“Ligue à minha irmã, por favor…” – pediu-me o velhote, deitado
no chão de terra batida à sombra das videiras, de nuca em esforço e encharcado
em suor, enquanto procurava atabalhoadamente o telemóvel nos bolsos.
Já tinha trocado algumas palavras com ele um par de vezes,
mas só naquele momento soube o nome dele, numa circunstância em que tal se
mostrou necessário.
O Sr. Florêncio vive numa casinha à beira da estrada de
paralelo de granito, com um pequeno jardim e um cãozinho que vem sempre ao
portão gradeado quando por ali passo com a minha filha. E ela, naturalmente, adora
brincar com ele e pede sempre para o chamarmos.
Acontece que naquela tarde decidi voltar para trás depois de
me despedir porque o cãozinho veio atrás de nós e, portanto, o velhote tinha
deixado o portão aberto.
Encontrei o Sr. Florêncio caído no chão a tentar levantar-se
como uma tartaruga de patas para o ar. Apressou-se a garantir-me que só tinha
bebido um ou dois copos de tinto com os amigos – quem nunca? Mas trezentos
metros de caminhada debaixo do sol das quatro da tarde de agosto, com quase quarenta
graus à sombra, tinham chegado para dar conta dele.
Lá chamei a irmã dele e fiquei ali a acompanhá-lo e refrescá-lo
enquanto não lhe chegava a família, e a minha filha continuou a fazer festas ao
Bolinhas.
*
Penalva faz-me lembrar Brokenwood.
Não no tipo de paisagem, uma vez que Brokenwood se localiza ficticiamente na
Nova Zelândia e Penalva fica na realidade na província da Beira Alta em Portugal
Continental. É que, tal como na série, as pessoas conhecem-se ou estão ligadas entre si, e sabem coisas ou têm juizos de valor em relação às outras. Em
Brokenwood o pub local é sempre o The Snake and Tiger ou o The Frog and Cheetah e a pizzaria é sempre a
Porky Piggeon Pizzeria (ou outros pubs com nomes semelhantes, mas tudo pertencente sempre ao mesmo dono). Em Penalva o José dos alumínios tem uma filha que comprou
agora uma papelaria ali em baixo; essa filha tem uma cunhada que trabalha na
pastelaria. O Hermínio bombeiro também cria coelhos que andam à solta e roeram
os fios da antena da televisão da Cândida, mas ela não se queixou porque mal
vê, coitada, e a televisão ainda dá som.
Embora sendo eu de Lisboa, quando calha falar com alguém esse alguém fala-me das pessoas de Penalva como se fosse óbvio o meu conhecimento de quem são. Em boa verdade nunca os desminto, porque fazê-lo seria uma carga de trabalhos. “O Manel Matias ali ao lado da farmácia, sabe, não é?”, “Ah, si-si!”.
*
Hoje, como em outras vezes, decidi ir com a minha filha comer pastéis de nata à tal pastelaria. Quando fui pagar – com mbway – ela estava a enfiar a mão na ranhura da máquina onde se paga com dinheiro e se recebe troco. Dizia ela: “pai, não sai dinheiro, eu queria dinheiro!”. “Oh meu amor… eu acho que é o que quase toda a gente quer, mas não é assim que funciona…”. A empregada ao balcão estende-me a máquina do multibanco enquanto sorri e revira os olhos em assentimento - "como te compreendo!". E continuei: “tens de fazer algo para ganhar dinheiro, normalmente tem de se trabalhar…”. E a empregada “...” que não percebi. “Desculpe… quer número de contribuinte?”, “Está adoentada, não é?”, “Estou quase sem voz…”, respondeu-me, enquanto punha a mão sobre a laringe.
Saímos da pastelaria e continuei
a explicar à minha filha que o dinheiro servia para gastar em coisas que
precisávamos e em coisas que queríamos, mas também é importante saber guardá-lo.
E ela dizia-me que se tivéssemos dinheiro ela poderia comprar um gelado. E passámos
pelo jardim de amores-perfeitos e pelo portão do Bolinhas, que desatou a correr
na nossa direcção.
O Sr. Florêncio estava por ali, de camisa de mangas arregaçadas – afinal estavam cinco graus – e disse o que sempre dizia, que o cãozito deixa que se lhe faça tudo, que só quer é festas. E de repente lembrou-se: “Esperem aí um bocadinho que eu vou ali dentro buscar uma coisa!”. Voltou com uma mãozorra fechada e aproximou-se do portão. Disse à minha filha que abrisse a mãozinha dela – e ela, meio desconfiada e tímida, ficou ali um bocadinho bloqueada. A mão dele enorme, áspera, com os dedos grossos, uma mão de trabalho árduo. Achei que ia dar à miúda um biscoitinho para dar ao cão, mas não. Deu-lhe uma notinha e disse-lhe para comprar um chocolate, que era por ser sempre tão atenciosa com o Bolinhas.
Contou-me que de dia trabalhava a horta com o José dos alumínios que tem um tractor, e que queria era estar ocupado porque era viúvo e à noite o que lhe valia era a televisão, e que vai fazer 18 anos para o mês que vem. E se eu quisesse umas couves da horta, daquelas boas, que lhe dissesse porque ele tem muitas e vão todas para as galinhas.
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