29 de abril de 2009

Dor e sangue-frio


"Mostra-te forte quando te sentes fraco. Mostra-te fraco quando te sentes forte". - provérbio de pacote de áçúcar.
Um dia disse a uma pessoa que preferia arrancar um dente a sangue-frio do que perdê-la, e disse-o porque nessa altura me parecia saído do fundo do coração. É claro que é fácil dizer estas coisas quando ainda não se passou pelas situações, mas por vezes parece que o destino me prega partidas, como se me dissesse "Olha que não!".
De facto no outro dia arranquei um dente. Não se pode dizer que foi a sangue frio: em boa verdade, foi com carradas de anestesia. Mas doeu até à quinta casa. Foi a sensação do inferno em 15 a 20 minutos, e garanto que aquilo a que dei menos importância na altura foi ao facto de o dentista me dizer que não podia estar a doer daquela maneira, que não acreditava.

É interessante verificar como as pessoas se modificam perante um elemento tão básico e instintivo como a dor. Tornamo-nos animais, com comportamentos e reacções fisiológicas estereotipados. Já tinha constatado tal coisa muitas vezes nos bancos de urgência, observando as alterações de postura das pessoas em sofrimento.
Mas não chega.
É uma forte dose de realidade passarmos nós mesmos pela situação. E eu até já tinha passado três vezes por isso quando tive cólicas renais e fui para o hospital. Numa dessas vezes dei por mim a andar de um lado para o outro em passo muito apressado enquanto gemia baixinho, numa sala de 10x10 metros - o balcão de homens - com mais 6 doentes em macas, uma secretária com dois médicos, duas ou três enfermeiras a cirandar como abelhinhas, e mais 3 pessoas sentadas em cadeiras, a soro. Em qualquer parte do mundo - e até mesmo ali, já que toda a gente estava vígil e consciente - pensariam ao olharem para mim, que estava completamente desorientado e enlouquecido. Quando dói a sério, uma pessoa deixa de ser ela mesma e passa mesmo a ser um animal. Tudo o que queremos é que nos desliguem da ficha.

Voltando ao dentista, gostaria de vos contar que aguentei estoicamente os 15 a 20 minutos de inferno na terra. Gostaria de dizer que gritei FREEEEDOOOOOOMM! enquanto enfiavam um arnês de tortura pela minha bocarra adentro. Mas não. O que gritei, e várias vezes, foi CARALHOOOOO!!!!!!... e só não gritei FODASSEEEE porque não se consegue dizer os éfes de boca aberta. Quer dizer... mesmo assim tentei, só que só me saía algo como HÂÂÂGÂSSSSS! E sim, agarrei com toda a força no braço do dentista e ia partindo os braços da cadeira. Saí de lá desorientado, fraco, de lágrimas nos olhos, e enquanto ia na rua só queria que parasse um carro grande preto com uns tipos vestidos também de preto que me levassem para um terreno baldio ao pé do aeroporto e esperassem que um avião nos sobrevoasse de perto para me abater misericordiosamente.
Espero que nesta altura já entendam que me doeu um pouco.
Talvez a única coisa que nos separe dos animais seja a nossa capacidade de submissão a situações que doem por sabermos racionalmente que depois vamos ficar melhor - seja lá o que isso for.

*

Com a dor psicológica pode ser diferente, embora talvez não inteiramente. Também alguns animais sentem saudades ou falta do dono. Também é verdade que às vezes nos portamos como autênticos animaizinhos desorientados, deprimidos e autocomiserantes por causa desse tipo de dores.
Acho que nestas circunstâncias, muitas vezes é mais complicado sujeitarmo-nos a decisões que nos magoam imenso mesmo que acreditemos racionalmente que ficaremos melhor no futuro.
Será mais fácil ser estóico nestas circunstâncias? Aguentar e ser homenzinho?

Muitas vezes é mais útil cerrar os dentes - os poucos que me restam - esboçar um sorriso nos lábios, mesmo que triste, e aguentar enquanto me magoam. Uma coisa que aprendi foi que, se nos deixamos cair no chão, frequentemente ainda aproveitam para nos bater mais, ao contrário do que acontece por exemplo no boxe, em que tudo termina quando um dos tipos vai ao tapete. Quanto mais "ais" dissermos, mais percebem o efeito que têm em nós, o que conduz a um ciclo. Por outro lado, se optar por ripostar, também isso conduz a uma escalada de agressões mútuas cada vez piores, e em vez de um animal, passamos a ser dois na mesma jaula, e com cada vez mais vontade de morder e não ser mordidos.

Tentemos nestas ocasiões a impassibilidade, mesmo que por dentro estejamos completamente destruídos ou cheios de medo. É como naquela história do rapazinho que encontra um urso na floresta e se deixa cair no chão, sustendo a respiração, e o urso desiste de o atacar. Mas aqui, embora ele se deite no chão, finge-se de morto, pois se um simples "ai" lhe saísse da boca estaria irremediavelmente perdido.

Arrancar um dente a sangue-frio pode ser tão difícil como manter o sangue-frio e ser impassível... mas às vezes pode ser o único caminho saudável.
Não tem mal nenhum gemer com uma dor de dentes (ou de não-dentes!), mas verter lágrimas diante de alguém que nos magoa pode ser entregar o ouro ao bandido.
Apeteceu-me partilhar esta reflexão convosco...

5 comentários:

  1. E que excelente reflexão... eu não diria melhor... ;P

    Beijinhos

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  2. Já ouvi o "não acredito que agora esteja a doer". Ai não?? Lets change places!

    Abrs

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  3. Já andas na saga dos dentes do siso? shame : D LOL

    abraço

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  4. reacções fisiológicas estereotipadas....

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  5. Não é a saga dos dentes do siso... infelizmente foi mesmo um molar. Mas é uma longa história, que, aliás, ainda não acabou. Basicamente, vou andar de roda do dentista por mais ... sei lá ... dois anos ?

    Anónimo... não compreendi bem o teu comentário. É verdade. As reacções fisiológicas e comportamentais à dor física são muito semelhantes de pessoa para pessoa, daí eu ter utilizado o conceito de estereotipo.

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