidade. Procuramos a todo o custo a singularidade, muito embora sejamos atraídos para um campo de particulas em tudo semelhantes.
Antes de concluir o meu raciocínio, daria o exemplo do recente concerto U2 e do fanatismo exacerbado para ouvir uma banda que quanto a mim (e não entrando pelo campo das missões) vive do passado e do espectáculo visual; da expectativa criada nos milhares de fãs que muitas vezes ali estão mais por se tratar de U2, do que por apreciarem a sua música (quanto a mim demasiadamente repetitiva, como se fosse oriunda de um papel químico... mas isto é uma opinião pessoal). Bem sei que uma banda, para manter determinado status, necessita de criar todo um envolvimento e “grau de dificuldade” soretudo no que se refere à obtenção dos bilhetes contudo, e agora não me referindo exclusivamente a U2, penso que os ditos músicos dão mais música do que aquela que fazem. Perdoem-me os fãs!
Um conselho que costumo sempre dar e que tabém a mim foi dado é o de, aquando da audição de uma música, fechar os olhos e tentar seguir o rumo de cada instrumento, tentado posteriormente reuní-los num conjunto, que acabará por constituir a própria música. Em seguida junto a letra e tento perceber o que quer dizer. Desta simples actividade resulta ou uma obra-prima, ou algo que até parecia ter nexo mas que cai num marasmo completo, quando se tenta valorizar o verdadeiro sentido musical. Fica aqui o conselho...
Mas voltando à ideia inicial, e tomando como novo ponto de partida o que anteriormente referi, torna-se de certa forma claro que muito antes dos gostos que nos movem, vêm os sentimentos e emoções que experimentamos ou experimentámos aquando do primeiro contacto. Não condeno que alguém goste de algo que considero absolutamente horrível, se esse algo se fez/faz acompanhar de um sentimento marcante e belo (também isto é válido na versão marcante e triste).
Alguns dos exemplos que considero válidos são os “grupos da adolescência”. Quando falo com pessoas mais velhas, apercebo-me que há uma camada louca por Pink Floyd, Led Zeppelin, Rolling Stones, entre tantos outros que nada significam para muitos de nós, mas que marcaram toda uma geração que continua a segui-los/ouvi-los, talvez porque esse acto desperte e abra espaço para um certo reviver do passado, mesmo que pela memória de escassos minutos.
Todos nós nos movemos num espaço limitado de singularidade de comportamentos, ainda que a nossa vivência desses comportamentos seja única, tal como o nosso genoma. Podemos achar que ouvir música dita “não comercial”, é de facto não comercial esquecendo-nos porém que, como nós, muitos outros compram essa mesma música. Contudo, penso que poderemos afirmar que qualquer música, “comercial” ou não, desperta em nós sensações diferentes e únicas, boas ou más. É isso que faz com que gostemos ou não!
Foi precisamente por isso que decidi enveredar por este rumo, nesta noite, neste preciso momento em que ouço uma das músicas do “Paciente Inglês”, um dos filmes mais marcantes da minha vida.
Como é curioso!
Se me pedissem para resumir o filme tanto poderia dizer que se trata de uma história tipo novela de quinta categoria, em que um gajo cai de uma avioneta ficando todo queimado e é recolhido e acolhido por uma enfermeira, sendo que ao longo do filme nos vai sendo contada a sua história até ao fatídico episódio da queda... afinal ele está assim porque quis... quem mandou meter-se com a gaja!; Como poderia contar a história como de facto me marcou, tornando-se impreterível o relato da cena inincial em que K desenha as figuras representadas numa pedra; a noite da tempestade no deserto e o prenúncio de uma ligação entre ambas as personagens; a ária das Goldberg Variations de Bach tocada num piano no qual se escondia uma bomba; as velas colocadas ao longo do caminho que guiava a enfermeira até ao soldado; a dança aérea sobre o extenso areal, acompanhada pela música que ainda hoje, neste momento em que escrevo, me causa arrepios; entre tantas ouras cenas e momentos de rara beleza!
Talvez se ouvisse a música das “Palavras que nunca te direi”, também ela composta por Gabriel Yared, não sentisse aquilo que agora sinto. E porquê? Porque aquilo que em mim ficou apenas se faz de música... faltando os restantes sentidos... as imagens! E tudo isto para exemplificar a incongruência da intransigência que se faz sentir nos dias que correm.
Hoje tudo se partidariza... tudo se fragmenta! Todos puxam para seu lado, tal como as galáxias que se afastam. Contudo, se a extrapolação assim o permite, tudo se reunirá de novo, num ponto de atracção mútua, de polos opostos que interagem entre si!
Na minha opinião cada um de nós deverá libertar-se para sorver tudo o que hoje se encerra em blocos de tendências e modas. Quer gostemos, quer não, deveremos sempre dar uma oportunidade para que aquilo que para nós não faz sentido tenha uma oportunidade para se explicar... afinal... se faz sentido para tantos outros...
Não devemos discriminar mas sim aceitar, ainda que não partilhemos ou perfilhemos dos mesmos gostos e opções. Só assim, de consciência formada, poderemos dizer não e sim. E se dessa atitude a fragmentação resultar... será uma pseudo-fragmentação porque de certo, algo de diferente ficou em nós, algo de semelhante nos aproxima de outras (mesmas) realidades.
Façamos então um esforço para a compreensão... Só assim poderemos atingir uma vivência mais verdadeira connosco e com o mundo. Só assim poderemos enriquecer as relações interpessoais... o que se torna obrigatório para toda a gente e, em especial, para aqueles que como nós pretendem encarar a dura realidade da doença e do sofrimento- esse sim, global e universal, no “agora e sempre” em que vivemos.

