
Talvez porque a noite vai longa e o calor de mais um dia de verão deu finalmente lugar ao frio de um luar límpido e estrelado, onde dois lasers se cruzam em direcção ao nada; talvez por isso... eu sinta esta vontade enorme de escrever.
O espesso e pesado ar da estação, lascante e árido, fere e arde como as feridas a descoberto (após dascarnadas as crostas). É uma sensação estranha! Eu amo o sol, a praia, a água... embora não consiga esquecer a chuva, o gelo matinal a música percutida pela água que choca com o vidro.
Mas não pretendo ficar para aqui a fazer considerações acerca das minhas preferências sazonais. Gostaria sim de me lançar num campo de padrões e contrastes onde me perco, talvez por incompreensão e ignorância, talvez por feitio!
Há muito tempo que procuro entender por que razão determinados grupos de pessoas tendem a seguir à risca um determinado rumo, ladeado por gostos definidos e incontestáveis. O que leva um indivíduo a defender acerrimamente determinado comportamento ou maneira de estar?
As minhas dúvidas e interrogações baseiam-se em experiências vividas com vários amigos com os quais, nas mais diversificadas actividades, vou tendo oportunidade de contactar.
Descrevo tal relacionamento como clusters individualizáveis por traços visuais, gostos musicais e literários... papéis desiguais. Não sei qual a designação correcta de cada tribo, se assim lhe podemos chamar (penso que sim), muito embora as sinta e veja e tente compreender e compreendo!
Não é muito difícil chegar a esta constatação. Quem ainda não reparou no grupo hip-hop, tá’s bem, yo, calças largas, medalhas ao peito? Quem ainda não se apercebeu do grupo Bob Marley, rasta people de mochila às costas e chinelos na plataforma da estação de Santa Apolónia? Quem ainda não deu conta da cultura urbana e subversiva que ama o Chiado e o Bairro e vive sequiosa de lutar pelas causas mais à esquerda (atenção, não pretendo estar contra esta posição porque até eu sou de esquerda.. não o nego) ao som de Placebo, Jorge Palma, Jeff Buckley, Nick Cave, P.J. Harvey, Ben Harper (para alguns), The Gift, Ornatos (Pluto), Xutos, Radiohead e porque não Pearl Jam, entre tantos outros? Quem ainda não ouviu os berros da cultura trash, negra, macabra; culto da auto-destruição, muitas vezes presente em mentes conturbadas, puro fruto dos tempos... solidão? Há ainda a cultura dita “clássica”, nome que eu contesto quando no qual se pretendem incluir nomes como Debussy, Chopin, Bach, Ravel, Liszt... entre tantos outros! (optei por não entrar pelos campos da Pop, fiquei-me pelo Hip, pelo pessoal da House, entre tantos outros que de certo serão conhecidos por todos).
Perante o parágrafo anterior (bastante incompleto, dado o limite de espaço; vale pela intenção, assim o espero) facilmente se constatam as diferenças vigentes na sociedade jovem (sobretudo) actual. Vivemos de ícones, tentamos seguir as tendências que nos parecem ser as mais originais e estar de acordo com a nossa forma de viver a realidade. Procuramos a todo o custo a singularidade, muito embora sejamos atraídos para um campo de particulas em tudo semelhantes.
Antes de concluir o meu raciocínio, daria o exemplo do recente concerto U2 e do fanatismo exacerbado para ouvir uma banda que quanto a mim (e não entrando pelo campo das missões) vive do passado e do espectáculo visual; da expectativa criada nos milhares de fãs que muitas vezes ali estão mais por se tratar de U2, do que por apreciarem a sua música (quanto a mim demasiadamente repetitiva, como se fosse oriunda de um papel químico... mas isto é uma opinião pessoal). Bem sei que uma banda, para manter determinado status, necessita de criar todo um envolvimento e “grau de dificuldade” soretudo no que se refere à obtenção dos bilhetes contudo, e agora não me referindo exclusivamente a U2, penso que os ditos músicos dão mais música do que aquela que fazem. Perdoem-me os fãs!
Um conselho que costumo sempre dar e que tabém a mim foi dado é o de, aquando da audição de uma música, fechar os olhos e tentar seguir o rumo de cada instrumento, tentado posteriormente reuní-los num conjunto, que acabará por constituir a própria música. Em seguida junto a letra e tento perceber o que quer dizer. Desta simples actividade resulta ou uma obra-prima, ou algo que até parecia ter nexo mas que cai num marasmo completo, quando se tenta valorizar o verdadeiro sentido musical. Fica aqui o conselho...
