4 de novembro de 2005

Amigos de contingência


Era uma vez uma tarde de feriado, em que se imaginaria uma certa acalmia dos serviços de urgência do hospital. No entanto, parecia que toda a gente tinha decidido magoar-se na banheira ou apanhar gripes; assim, a sala de espera estava atafulhada de gente que esperava impacientemente ser vista pelos médicos. Outros chamavam pela mãe, com braços partidos, pés torcidos, articulações deslocadas... e os balcões não tinham mãos a medir.
Mas esta azáfama não incomodava minimamente o neurocirurgião, que, sentado na salinha de convívio dos médicos, fumava o seu davidoff e repousava os seus olhos desinteressadamente na televisão, onde davam imagens da 1ª companhia. Quando já estava quase a dormir, entra uma enfermeira e chama-o para o bloco operatório. Alguém tinha dado entrada numa ambulância do ENEM, com um traumatismo craniano que lhe tinha provocado um hematoma epidural; tinha sido encontrado caído na via pública, inconsciente, sem documentos.
Espreguiça-se indolentemente, sacode a bata das cinzas e apanha o elevador para o piso -2. Veste depois os preparos da cirurgia e entra na sala de operações. Deitado na mesa, já entubado e envolto em panos, papéis, plásticos, encontra-se um enorme homem negro, com metade da cabeça rapada, algaliado, ligado aos monitores. Inconsciente, anestesiado, até parecia que estava só a dormir, não fosse o enorme inchaço no lado da cabeça que estava rapado. Não tinha marcas exteriores de contusão com objectos usuais, como garrafas, tacos de basebol ou pedras. Devia ter batido com a cabeça no chão.
Observando as imagens da tomografia, podia concluir que o indivíduo, que tinha cara de caboverdiano, tinha já um dos lobos cerebrais quase completamente comprimido pelo hematoma. Se não fosse imediatamente operado ia morrer pela certa.

- Este preto teve sorte que alguém o viu e o trouxe para cá! Metem-se nos copos e depois escorregam e batem com a cabeça!
- Provavelmente nem deu conta. Só deve ter perdido os sentidos quando o hematoma lhe começou a comprimir os miolos...
- Vamos lá então fazer-lhe saltar a tampa, senão morre.

Depois de lhe removerem o couro cabeludo, conseguiram a muito custo abrir-lhe o crânio e retirar uma porção do osso do tamanho da palma de uma mão. Mal retiraram a tampinha, sairam grandes quantidades de sangue. Era uma hemorragia massiva.

- Metam-lhe mais soro e tipem-lhe o sangue! Ele vai precisar de bastante!

Talvez o indivíduo bebesse muito, a avaliar por outros sinais que para aí apontavam. Para além disso, estava a ser muito complicado parar a hemorragia, porque ele evidenciava dificuldades na coagulação.
- Tragam também concentrado de plaquetas que isto não pára de sangrar nem por nada!

Três horas e meia depois, com o negro já a caminho dos cuidados intensivos, estava o neurocirurgião nos vestiários do bloco operatório a vestir-se. Entretanto, conversava com colegas sobre o doente operado.

- Vai ter sequelas de certeza. O preto tinha o cérebro completamente metido para dentro! Parecia que tinha tido um côco encostado ao cérebro! E o que me irrita mais é que se for preciso daqui a um mês já anda aí todo contente nos copos outra vez. Bem, pelo menos talvez não morra disto.

Estalou os dedos, espreguiçou-se outra vez, e vai para a sala de médicos ver mais um bocado da 1ª companhia.

