22 de janeiro de 2009

Chegado a uma idade confortável de setenta anos, pede a reforma. Pede não, dá-se. Retirou-se do seu negócio construído a pulso, passando o testmunho à geração descendente. É esta a ideia. Já deve estar farto de negociatas, prazos de entregas e jogos de cinturas, contabilistas e facturas gordas. Todos os dias a almoçar fora de casa, e não poucas vezes a fazer serões: a encomenda tem de ser sempre entregue a tempo. Ao longo destes últimos vinte anos foi assim, criou lemas.

Marcou-se então uma festa de anos, em que os convidados igualaram as velas que se sopram no bolo. Família, amigos, clientes e outros. Juntou-se família desavinda e outra que não se conhecia, amigos de longa data e clientes com os quais todos os dias falamos. E outros. Não há dúvida que todos têm admiração por este homem, que chega ao setenta e decide mudar de vida. Foi capaz de impor uma meta, de decidir o seu caminho e aos setenta anos, presente que está de capacidades, decidiu por uma vida de disfrute e descanso. Podem pensar, é legítimo, que ao pagar o repasto temos quantos conseguimos contar à nossa mesa. Estes são os outros.

O almoço nunca tinha hora certa, e aquele não começou à hora. Porque mudar agora? Estavam todos os que lá deviam estar, incluindo os outros. Passo a parte do comeu-se e bebeu-se nesta frase. Os filhos brindam os setenta anos do pai com um filme, montado desde há duas noites antes, onde a vida do pai é desvendada, e passam setenta anos em doze minutos. Fica o gesto. Muitas lágrimas comovidas, e comovidas manifestações que obrigaram à colocação de comprimidos milagrosos debaixo da língua. Os empregados colocam no centro da sala uma mesa onde se vão pondo todas as prendas de aniversário, um monte! O aniversariante abre-as uma à uma, lendo carinhosas palavras em cada postal acompanhante de prenda. A cada uma que é aberta, o respectivo doador, vem até junto do septagenário, é giro não é? E dá te jeito... Sim, sim, dá, muito obrigado. Após a sexta garrafa de wisky decidiu-se não mais abrir prendas paralelipítidicas.

Acabou a festa, vamos andando que os senhores querem fechar, ainda têm de fazer os jantares. Fotografias na era digital, a praga que não explica o só mais uma, engrossando os discos de computadores, e poupando os papéis às árvores. Ficou bem, cortaste os pés, não apanhaste o nome do restaurante.

- Vai mesmo deixar de trabalhar?
- Porque te admiras?
Faço a cara de óbvio. Nem me passa pela cabeça dizer que passou uma vida a trabalhar, sempre com uma actividade e energia incriveis, está agora com um negócio pujante, habituado que está a estar sempre na rua e sempre no “laréu”, não o consigo a imaginar sem actividade!
-Agora vou adando uma maozita aqui e ali. Mas quero ver se passeio mais, e ter tempo para ler, aprender a andar de cavalo, essas coisas.
Aceno que sim. Continuo sem perceber. Não fez nenhum esforço para me convencer, mas também não me pareceu que fossem aqueles planos verdadeiros.

3 comentários:

  1. Comento o meu post sem pretenciosismos... Só para vos justificar a aparente ausência. E foi assim, está justificado!

    Grande abraço

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  2. Realmente gostava de saber a situação que te levou a escrever este texto.

    No caso da maior parte das pessoas, creio que não vão chegar aos 70 com essa clarividência, nem que seja pelo facto de, pelo menos mais frequentemente, chegarem a essa idade sem uma reforma minimamente dourada.
    Por outro lado, acho que grande parte da "nossa geração", se chegar a essa idade, se vai sentir um bocado frustrado e sem ter certezas da sua própria identidade.
    O mundo gira depressa demais, e cada um de nós é ao mesmo tempo muitas pessoas, sem se dar conta disso. E quase todas as pessoas chegarão a essa altura sem ter escolhido uma parte de si, para sê-lo em toda a plenitude.

    É complicado, não é? Pois é. Uma certeza tenho. Aos 70 não me vai apetecer aprender a andar a cavalo.

    Grande abraço. És um grande contador de histórias quando a isso te propões.

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  3. Curioso.. parece a historia do meu avo. Comecou a trabalhar aos 11 anos e ainda nao parou (tem 84). Tenho a certeza que nao sabe/quer/gosta de fazer mais na vida e que o dia da reforma sera o primeiro dia da sua morte.

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