12 de janeiro de 2009

Idiossincrasia


Já não tenho o porquê, já não me lembro do como, já não interessa o quando nem em quanto tempo.
Não sei dizer se os carros estacionados na rua espremida entre o Hospital de Santa Maria e o estádio universitário, brancos de geada, estão tão frios como os meus dedos. Sai-me vapor pela boca, que parece a chaminé de uma locomotiva com a corda toda para chegar a horas ao destino.
Estou, como sempre, atrasado. A manhã está demasiado fria. A rua é demasiado inclinada.

Os arrumadores de carros agitam jornais de ontem, publicitando lugares que não são deles a quem já estiver cansado de procurar. Das suas bocas saem outros vapores. Por enquanto.

Há uma rua entre o edifício do hospital que me faz lembrar o ambiente do Blade Runner. Tem estado frio, nublado, e as pessoas andam incompreensivelmente de um lado para o outro, algumas vestidas com casacos por cima das batas, relativamente apressadas, e apesar de tudo parece-me que se movem em câmara lenta. Ou então no lugar delas aparecem logo outras, e como não estou suficientemente atento à face de cada uma elas parecem-me sempre as mesmas. De resto, se estivesse atento, veria as mesmas expressões tristes, ensimesmadas, com cara de caso, ou com cara de quem anda à procura de um caso para dar a cara. Pouco mudaria, concluo.

Outras pessoas ficam encostadas às paredes, com um pezinho no chão e outro a fazer de contraforte, enquanto expiram fumo que só tem uma saída: o céu. As outras direcções estão emparedadas até à altura opressiva de um 8º andar. Vê-se um rectângulo cinzento que faz de tecto, e onde só falta passar uma nave, devagar como um zepelim, com um ecrã gigante, a publicitar um refrigerante àgua-rázico qualquer, ou a dizer que o paraíso está nas colónias interplanetárias (tal como acontece no Blade Runner).
Se estivesse naquela rua um chinês a vender sopa de massa numa barraquinha, ele seria bem recebido e não destoaria nada; daria até um toquezinho étnico, cosmopolita, àquele lugar. Afinal, o bar mais popular do hospital é nessa mesma boa, e viaja na boca da vox pop local sob o nome de "Toxinas". Esclarecedor.
Só faltaria então chover num fim de tarde lusco fusco, ou numa noite escura a meio do dia, para compôr um cenário igual ao do filme.
Talvez, como eu, estas pessoas se tenham perguntado quando ali chegaram sobre qual o real motivo de ali estarem,
enquanto giravam ainda na orla de um remoínho que por ordem de um funil gigante as acabou depois por engarrafar,
implacavelmente, nas suas vidinhas com rótulo de rotina, de onde poucos saem vivos para contar. Quanto a mim, já ouço o gorgolejar do estreitamento, antes de cair na boca do Sarlacc.

Porque estou ali? Fiz algumas coisas certas por motivos errados, e algumas coisas erradas por motivos certos. Seja como for, agora não é importante. Tornei-me um homem. E agora, o que faço com ele?

Já não tenho o porquê, já não me lembro do como, já não interessa o quando nem em quanto tempo. Mas consegui.


O quê?

8 comentários:

  1. Ainda perguntas o quê?? Penso que o maior efeito é este mesmo.. o texto.. a noção de que existe mais para além daquela rotina.. daquele gueto.. tipo escritório de paredes amarelas, onde um gajo fuma e quando se entra tresanda a arquivo morto! Pelo menos tu sabes isso e vais evitá-lo!

    Marca mas é aí uma tenada que eu tb já estou com uma idios. à chefe, sub chefe, subsobchefe, chefinha ... da Ped do AS lololol

    Beijos grandes, idiossincráticos ;)

    Isa

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  2. Porque será que não poderia acrescentar mais nada à imagem que conseguiste deixar? Deixa lá... é só um aninho... Eu estive um ano e meio e sobrevivi (há que conhecer o pior para poder a proveitar o muito bom) ;)

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  3. "S", o utópico, "S" o filosofo e "S"... o atrasado! LOL Há coisas q nao mudam mesmo... e ainda bem! :) (O cabelo grande, agora que és um sr. Dr., é para manter?) Tens aqui um estaminé do melhor! Keep it up!
    Um grande abraço!

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  4. Só te tenho a dizer que essa ruinha que te referes é exelente. Pare que é um qualquer ambiente protegido, onde se abrigam alguns que miracolosamente sobreviveram a uma qualquer detonação nuclear. O ar lá fora ainda está rerefeito demais para ser respirado, mas ali, embora o aspecto "mecano" há abrigo, há mantimentos. Ali estamos seguros... Parece que ali podemos comprar e vender tudo: "troco dois chips por um pacote de pipocas". é bom ver que quando se sai dali há mesmo um mundo.

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  5. Dude..! Becoming a man!


    Chico

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  6. Acabei de sair de banco, mas não podia deixar de vos responder.

    Não é que aquilo seja muito mau. Eu é que não estou habituado a acordar cedo todos os dias, e a trabalhar, quando tudo o que eu faço está dependente de n factores que não controlo. Sim, becoming a man, é verdade... mas as coisas podiam ser bem mais simples se esses factores estivessem na minha mão. Num próximo post eu falarei melhor sobre isto.

    Aquela rua realmente tem um ambiente um bocado estranho. Sim, parece que houve uma guerra nuclear... e ali estão os únicos sobreviventes. Com mutações, e o caraças...

    Vou ter que me adaptar. Custa um bocado, como a toda a gente, talvez eu me queixe mais.
    Também só poucas pessoas é que percebem integralmente o sentido do que escrevi.

    Ainda hoje fiquei na cama mais um bocadinho do que devia, e pensei o que penso todos os dias de manhã: hoje não vou. Mas não posso... tenho que ir e não bufar.

    Hélio pá, tens uma cabeça!
    Já não tenho cabelo comprido. Agora sou um homem, como tal tive de cortar esse meu apêndice :\
    Talvez daqui a 10 anos eu funde uma colónia vegan nas montanhas, deixe crescer o cabelo novamente, e toque guitarra eléctrica com electricidade proveniente de um moínho de vento!

    Beijinhos e abraços, meus amigos...

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  7. Deixa mazé de fumar.
    P.s- nao gosto nada do Blade Runner.
    P.s2 - nem de AIChains
    (tu ainda sim?)

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  8. Cara Juanna:

    Sim, eu vou deixar de fumar.
    E gostei bastante do Blade Runner, por causa dos ambientes que conseguiu criar, não tanto exactamente pela história. E eu sou um fã do Harrison Ford, quando ainda não era um coirão de todo o tamanho...

    Fiquei surpreendido por falares nos Alice in Chains. Eu vou gostar sempre de os ouvir, já que foram a primeira banda que me levou a mudar para uma pessoa apreciadora de música. Até então, eu ouvia as músicas de telenovelas como o Sassaricando ... onde despontavam músicas como o (I've had) The time of my life - aquele tema do Dirty Dancing.

    É questão de gostos. Não quererias com certeza que eu fosse perfeito, right? ;)

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