*

Sete meses depois, regressava o médico a casa, depois de ter estado a jantar num restaurante italiano da margem sul com uma amiga enfermeira. Vinha calmamente a pensar na vida e na desculpa que ia arranjar desta vez para chegar a casa tão tarde, sem ter avisado a esposa, já meio alterado por causa do vinho que tinha bebido, e também por causa do charro que tinha fumado no carro com a amiga, pouco antes de se ter despedido calorosamente dela.
Perto da praça de espanha, ao passar por baixo do aqueduto das águas livres, manda a beata do davidoff acabado de fumar pela janela, mas com o vento ela volta a entrar e cai-lhe por entre as pernas. Desesperado pela dor da queimadura, tenta encontrar e apagar a beata, mas ela esconde-se bem. E na curva apertada, espeta o seu potente automóvel contra os separadores de cimento.
Como não levava cinto, voa através do pára-brisas e vai aterrar do outro lado da via, a 10 metros de distância.
Às 4 da manhã, são poucos os carros que por ali passam. Mas, poucos minutos depois, vinha um fiat punto amarelo, rebaixado, de vidros fumados. O condutor abre o vidro, e imediatamente escapulem-se as batidas de um hip hop manhoso de lá de dentro. Ao ver um corpo ferido no chão, e um carro virado do avesso do outro lado da rua, nem pensa em mais nada e vai socorrer a pessoa que ali estava.

- Você está bem?
- Hmmm! Não sinto nada... e o que sinto dói-me...! Foda-se! Tenho os ossos todos partidos... leve-me! Arghh... foda-se... nem consigo ver.

Então o outro homem levou-o ao hospital, onde toda a gente o conhecia. Rapidamente foi para o bloco operatório, onde o operaram a múltiplas fracturas expostas e dois traumatismos cranianos.
Esteve internado um mês, e faria fisioterapia durante um ano.
Entretanto, a sua visão da vida mudou muito. Teve mais tempo para descansar do trabalho, das noitadas no hospital, das longas intervenções cirúrgicas. Aproximou-se mais da família, lembrou-se do que o tinha levado a casar-se com a esposa, conheceu-a de novo.
Resolveu ocupar esse tempo a visitar amigos que não via há muito tempo; a ler romances e outros livros que não os de medicina; a ir ao cinema, a restaurantes diferentes, a ter novas experiências.

Numa dessas noites de devaneio, uns recentes amigos de copos levaram-no a um sítio clandestino, perto do bairro alto, que funcionava num prédio devoluto. O médico perguntou-se para onde o levavam, pois as escadas eram tão escuras que nem sabia onde punha os pés. De resto, como já estava para lá de Bagdad, podia estar em Espanha que para ele era igual.

- Aqui come-se uma cachupa óptima! Vais ver... com esses copos todos já precisas de qualquer coisa no estômago para fazer de mata-borrão!
- Pois, já comia qualquer coisa, já. Mas também bebia uma imperial! De certeza que é o sítio certo? Não parece nada...
- 'Tá descansado que é mesmo aqui. Tenho é que tocar à porta, a ver se nos ouvem...

Depois da porta aberta, saem os donos do "estabelecimento", uns caboverdianos bonacheirões, que perguntam se eles querem frango ou cachupa, enquanto os levam a uma sala atulhada de mesas ocupadas com gente a jogar às cartas, a rir, a tirar fotografias, a beber... e a comer cachupa.
Meia hora depois, enquanto estavam a comer, os amigos do médico levantam-se e vão à casa de banho. Então, ele observa com a sua visão turva a sala cheia de fumo, e saca de um davidoff.
Prende então o seu olhar numa pessoa que parece estar a olhar para ele fixamente. O enorme preto levanta-se e senta-se à sua frente, já bastante com os copos, e ficam a olhar um para o outro durante longos segundos. Então, falam ao mesmo tempo:

- Recuperou da cabeça?
- Então esses ossos estão no sítio, chefe? Grande espeta!

Ambos se calam e começam depois a rir, bêbados e desnorteados, enquanto dizem, Como é que você sabe? e se riem ainda mais, sem saber porquê.

5 comentários:

  1. Será este conto um feedforward da tua vida caro Dr. Phrouphe? Gostei bastante e também ando a pensar num conto. Acho uma forma muito agradável de ler!

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  2. este formato de conto é-me familiar... e acho que também já o tinha lido noutro lado... hm... eu iludida com exclusividades...

    gostei mesmo muito.
    às voltas com vida, a ver se lhas trocas...

    tb já ouvi falar desse sítio clandestino de cachupa, perto do bairro.qq dia vamos lá, se servirem algma coisa sem carne. ;)

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  3. Parabéns pelo conto, tá genial!
    Tenho de admitir que pensei várias vezes que o preto era quem ia a guiar o carro amarelo, mas quando dei por mim estava surpreso a ver que era ele! Alem disso.. tá muito cativante.

