13 de dezembro de 2005

Carta a uma jovem burguesa - parte III

Por fim, a última parte da carta. Espero que leiam com a atenção que ela merece, senão não vale a pena. Não que seja muito trabalhosa... simplesmente só dessa forma é que conseguirão beber todo o sumo que ela vos pode oferecer.


Finalmente o amor. O seu caso não é isolado. É o caso de muitas jovens que não aceitam a solução de um casamento de conveniência e que não têm a coragem e a serenidade bastantes para amarem fora do quadro das convenções burguesas. Experiências incompletas dão uma força desconhecida aos apetites sexuais. A idealização substitui as realizações e a rapariga, já mulher feita para o amor, tortura-se numa expectativa febril, na antecipação do momento que tarda. Aí você pode encontrar a razão de alguns dos seus estados de irritabilidade, a razão de muitas dessas «fugas do mundo» que lhe são tão frequentes, a razão de algumas dessas desalentadas lágrimas que você gostaria de poder reprimir. Para esse sofrimento não é necessária a existência desta ou daquela concepção. Sua irmã, tão serena, tão conformada, tão moral, tão feliz nas suas greta-garbices com flirts mais ou menos de ocasião, vive a mesma sofreguidão insatisfeita. Apenas ela aceitou esta realidade, ao passo que você, não aceitando a solução de sua irmã, aceita, vive no frenesim de uma entrega que não chega porque, embora contrariada, você a evita, sente à sua roda a falta de um carinho que lhe é indispensável e sofre por se ver só, quando se sabe mulher, com apetites, paixões, desejos de ternura e afecto. Eu sei, porque você mesma ma disse, quanto é incompleto para si esse amor que hoje sente por um homem que diz amá-la. Você vive num refreamento doloroso, numa procura de emoções que a vão desiludindo. Ama sem confiança e sem coragem. Chega à situação quase absurda de duvidar da afeição que tem. Que quer então que lhe diga? É muito difícil e perigoso dar conselhos neste campo. Só posso dizer-lhe que, nas suas condições, uma rapariga deve meditar serenamente nos prós e nos contras, não se entusiasmar com possibilidades-fantasmas, ter em conta as duras condições de vida (esforçar-se por conhecer com toda a calma o carácter do homem de quem gosta) e, depois, não temer, não recear a entrega, desde que ela seja com um homem que a ama e por quem é amada, desde que não seja um acto-obrigação, mas um sentimento profundo, instintivo e imperioso que a conduz. Diz bem, boa amiga, a virgindade de uma mulher é um peso enfastiante.

Como vê, apesar da sua franqueza e dos elementos que me deu para eu conhecer com exactidão o seu temperamento e o seu carácter, eu não posso fazer mais do que apontar um caminho geral sujeito a naturais inadaptabilidades. Se fizesse mais do que isso emparelharia incomodamente ao lado de bruxos e pitonisas. Não veja, pois, no que atrás digo um conselho ou um incitamento. No amor só interessados conhecem a intensidade da atracção, a infelicidade que resulta de não se possuir a felicidade que esperam tirar da posse. Só aos interessados cabe ver, meditar e decidir.

Eis, boa amiga, uma longa carta em resposta à sua não menos longa. Espero que conseguirá vencer todas as dúvidas que a assaltam, que saberá pensar com serenidade na sua vida e no rumo futuro, que procurará agir como uma pessoa que pensa como pensa e não como qualquer burguesinha neurasténica e impulsiva. Espero que conseguirá vencer as suas infantilidades e compreender a precipitação das suas ultra-rápidas resoluções.
Amigo de sempre, ac.

2 comentários:

  1. Aventuro-me a dizer que o autor é brasileiro...
    A carta está brutal, descascando até à eu«xaustão as meninas burguesas, e se nós sabemos que elas andam por aí... Acho que algumas leitoras se revêm pelo menos numa ou noutra passagem, quiçá na do amor!

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  2. A quem quiser saber:
    este é o rascunho de uma carta que o autor escreveu a uma amiga. Riscou o nome dela, para não ser reconhecida, até porque foi escrita na prisão. Não se sabe se chegou a ser enviada.

    Na revista de onde a transcrevi, diz-se: "Quanto à missiva (...), expõe não só muitos dos que eram os seus conceitos morais como também uma forma de pensar que incluía sempre um planeamento táctico e estratégico perante todas as situações, fossem elas políticas ou meramente do quotidiano, relevantes ou insignificantes."

    O autor é o Álvaro Cunhal; na minha opinião revela também uma faceta de grande sensibilidade, faceta essa insuspeita para quase todas as pessoas que se habituaram a vê-lo como uma pessoa granítica e de convicções inabaláveis, quer se concordasse ou não com ele do ponto de vista ideológico.

    Um bem haja! E bom natal...

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