31 de janeiro de 2006

Tetris 6 - In Limbo ou Rumo ao esquecimento


Está um dia anormalmente frio, mesmo para o pico do inverno. Santelmo percorre a rua despejada de gente, num domingo anormalmente desolado, e repara que as gotas grossas de chuva se transformaram em pequenas partículas brancas, como se as rápidas rectas oblíquas de água se tornassem um corropio curvo, lento, de milhares de floquinhos de neve em câmara lenta. Como na tv.
Santelmo nunca tinha visto nevar ao vivo. Não acontecia tal coisa em Lisboa há meio século; embora já a caminho dos 60, era novo demais na altura para se lembrar do evento. Ou então, já é suficientemente velho para se ter esquecido. Está mesmo muito frio, tanto que já ultrapassou o ponto da percepção. As suas mãos, não as sente; o mesmo acontece com a sua face. Talvez pelo romantismo da neve, tal temperatura passou a ser por ele sentida como agradável.

Enquanto sobe lentamente as escadas do seu prédio, ouve os seus vizinhos através das portas fechadas, em grande
algazarra pelo inédito. Fecha a porta e aproxima-se do aquecedor, enquanto pendura a gabardina numa cadeira e tira o gorro da cabeça. Ambas as peças estão cobertas de cristais brancos que se dissolvem rapidamente na água em estado físico mais familiar.
Na televisão, muitos canais informam sobre aquilo que quase toda a gente no país já sabia. Lá fora, as redes móveis entopem-se, com toda a gente a querer contar a toda a gente o que todos já tinham saudado com alegria. "Que pena que não é natal" - terão pensado e dito alguns.

Santelmo veste agora o seu robe, cujo padrão é em tudo semelhante ao dos estofos dos bancos do metropolitano: riscas azuis escuras e quadradinhos vermelhos, berrantes, que agridem a vista. Mas ele vive sozinho, e para além de si próprio só o carteiro ou o homem da luz terão tido a hipótese de desviar a vista de tão desconcertante visão. Decide agora desligar o telemóvel, mesmo tendo meia dúzia de chamadas não atendidas e outras tantas mensagens não lidas. Puxa o aquecedor para mais perto de si, arruma o livro de astronomia que estava em cima do sofá, e que já tinha lido e relido incontáveis vezes. Quase tantas como os dias que tinham decorrido desde que ficou de mal com o mundo.

Com o volume da televisão mais baixo, Santelmo dá voltas à casa, que apesar de pequena é grande demais para ele sozinho. Descobre então que pelas frinchas das portas e janelas começa a entrar água e neve, e decide defender o seu forte com trapos e toalhas, calafetando todas as frestas. Olha à volta e sente-se agora mais seguro, mas impelido pelo balanço e pela situação, tranca também a porta de casa e a porta da sala. Com a calma de quem já nada teme, opta por encerrar as mesmas portas com tábuas de madeira. "Ninguém entra, e ninguém há de sair" - pensa para si.

Bebe agora um chá de menta requentado, de há três dias. Apaga o fogão com um sopro rápido e vai deitar-se no sofá com uma mantinha azul-petróleo a cobrir-lhe as juntas, com o livro de novo aberto por cima da barriga. Encontra-se na exígua sala de estar, que com a porta fechada ainda parece mais pequena do que é - um minúsculo cubículo forrado a papel de parede dos anos 80.
Santelmo está farto da atmosfera oxidativa do planeta Terra. Sente que a sua imensidão está cada vez mais contraída num pequeno ponto do espaço, de densidade infinita. Sente-se claustrofóbico, inadaptado num corpo celeste com tantas potencialidades e ainda mais limitações...
Viu há dias que tinham descoberto um novo planeta na via láctea, a 20000 anos-luz da Terra, mas muito semelhante ao planeta azul. Desde então tem sonhado todas as noites com uma emigração para esse tal planeta, 5 vezes maior do que o nosso. Mas a noite nunca tinha sido suficientemente grande para completar a viagem.
"Sou capaz de lá chegar" - murmura, convicto, enquanto sonha, ainda acordado, e vai fechando lentamente os olhos, embalado pela silenciosa atmosfera adocicada de hidrocarbonetos.