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  4. Eu sofro da grave arrogância de julgar que o BLOG onde escrevo é o melhor do mundo e arredores, mas devo confessar que este texto está "quase tão bom" como as coisas do meu BLOG, o que tendo em conta a minha visão distorcida da realidade eh dizer BASTANTE! Gostei muito, mesmo...

    (UmaDasPartes)

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  5. Desde já agradeço os comentários. Sem dúvida são um grande incentivo para que continue a fazer aquilo que se está a tornar, mais do que um prazer imenso, numa necessidade.
    Pedro: será um feedforward da minha vida? Não sei. Naturalmente que me revejo em alguns pormenores, e me inspiro em coisas que vejo no dia a dia e em algumas pessoas que me rodeiam. Não é impossível que dê numa pessoa parecida com a retratada, porque o estilo de vida é uma miscelânea entre o estereotipo da vida de médico e a minha vida conturbada actual, cheia de extremos, excessos, curvas e contracurvas. Mas nada neste conto é autobiográfico.
    Incentivo-te a escrever o tal conto. Estou certo de que não sou só eu a ter expectativas elevadas sobre ele!
    É uma forma agradável de ler, visto que supostamente é mais curto, tem que ter uma ideia base que motive o conto e lhe dê alma (por assim dizer), e é mais fácil e leve de ler do que os textos que mais habitualmente produzo. Mas é mais fácil de ler do que de escrever, porque as ideias nem sempre abundam. Um conto não pode ser demasiado abstracto... e isso limita-lhe a facilidade de escrita, na medida em que o autor não pode exprimir-se em discurso próprio tão livremente.
    Infelizmente, não tenho lido quase nada, e se tenho aprendido imenso a escrever, a verdade é que sinto que me faltam bases para poder evoluir mais.
    Quando decidi ir para o meu curso, foi com a perspectiva de poder continuar a desenvolver o gosto pela escrita, e escrever.
    "Podes ser escritor e ser outra coisa qualquer". Ora aí está uma ideia um bocado discutível, na medida em que ser-se escritor pode consumir tanto tempo e energia como outra dita "profissão". Mas o gosto continua cá... e a necessidade de o fazer adensa-se.

    Cara afilhada: fico feliz por teres gostado. Sei bem o quão crítica és, e isso ainda me dá mais alento.
    "Às voltas com a vida, a ver se lhas trocas" - bem, escrever é (ou pode ser) inventar e reinventar. É uma espécie de segunda oportunidade de viver filmes que na verdade só existem em ideias em nós construídas. É uma espécie de "free will"... pelo menos no que eu escrevo, mando eu.

    jv-: eu admito que dei voltas à cabeça para tornar o conto mais surpreendente. Mas depois, resignado, achei que não era possível. No entanto, depois de o ter dado a ler a um amigo meu, antes de o publicar, e depois do que ele me disse, cheguei à conclusão de que a virtude que ele poderia apresentar não era a surpresa causada no leitor, em si, mas sim a vontade que o seu desenrolar causaria de que de facto fosse mesmo o tal preto, e a curiosidade de como é que essa falsa surpresa seria apresentada. E no fim, percebe-se... "ah, cá está! estava mesmo a ver...". É uma forma de manter o leitor interessado, mantê-lo à espera de confirmar as expectativas. Surpreendente seria que fosse outra pessoa qualquer, não é? O que tem piada é que só depois de o ler e de ouvir uma opinião de outra pessoa é que me apercebi destas coisas...

    Pelaminhaparte: tenho uma leve suspeita de quem possas ser, mas não tenho certeza. Muito obrigado pelo teu comentário e espero ser capaz de escrever mais coisas que te agradem. Também eu já li alguma coisa do teu blog, motivado pela curiosidade com que fiquei depois de ver o teu comentário, e fiquei agradado. Mas, em altura e lugar próprios darei a conhecer melhor a minha opinião!

    Cumprimentos a todos vós, e cá vos espero brevemente.

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