4 comentários:

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  2. cara "iris",
    por várias vezes me sinto invadida por uma inquietude semelhante à tua, ao deparar-me com a segmentação e até estandardização intelectual que nos rodeia.
    mas, repara: todas as pessoas procuram, em última instância, a sensação de integração no meio em que vivem e no qual se investem a elas próprias. seja numa cidade grande como lisboa, numa mais pequena, numa aldeia perdida nas montanhas, onde quer que seja. quando passamos pelo conturbado período de adolescência em que, por um lado pomos em causa os valores que nos foram incutidos na infância e, por outro, tentamos fundamentar a nossa identidade numa "filtraçaõ" do que nos rodeia com base nos valores e sentimentos que temos enraizados, acabamos por fazê-lo inseridos num grupo de influências que, de um ou outro modo, nos marcam. e entre essas influências estão, sobretudo, os amigos. faças o que fizeres, penses o que pensares, acabas por estar sempre inconscientemente dependente do que eles vão achar e da aprovação das pessoas de que mais gostas.
    e os grupos de adolescentes têm comportamentos típicos, consoante a sua índole e a liberdade individual. por sua vez, cada membro do grupo tem também a influência dos pais e da família. por exemplo: tu quiseste tocar guitarra e acabaste por ir para o Conservatório, onde recebeste uma formação clássica. procuras conhecer música de vários tipos, mas, se calhar, se não tivesses essa formação musical, a tua sensibilidade para a música, e, particularmente, para a música erudita, seria diferente. agora imagina um miúdo de 12 anos que queira aprender a tocar guitarra. os pais gostam de música "comercial", anunciada na TV, e colocam-no no junta de freguesia, por ser mais perto de casa, a ter aulas, onde ele aprende a tocar música popular. que sensibilidade desenvolveu ele passados alguns anos para apreciar a tão denominada música clássica?!
    outro exemplo. tens outro miúdo com 14 anos que gosta de nirvana. os pais não têm muito dinheiro, mas compram-lhe uma guitarra. ele, aos poucos, vai arranjando os acordes das músicas que gosta e fica-se, assim, pelo grunge.
    estes exemplos são demasiado estereotipados, eu sei, mas quero com eles expressar a ideia de que, por vezes, se ninguém te falar de determinados assuntos, sejam de música, restante cultura, política..., tu não dispertas para eles, e acabas por tentar saber mais apenas sobre os assuntos que te são mais familiares.
    então, se és "hip hop", tentas acompanhar os lançamentos todos dos cds do eminem, do snoop doggy dog, dos da weasel e de tantos outros, mas estás-te borrifando se uma tipa, perdoem-me a expressão, chamada P.J. Harvey ou Beth Gibbons lançou um cd novo.
    e daí partes para os locais mais frequentados, quer à noite, quer durante o dia. e, associado a cada local, a cada onda musical, ao tipo de mensagem transmitida, a sua cultura própria - para filmes, movimentos políticos, look, livros, eventos de férias com os amigos...
    tudo depende das influências que recebemos, mas concordo contigo, e defendo que um dos mais importantes valores que devemos cultivar é o da tolerância e o da receptividade, e às vezes temos preguiça - falo por mim, que nem sempre estou virada para ouvir música com a qual, à partida, não me identifico.