*
Lá fora a neve continua a acariciar as janelas; as crianças continuam a aproveitar o insólito e fazem bonecos de neve, embora desiludidas por estes não se parecerem com os dos desenhos animados. Na televisão, quase sem som, passam agora anúncios de toques polifónicos de sapos a arrotar, sapos DJ's e outros que tais... mas Santelmo já voa, embora com os pulmões cheios de fluido gasoso mais denso que o ar, no começo da sua viagem à descoberta do novo planeta.

Dizem que o tal planeta tem uma temperatura média de -200 ºC, mas ele não se preocupa, pois lá há de haver aquecedores. E ele sempre gostou das sensações frias... de quando punha os pés na banheira e sentia as primeiras gotas geladas do chuveiro nos pés, ou quando entrava na cama para se deitar e sentia o seu corpo mole contra os lençóis glaciais... ou quando saía do metro e sentia as correntes de ar das estações modernas.
A uma velocidade muito superior à da luz, vai sentido na pele o sabor do vácuo, enquanto canta uma música que se lembra de ter ouvido em casa dos netos.

The realm of soft delusions, floating on the leaves
On a distant shoreline, she waves her arms to me
As all the thought police, are closing in for sleep
The dilly dally, of my bright lit stay
The steam of my misfortunes
Has given me the power to be afraid

And in my mind I'm everyone
And in my mind
Without a care in this whole world
Without a care in this life
It's what you take that makes things right...

Santelmo nada velozmente no leite da galáxia, desviando-se de meteoros, crivando-se de poeira cósmica. A temperatura está próxima do zero absoluto, e a sua pele engelhada adquire a cor da neve que deixou para trás... vê milhões de estrelas bem de perto, e salta-as depressa como se fossem fogueiras dos santos populares.

O planeta a que se destina demora 10 anos a dar uma volta completa ao seu sol. Para Santelmo, isto dará uma nova perspectiva do tempo. Um ano valerá por dez... como será bom ter a sua vida prolongada desta forma! Um novo lugar onde não haverá lugar para expectativas goradas, intrujices... onde não se perde tempo com reflexões inúteis e há todo o tempo do mundo (como designará Santelmo este mundo?) para sentir. Um planeta sem fome, sem guerra, sem egoísmo, inveja, ganância... sem que ninguém obrigue ninguém a sobressair ou a desaparecer...
Um novo ambiente, sem amores mal vividos, incompreendidos ou não correspondidos. Um sítio totalmente novinho por estrear onde estará sempre pronto para abraçar cada sensação e sentimento com o fulgor que lhe é devido. O cheiro dos pinheiros... será que há pinheiros lá? O doce de um chocolate Regina ou de outra marca qualquer...
Neste novo planeta de Santelmo, os avós terão cara sempre jovem até morrerem, e quando morrerem (sempre de velhice e de morte natural) será feita uma festa que durará 3 dias! Toda a gente terá cabelo como o das crianças. Não há nada mais macio que o cabelo das crianças.

Mas Santelmo fica apreensivo. Haverá gente no novo planeta? Ou ficarei só comigo mesmo? Será que fui o único a ter esta ideia?
"A viagem está próxima do fim, Santelmo! Não devias desacelerar?".

Desesperado, Santelmo não consegue deixar de acelerar o seu voo. Começa a entrar na atmosfera do novo planeta, e a gravidade, 5 vezes maior do que a da Terra, impele-o cada vez mais depressa para a sua superfície. A sua pele passa de branca gelada para vermelha rubra, e de novo branca-brasa.
"Vou ficar sozinho? Ninguém viajou também? De que vale um planeta perfeito se é só para mim?" - pensa Santelmo, envolto numa bola de fogo, resignado com o seu equívoco. Vê a superfície do planeta cada vez mais perto, branca gelada a -200ºC, enquanto o seu robe se volatiliza com o atrito da atmosfera butânica, muito mais densa do que a da Terra...
vê as montanhas geladas,
os icebergs,
os pequenos cristais de neve no chão,
a escuridão absoluta.
*


Muitos dias depois, um grupo de bombeiros arromba a porta da casa de Santelmo. O ar está irrespirável, por isso avançam, de lenços na cara, sem ligar as luzes, até ao sofá onde se encontra um enorme monte de cinzas que esvoaçam brandamente pela deslocação do ar quente do aquecedor. Por cima, está aberto na primeira página um livro, semi-coberto de neve fina, em cuja capa se lê "O meu primeiro livro de astronomia".