Mas voltando à ideia inicial, e tomando como novo ponto de partida o que anteriormente referi, torna-se de certa forma claro que muito antes dos gostos que nos movem, vêm os sentimentos e emoções que experimentamos ou experimentámos aquando do primeiro contacto. Não condeno que alguém goste de algo que considero absolutamente horrível, se esse algo se fez/faz acompanhar de um sentimento marcante e belo (também isto é válido na versão marcante e triste).
Alguns dos exemplos que considero válidos são os “grupos da adolescência”. Quando falo com pessoas mais velhas, apercebo-me que há uma camada louca por Pink Floyd, Led Zeppelin, Rolling Stones, entre tantos outros que nada significam para muitos de nós, mas que marcaram toda uma geração que continua a segui-los/ouvi-los, talvez porque esse acto desperte e abra espaço para um certo reviver do passado, mesmo que pela memória de escassos minutos.
Todos nós nos movemos num espaço limitado de singularidade de comportamentos, ainda que a nossa vivência desses comportamentos seja única, tal como o nosso genoma. Podemos achar que ouvir música dita “não comercial”, é de facto não comercial esquecendo-nos porém que, como nós, muitos outros compram essa mesma música. Contudo, penso que poderemos afirmar que qualquer música, “comercial” ou não, desperta em nós sensações diferentes e únicas, boas ou más. É isso que faz com que gostemos ou não!
Foi precisamente por isso que decidi enveredar por este rumo, nesta noite, neste preciso momento em que ouço uma das músicas do “Paciente Inglês”, um dos filmes mais marcantes da minha vida.
Como é curioso!
Se me pedissem para resumir o filme tanto poderia dizer que se trata de uma história tipo novela de quinta categoria, em que um gajo cai de uma avioneta ficando todo queimado e é recolhido e acolhido por uma enfermeira, sendo que ao longo do filme nos vai sendo contada a sua história até ao fatídico episódio da queda... afinal ele está assim porque quis... quem mandou meter-se com a gaja!; Como poderia contar a história como de facto me marcou, tornando-se impreterível o relato da cena inincial em que K desenha as figuras representadas numa pedra; a noite da tempestade no deserto e o prenúncio de uma ligação entre ambas as personagens; a ária das Goldberg Variations de Bach tocada num piano no qual se escondia uma bomba; as velas colocadas ao longo do caminho que guiava a enfermeira até ao soldado; a dança aérea sobre o extenso areal, acompanhada pela música que ainda hoje, neste momento em que escrevo, me causa arrepios; entre tantas ouras cenas e momentos de rara beleza!
Talvez se ouvisse a música das “Palavras que nunca te direi”, também ela composta por Gabriel Yared, não sentisse aquilo que agora sinto. E porquê? Porque aquilo que em mim ficou apenas se faz de música... faltando os restantes sentidos... as imagens! E tudo isto para exemplificar a incongruência da intransigência que se faz sentir nos dias que correm.
Hoje tudo se partidariza... tudo se fragmenta! Todos puxam para seu lado, tal como as galáxias que se afastam. Contudo, se a extrapolação assim o permite, tudo se reunirá de novo, num ponto de atracção mútua, de polos opostos que interagem entre si!
Na minha opinião cada um de nós deverá libertar-se para sorver tudo o que hoje se encerra em blocos de tendências e modas. Quer gostemos, quer não, deveremos sempre dar uma oportunidade para que aquilo que para nós não faz sentido tenha uma oportunidade para se explicar... afinal... se faz sentido para tantos outros...
Não devemos discriminar mas sim aceitar, ainda que não partilhemos ou perfilhemos dos mesmos gostos e opções. Só assim, de consciência formada, poderemos dizer não e sim. E se dessa atitude a fragmentação resultar... será uma pseudo-fragmentação porque de certo, algo de diferente ficou em nós, algo de semelhante nos aproxima de outras (mesmas) realidades.
Façamos então um esforço para a compreensão... Só assim poderemos atingir uma vivência mais verdadeira connosco e com o mundo. Só assim poderemos enriquecer as relações interpessoais... o que se torna obrigatório para toda a gente e, em especial, para aqueles que como nós pretendem encarar a dura realidade da doença e do sofrimento- esse sim, global e universal, no “agora e sempre” em que vivemos.




