11 de dezembro de 2005

Carta a uma jovem burguesa - parte II

Aqui vos apresento a segunda parte da carta. Para os que chegam com o comboio em andamento, remeto-vos para o post anterior.


Agora o problema familiar.

Você sente que a família lhe impõe uma vida que não é a desejada, que refreia as liberdades que você gostaria de ter, que intervém quase policialmente no que vai no seu espírito. Os seus pais, sua tia e até sua irmã bombardeiam-na com críticas e conselhos parvos e apresentam-lhe uma chocante perspectiva de vida. Você sente-se só, atacada e incompreendida. Sente que não está de posse das necessárias armas defensivas e que a sua total defesa implicaria um contra-ataque que levaria forçosamente ao rompimento. Daí esse seu enervamento ante os mais pequenos incidentes familiares, as suas respostas mal-humoradas, a sua irritação constante ante a vida da casa. Daí também o ódio (não tenhamos medo à palavra) que você em certos momentos de exaltação chega a sentir por pessoas que ama (acredite: que ama, apesar de tudo). Essa é a tragédia de todas as raparigas da sua classe que não se sentem ligadas a ela por egoísmo ou por gosto. São de facto incompreendidas, na medida em que avisados parentes ou conhecidos têm por «estarolices e leviandades que hão de passar com os anos» as reacções contra uma sociedade de injustiças, hipocrisias, de convencionalismo. Você sabe bem como eu sinto essa tragédia e a simpatia que me inspiram essas jovens de boa vontade e de generosos sentimentos.

Mas repare, boa amiga. A libertação da família, a independência em casa, a posição de igual para igual em relação aos mais próximos parentes só podem dar-se quando a rapariga tem a sua vida própria, quando a rapariga não é economicamente dependente da família. Então, sim, já pode reagir com todo o vigor contra as cadeias familiares. Mas, enquanto isso não sucede, os seus pais têm-na segura e julgam-se com direito de determinar o seu futuro. A ideia da propriedade privada sobre os filhos é uma ideia comum a todas as famílias burguesas.

Agora reflicta.
Que tem feito você para construir uma vida independente, para assegurar o seu sustento por suas próprias mãos? Tem você aproveitado todas as facilidades, que a sua própria família lhe deu, para conseguir uma profissão? Como estranhar que os seus pais sonhem com o seu casamento como um meio de a arrumarem, assegurando-lhe um futuro de bem-estar material?

Eis porque lhe digo, boa amiga, que você deve trabalhar no sentido de conseguir criar condições para viver à sua custa. Sem isso (e sem a hipótese, que em si, boa amiga, lhe parece absurda, de um casamento de conveniência), você continuará necessariamente a ter a mesma vida familiar conflituosa e desagradável, continuará as suas reacções, magníficas, sim, mas sem issue.
Finalmente o amor.
(continua).

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