3 comentários:

  1. A irreversível viagem para a solidão através da astronima e de um estranho fenómeno de auto-combustão!
    O planeta distante como o paraíso procurado por qualquer mortal que vive, e porque vive, sofre.


    "Um novo lugar onde não haverá lugar para expectativas goradas, intrujices... onde não se perde tempo com reflexões inúteis e há todo o tempo do mundo (como designará Santelmo este mundo?) para sentir. Um planeta sem fome, sem guerra, sem egoísmo, inveja, ganância... sem que ninguém obrigue ninguém a sobressair ou a desaparecer...
    Um novo ambiente, sem amores mal vividos, incompreendidos ou não correspondidos."

    E será que nesse lugar se viveria realmente? Não farão parte do próprio ser humano a guerra, o egoísmo, a inveja, a ganância... os amores mal vividos, imcompreendidos ou não correspondidos? Como seria um mundo em que tudo fosse perfeito e macio como o cabelo de um bebé ou a pele daquele que amamos? Seria um mundo sequer? Seríamos nós felizes num sítio onde nem poderíamos dar valor a essa perfeição, porque não saberíamos o que era sofrer e carregar connosco um dor que não se explica e apenas se sente? Seriam humanos os habitantes desse mundo?

    Foste cruel com Santelmo, apesar da morte surreal e utópica que lhe concedeste. Não estarás a sê-lo contigo também?

    "Santelmo está farto da atmosfera oxidativa do planeta Terra."

    Não estaremos todos?

    *****

    ResponderEliminar
  2. Antes de mais, obrigado pelo teu comentário sempre esclarecedor, e apontador de novos caminhos.

    A vida é vida tal como a conhecemos... com tudo o que tem de bom e mau, esses polos indissociáveis, interligados e interdepentendes. Mas Santelmo estava farto da porção má do seu mundo, pejado de indiferença por parte do resto do mundo; de tristeza, solidão, competição, solicitações sociais que levam à hipertrofia cardíaca, adrenalina ao rubro, a mania e histeria pela juventude e pela beleza... é muito fácil para toda a gente começar por imaginar um mundo muito melhor. Mas se reparares bem, no fim está implícito que Santelmo percebeu à última hora que não é possível um mundo concebido tendo como bases a estase, a invariabilidade e a previsibilidade de processos. É esse o fundo da história, o facto de se ter apercebido de que não é possível viver-se sozinho, e basta haver duas pessoas para haver divergências (positivas e negativas) - essa extensão fica à imaginação de cada leitor.

    Não acho que seja cruel comigo. Já o fui em tempos, mas não tive fibra para continuar a ser bom samaritano. Sempre gostei de mim, sempre tive a mania que era melhor que os outros; a diferença é que antes fazia para que os outros gostassem de mim pelas minhas atitudes, acções, comportamento... fazia da minha amizade, amor, utilidade, um veículo para tornar toda a gente que me rodeava feliz. Neste momento não é assim. Continuo com a mania que sou esperto e carapau de corrida, no entanto estou mais preocupado comigo mesmo, com a minha saúde e com a minha felicidade imediata, e a curto prazo. Eu acho que isto é mais ser cruel com as outras pessoas... não comigo mesmo. Mas tal é inevitável.

    Beijinhos!! E continua a comentar, faz sempre falta...

    ResponderEliminar
  3. Quantos Santelmos tivemos, temos e teremos na nossa vida?
    Quantas vezes nos vamos sentir sufocados, como se umas mãos reais nos apertassem o peito e não nos deixassem respirar?
    Quantas vezes vamos sentir o mundo em cima dos ombros, quando na realidade apenas um casaco pende sobre os mesmos?
    Quantas vezes vamos tremer incontrolavelmente quando estão 30ºC?
    Todos os dias somos Santelmo e todos os dias volatizamos as nossas derrotas. Dessas.. sobram as cinzas... fertilizantes para os sucessos do futuro!

    ResponderEliminar