    gostei muito do teu texto e do trabalho que apresentas no post anterior.

    peço desculpa pela extensão do meu post... acho que acordei com os instintos sádicos on. como diz o título, "Sei lá...".

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  3. Gostei bastante do texto e responderei a isto com uma curiosidade que não posso deixar de referir que vinha na revista científica Nature: cada uma das notas musicais existentes na escala é reconhecida por um grupo específico de neurónios, a nível cortical, que nos permite reconhecer uma mesma nota tocada numa flauta, numa guitarra, num piano, num violino. Onde quero chegar com isto? A música passou a ser uma cultura de massas. Deixou de ser apreciada a componente musical, em detrimento da componente visual. Sinceramente, música é para ser ouvida e não "vista". Acham que se Mozart ou Bach fossem vivos que fariam videoclips dos seus trabalhos? Porquê? Porque vivem exclusivamente da arte musical. Não precisam de transmitir uma mensagem verbal, embora possam transmitir sensações e sentimento, que poderiamos tentar descrevê-los e passá-los para o papel. O uso da imagem que não seja dentro do contexto da música, deixa de ser música. Queremos alguém que seja igual a si próprio e fiel à música que transmite. Exemplos incorrectos: 50 cent (este atrasado mental nem vale um cêntimo, quanto mais 50...) - o que é que me interessa que a música esteja em marca-passo o tempo todo (sim...não existem muito mais notas musicais) e que aparecam no clip resmas de gajas a exibir a sua exuberante anatomia (made on Silicon Valley) e que surjam os bens materiais do rapaz no clip...? Qual é a mensagem? O que é que isso tem que ver com a música? No entanto, o pessoal gosta e respeito-os por isso. Mas, para mim, não considero música. Penso mesmo que este é o tipo musical que não pode ser considerado música devido à ausência de construção musical (a não ser o marca-passo).
    Em relação aos restantes estilo, é óbvio que se cingem numa mensagem que se traduzem num conjunto de notas. O extremo, puro e duro, da música é a música clássica. Respeito todos os grupos musicais que sejam iguais a eles próprios, que usem a música como uma extensão da alma e não como algo pré-fabricado para distribuirem ao mundo...os U2 tiveram o seu momento de glória em transmitir uma mensagem, nos tempos (ainda não muito longínquos) do IRA e dos propósitos da luta, mas agora, nada disso faz sentido, nada disso faz com que eles tenham a projecção exurbitante que o povo faz com que eles tenham.
    Enfim, entre o comercial e o que é mais "underground", tudo será música aos olhos de quem a vê. Para mim, só será música aos ouvidos de quem a ouve.

    Mais uma vez parabéns pelo texto! :)

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  4. cyber;) obrigado pelo teu comment. concordo plenamente com o que disseste! parabéns pela forma acertada como sucintamente referiste algo que dificilmente explicaria em meia dúzia de linhas.... já agora... tens de me dar o link para o artigo:)

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