24 de março de 2024

Ensinamentos aleatórios

   Esqueci-me dos comprimidos em Lisboa, e já me tinha esquecido da toma de anteontem.

     E estava a sentir uns choques eléctricos e umas vertigens ligeiras, o que não é bom de acontecer quando estamos a passear na Serra cheia de precipícios com uma criança pronta para correr desvairada.

     Então fiz aquilo que qualquer pessoa faria se pudesse. Passei uma receita para mim próprio e fui à farmácia aviá-la.

     Encontrei lá um senhor da farmácia que era um fixe.


      Senhor da farmácia - Sabe qual é o laboratório que costuma aviar?

    Acre - Olhe... não me lembro do nome. Sei que é uma caixinha assim laranja e branca.

     Senhor da farmácia - É que àz vezej é uma questão de númaros. Sabe o que são númaros?

     Acre - Sei, sei...

     Senhor da farmácia - É o que vai pagar.

     Acre - Pois... mas tem que ser. Já estava com choques e vertigens.

     Senhor da farmácia - E dorj de cabeça, tenhe?

     Acre - Isso nunca tive...

Foi lá procurar nas gavetas.

     Senhor da farmácia - É este?

     Acre - Esse mesmo!

(envia-me um olhar estranho)

     Acre - É muito mais caro?

     Senhor da farmácia - Não, é só o dobro. Este é dej, arranjava-lhe um a cinco! E tem lá a subjtáncia na mejma.

     Acre - Então vá, traga lá o de cinco. Sabe, é que eu sou de Lisboa mas esqueci-me deles. Também se não correr tão bem não há problema nenhum.

(olha-me para as unhas pintadas de preto quando vou pagar com o multibanco)

     Senhor da farmácia - E olhe, se se sente bem, não lhe passe pela cabeça deixar de tomar! Há médicuj que dizem que uma vej tomando é pa sempre! Tenho aqui uma senhora que me dij sempre: "olhe, eu sinto-me tão bem, para que é que vou deixar de tomar? De cada vez que lá vou ao doutor ele diz-me: oh dona não sei quantas, já lhe dei o esquema todo bonitinho para fazer o desmame, vamos lá deixar isso que já não precisa disso para nada. Mas eu ando bem disposta, sempre a rir-me, para que é que vou deixar de tomar?".

     Acre - Pois, eu sei que não é coisa que se deixe de tomar de um dia para o outro...

     Senhor da farmácia - Há aí unj que se sentem benhe, ahh e o caralho, já não preciso desta merda pa nada, deixam de tumare. E é vê-los dali a uma semana com umas dorj de cabeça do caralho!

     Olhe, eu cosjtumo dizer: deixem-se tar a tumar, 5 euros dá para doij mesej, é como quem bebe uma cerveja! Deixem-se andar assim que é milhor!

     Sabe, antej de tumar pensa-se no fosso vinte e quatro horaj por dia. Depoij fica tudo melhor passado um tempo, a pessoa sente-se benhe, socialmente benhe tambénhe, mas o fosso está lá! Só que só pensam nele de vej em quando, unj minutoj por dia. Maj deixam de tumar e depoij já é uma hora por dia, e depoij duaj, e depois trêj, e àj tantaj estão no fosso e ainda é maij difícil porque nãum admitem que tiveram uma recaída e nãum contam nada aoj amigoj e à família e é por isso que depoij há djegraçaj.

     Acre - Sim, também deve depender um bocado dos casos. Eu sinto-me bem mas sei que para descontinuar daqui a uns tempos logo se pensa nisso com cuidado.

     Senhor da farmácia - Aqui o que maij encontro é pessoaj a fazer estej comprimidoj por perda de entej queridoj. Ou o cão ou o gato. Não somus munto inteligentej, em vej de escolhermos tartarugaj ou papagaioj... olhe, e outra coija importante são os amigoj. Não há de ter muntos amigoj a sério mas são importantes! Veja lá isso benhe!

      Acre - Agora disse uma grande verdade. Eu tenho a sorte de ter alguns...

(mostro-lhe os dedos da mão com as unhas pintadas; ele olha e esbugalha os olhos outra vez).

     Senhor da farmácia - E uma mãum chega para uj contar e ainda lhe devem subrar dedos! Amigoj a sério! Olhe, estime-oj!

     Acre - Estimo sim, acredite! Sabe que a partir de determinada altura é mais difícil fazer amigos novos, é bom que já os tenha feito!

     Senhor da farmácia - Poij, conhecidoj é mais fácil. Amigoj a sério é outra conversa. Ainda pur cima nój podemoj ser amigoj dojoutroj maj ojoutroj não serem nossos amigoj. Você pode ser meu amigo mas eu não o contar noj meuj cinco!

     Acre - Obrigado pelas dicas! Bom resto de domingo!

    Saí da farmácia e cruzei-me com duas miúdas nos vintes e poucos (joaquinzinhos) que se dirigiam para lá. Vinha com embalagem e carteira e telemóvel e tudo nas mãos e repararam-me nas unhas e sorriram discretamente.

     Lembrei-me então que também ia tentar comprar acetona na farmácia. Mas não tive coragem de lá voltar e perguntar ao senhor da farmácia se a vendia.

5 comentários:

  1. Estava aqui a pensar porque descreves caixas de comprimidos tal e qual como os velhinhos descrevem os próprios; "é assim um comprimido redondo, branquinho, pequenino com uma risca no meio..."
    Quase me esquecia que és um deles, qualquer semelhança não é pura coincidência! :p

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Já sabia que alguém iria dizer algo assim. Mas descrever embalagens apesar de tudo é diferente de descrever comprimidos. E é a um técnico de farmácia/farmacêutico... A ver se ele não descobriu logo ?

      Eliminar
    2. Diferente mas semelhante :p
      Ao que parece o Sr da farmácia tem uma vasta experiência em vender esse medicamento... ou no caso em desaconselhar esse laboratório! Se calhar ganha à comissão com o outro que compraste :D Fizeste a boa ação do dia!

      Eliminar