28 de maio de 2009

Moving ...


Acho que foi o sacaninha do semitendinoso que me deixou ficar mal ...


A capacidade de produzir movimento é uma das primeiras tentativas de caracterizar a Vida que fazemos na escola primária ou no ciclo. Mas há logo alguma miudinha irritante que diz em frente à turma toda que as plantas não andam e são seres vivos e que a nossa ideia foi muito estúpida e que por isso somos muito estúpidos (tudo isto porque pusemos uma cruz no quadradinho do “não” no papelinho que ela nos entregou no recreio). Portanto não dá para usar esta qualidade de forma universal quando definimos a Vida.

Nos últimos tempos tenho pensado nas coisas simples. Mas não falo naquelas coisas simples que nos dão prazer e que esquecemos - como comer um epá numa esplanada, ou receber um abraço de alguém importante - e que toda a gente diz que valoriza muito e depois estão-se a borrifar. Estou a falar nas coisas básicas, que todos os dias damos como certas. Nós, pessoas saudáveis e pertencentes à tecno-civilização “evoluída”.
Por exemplo, ninguém valoriza a capacidade de ir à casa de banho esvaziar a bexiga satisfatoriamente. E já pensaram como é bom podermos ir ao WC e borrar-nos todos quando a natureza chama? Ou poder comer uns belos secretos de porco preto porque temos a capacidade de mastigar? Ou mesmo de salivar?
Tenho reflectido neste tipo de coisas cada vez mais, à medida que vou conhecendo mais pessoas doentes ou incapacitadas. Claro está que o Homem é, por definição, um ser insatisfeito, e que estando cumpridos os degraus básicos da pirâmide de Meslow temos logo vontade de trepar por aí acima até chegar ao topo. Tenho mesmo muitas dúvidas se alguém lá conseguiu chegar verdadeiramente, mas o certo é que a tendência é a de tentar, e até acho bem que assim seja. Mas é mesmo fácil esquecer a importância dos degraus que ficaram para trás na caminhada.

Na minha colaboração no serviço de saúde pública, durante este mês de Maio que agora finda, tive oportunidade de acompanhar vários profissionais de saúde no desempenho das suas actividades. Ontem calhou acompanhar um terapeuta ocupacional durante o seu dia de trabalho, e eu não o conhecia inicialmente. Logo de manhã, quando entrei no automóvel dele, perguntou-me se eu sabia o que é que íamos fazer, e eu tive de lhe responder, um bocado envergonhado, que não, que só poderia dar um palpite.
Então explicou-me que era o único terapeuta ocupacional do concelho, para não sei quantos milhares de pessoas de uma população fortemente envelhecida, e que parte das suas tarefas era visitar no domicílio pessoas que, de alguma forma, tinham dificuldades ou deficiências nas actividades da vida diária.
A primeira pessoa que visitámos foi uma senhora idosa, acamada há vários anos, que tinha sofrido vários AVC’s. O movimento que era capaz de produzir limitava-se à cabeça e pescoço, e não falava. Mas olhando para ela, via-se que ouvia e percebia o que lhe era dito, e as expressões faciais, embora vagas, eram a forma que tinha de comunicar. Tinha a televisão ligada no quarto, em frente à cama; e eu tenho um defeito, que é ficar algo hipnotizado pelos raios catódicos dos televisores, de maneira que fiquei por momentos desligado da realidade daquele quarto. Primeiro, deu um anúncio sobre a final da Liga dos Campeões (que ia ser ao fim do dia) em que aparecia o CR7 e o Messi a partir os meninos todos, a marcarem golos e a jogarem-se para o relvado a festejar, com os colegas todos a caírem-lhes em cima, numa explosão de testosterona. Logo a seguir deu uma notícia de um DVD qualquer lançado pelos Iron Maiden em que aparecia uma multidão enorme de milhares e milhares de cabeças anónimas a saltar, num concerto da banda num estádio. Tudo a mexer, tudo em movimento. Tornei a olhar para a cama e pensei que aquela senhora nem sequer podia mudar de canal se não lhe apetecesse ver As Tardes da Júlia (vocês não mudariam se pudessem?). Neste caso, era importante saber movimentar e posicionar a senhora, de forma a que não se desenvolvessem escaras, por exemplo.
Depois visitámos outra senhora, em cadeira de rodas, não tão idosa como a primeira, mas certamente mais pesada. Não cheguei a perceber bem qual ou quais as patologias de que sofria. A verdade é que a senhora possuía movimento, mas era preciso insistir muito com ela – por exemplo, posicionar a chávena do café com leite mais longe na mesa, para ela ter que se esticar para a alcançar. Era quase aflitivo vê-la a tentar chegar à chávena. Depois, lá conseguiu… a muito custo. Esta senhora comunicava verbalmente de forma funcional, mas tinha bloqueios a vários níveis, desde motores a psicológicos, o que tornava mais complicada a tarefa de reabilitação.
Aprendi depois a levantá-la (era bastante mais pesada do que eu) de uma cadeira de rodas, sem lixar as minhas cruzes. É estranho que a maior parte dos profissionais de saúde tenham uma formação muito reduzida a este nível, o que lhes causa invariavelmente lesões e complicações que podem ser graves. É que às vezes basta um truquezinho ou outro para levar a cabo a mesma tarefa de forma segura para nós e para a pessoa que precisa de ajuda.
Fui para casa a pensar nestes dois casos, entre outros que também presenciei. Uma das coisas de que me lembrei é que – e agora lembrando-me do que já escrevi aqui recentemente sobre os lares da terceira idade e sobre a forma como os idosos são tratados – antigamente talvez as pessoas estivessem mais preparadas para lidar com determinadas necessidades e incapacidades de familiares em casa do que estão agora. Talvez porque antes se passasse mais tempo em casa. Talvez porque antes as pessoas não viviam tanto. Bom, a verdade é que agora qualquer um de nós devia ter alguma preparação para coisas simples (como o exemplo de ajudar alguém a levantar-se, ou a mudar correctamente alguém de posição numa cama) de que nunca nos lembrámos antes de termos necessidade de as fazer. É que cada vez mais cada um de nós terá de o fazer no futuro. Pelo menos, eu pensei nisso, e na verdade até já passei por isso em casa.
Outra coisa de que me lembrei foi que, se não podemos distinguir a capacidade de locomoção como característica fundamental da Vida, talvez possamos de certa forma atribuí-la como habilidade fundamental do ser humano livre e independente. Quem não se pode mover hoje em dia, quase tanto como quem não pode comunicar, é frequentemente esquecido. Viajar, ir à noite beber um copo com os amigos, jogar futebol, trabalhar, cozinhar, tomar banho, etc etc etc… tudo isso se pode tornar muito complicado e mesmo impossível.

Estive a pesquisar várias pirâmides de Maslow na internet, e nenhuma delas referia directamente a capacidade de locomoção como necessidade básica, embora ela esteja implícita e
TOMADA COMO CERTA quando nessas pirâmides se referiam várias outras necessidades fundamentais do primeiro e segundo degraus (fome, sede, sexo, protecção contra a dor, necessidade de segurança, etc…) e outras de níveis mais avançados.

Cá está a ligadura funcional toda ninja ... (vou andar de calções para mostrar a toda a gente...)

Como disse, ia a pensar em todas estas coisas quando ia para casa a conduzir, e é claro que acabei por me recordar que uma das minhas tarefas no serviço de saúde pública tem sido ajudar a avaliar graus de incapacidade (motora, entre outras) para atribuição de dísticos de estacionamento ou de subsídios para importação de veículos modificados, por exemplo, fazendo parte de Juntas Médicas.

Quando cheguei a casa, rapidamente me esqueci de tudo isso e nem era para escrever este texto, até porque era dia de ir jogar futebol, que é um dos pontos altos da minha semana. Mas no tal jogo, decorridos 5 minutos, sinto uma dor em facada numa coxa (o meu aquecimento tinha sido mandar uns remates à baliza, com toda a brutalidade que me fosse possível), caio no chão, e abandono o jogo. Fico lá quieto a ver os outros a jogar, a ver se a dor passava, já que nunca me tinha acontecido tal coisa. Passados 10 minutos, pensei que já estava bom, e ao tentar UM passo de corrida (fora do campo, naquela de experimentar) torno a cair, sem força na coxa. Não deu para continuar a jogar, dificilmente consegui subir as escadas para me ir embora, trazer o carro para casa foi uma aventura, mas o que mais me custou foi perceber que não conseguia fazer uma coisa tão básica como vestir uns boxers em pé. Quando se chega a este ponto, começamos a ver a vida a andar para trás.

Hoje já fui ao hospital e ainda não sei muito bem o que tenho, mas imagino. A minha amiga fisioterapeuta tratou de mim com uns ultrassons todos XP, tive que cortar os pêlos da coxa (já não é a minha primeira vez, reconheço…), e agora tenho-a toda ligada. Se me estás a ouvir, Mada, o meu muito obrigado, estou a dever-te um jantar!
Estou tristíssimo por não poder jogar futebol por umas semanas (é semanas, não é Mada?). Para além disso, uma coisa que eu digo sempre é que não tenho medo de me tentarem bater ou assaltar porque eu tenho a mania que corro mais depressa do que quase toda a gente. Espero que não tentem agora, porque uma criança de 4 anos num triciclo apanhava-me logo. Ou sem ele.
Deixo-vos agora mais uma música muito gira de uma grande banda, daquelas alegres, que é o que é preciso.

Moving, keep on moving
Where I feel I'm home again
And when it's over
I'll see you again...

Mexam-se! Mexam-se enquanto puderem!

3 comentários:

  1. Talvez possa parecer uma dedução um tanto ou quanto faraónica mas Maslow não inclui a locomoção na "sua" piramide talvez por a locomoção ser um meio aplicavel a todos os outros objectivos e nao um fim em si.
    Tal como o musculo que indicas te, talvez seja uma semi-lesão e nada verdadeiramente impeditivo para que as tarefas da piramide de Maslow se continuem a realizar

    ResponderEliminar
  2. Caro anónimo: para mim, lesão é tudo o que me impede de exercer uma função com eficácia máxima. Mesmo que não apareça nada na ecografia, a verdade é que eu não consigo correr, e portanto... não é uma semi-lesão. Talvez uma lesão ligeira, mas não é uma meia lesão.
    É claro que posso fazer quase tudo o resto, mas eu não falei só de mim, nem especialmente de mim no texto... falei de pessoas que têm limitações cinquenta mil vezes piores do que as minhas, claro.

    Tens razão sobre o que disseste, talvez o movimento não seja um fim em si. Mas é uma função básica, e de tão básica que é, é tomada como certa quase sempre...
    Não quero pôr em causa a organização da pirâmide, aliás, já não é a primeira vez que a refiro no blog, porque acho que é um conceito interessantíssimo.

    Abraço :)

    ResponderEliminar