11 de fevereiro de 2025
Prejudice
19 de janeiro de 2025
The Penalva Mysteries
“Ligue à minha irmã, por favor…” – pediu-me o velhote, deitado
no chão de terra batida à sombra das videiras, de nuca em esforço e encharcado
em suor, enquanto procurava atabalhoadamente o telemóvel nos bolsos.
Já tinha trocado algumas palavras com ele um par de vezes,
mas só naquele momento soube o nome dele, numa circunstância em que tal se
mostrou necessário.
O Sr. Florêncio vive numa casinha à beira da estrada de
paralelo de granito, com um pequeno jardim e um cãozinho que vem sempre ao
portão gradeado quando por ali passo com a minha filha. E ela, naturalmente, adora
brincar com ele e pede sempre para o chamarmos.
Acontece que naquela tarde decidi voltar para trás depois de
me despedir porque o cãozinho veio atrás de nós e, portanto, o velhote tinha
deixado o portão aberto.
Encontrei o Sr. Florêncio caído no chão a tentar levantar-se
como uma tartaruga de patas para o ar. Apressou-se a garantir-me que só tinha
bebido um ou dois copos de tinto com os amigos – quem nunca? Mas trezentos
metros de caminhada debaixo do sol das quatro da tarde de agosto, com quase quarenta
graus à sombra, tinham chegado para dar conta dele.
Lá chamei a irmã dele e fiquei ali a acompanhá-lo e refrescá-lo
enquanto não lhe chegava a família, e a minha filha continuou a fazer festas ao
Bolinhas.
*
Penalva faz-me lembrar Brokenwood.
Não no tipo de paisagem, uma vez que Brokenwood se localiza ficticiamente na
Nova Zelândia e Penalva fica na realidade na província da Beira Alta em Portugal
Continental. É que, tal como na série, as pessoas conhecem-se ou estão ligadas entre si, e sabem coisas ou têm juizos de valor em relação às outras. Em
Brokenwood o pub local é sempre o The Snake and Tiger ou o The Frog and Cheetah e a pizzaria é sempre a
Porky Piggeon Pizzeria (ou outros pubs com nomes semelhantes, mas tudo pertencente sempre ao mesmo dono). Em Penalva o José dos alumínios tem uma filha que comprou
agora uma papelaria ali em baixo; essa filha tem uma cunhada que trabalha na
pastelaria. O Hermínio bombeiro também cria coelhos que andam à solta e roeram
os fios da antena da televisão da Cândida, mas ela não se queixou porque mal
vê, coitada, e a televisão ainda dá som.
Embora sendo eu de Lisboa, quando calha falar com alguém esse alguém fala-me das pessoas de Penalva como se fosse óbvio o meu conhecimento de quem são. Em boa verdade nunca os desminto, porque fazê-lo seria uma carga de trabalhos. “O Manel Matias ali ao lado da farmácia, sabe, não é?”, “Ah, si-si!”.
*
Hoje, como em outras vezes, decidi ir com a minha filha comer pastéis de nata à tal pastelaria. Quando fui pagar – com mbway – ela estava a enfiar a mão na ranhura da máquina onde se paga com dinheiro e se recebe troco. Dizia ela: “pai, não sai dinheiro, eu queria dinheiro!”. “Oh meu amor… eu acho que é o que quase toda a gente quer, mas não é assim que funciona…”. A empregada ao balcão estende-me a máquina do multibanco enquanto sorri e revira os olhos em assentimento - "como te compreendo!". E continuei: “tens de fazer algo para ganhar dinheiro, normalmente tem de se trabalhar…”. E a empregada “...” que não percebi. “Desculpe… quer número de contribuinte?”, “Está adoentada, não é?”, “Estou quase sem voz…”, respondeu-me, enquanto punha a mão sobre a laringe.
Saímos da pastelaria e continuei
a explicar à minha filha que o dinheiro servia para gastar em coisas que
precisávamos e em coisas que queríamos, mas também é importante saber guardá-lo.
E ela dizia-me que se tivéssemos dinheiro ela poderia comprar um gelado. E passámos
pelo jardim de amores-perfeitos e pelo portão do Bolinhas, que desatou a correr
na nossa direcção.
O Sr. Florêncio estava por ali, de camisa de mangas arregaçadas – afinal estavam cinco graus – e disse o que sempre dizia, que o cãozito deixa que se lhe faça tudo, que só quer é festas. E de repente lembrou-se: “Esperem aí um bocadinho que eu vou ali dentro buscar uma coisa!”. Voltou com uma mãozorra fechada e aproximou-se do portão. Disse à minha filha que abrisse a mãozinha dela – e ela, meio desconfiada e tímida, ficou ali um bocadinho bloqueada. A mão dele enorme, áspera, com os dedos grossos, uma mão de trabalho árduo. Achei que ia dar à miúda um biscoitinho para dar ao cão, mas não. Deu-lhe uma notinha e disse-lhe para comprar um chocolate, que era por ser sempre tão atenciosa com o Bolinhas.
Contou-me que de dia trabalhava a horta com o José dos alumínios que tem um tractor, e que queria era estar ocupado porque era viúvo e à noite o que lhe valia era a televisão, e que vai fazer 18 anos para o mês que vem. E se eu quisesse umas couves da horta, daquelas boas, que lhe dissesse porque ele tem muitas e vão todas para as galinhas.
Falou e disse - 081
Estávamos a almoçar, e ela estava a ver a Ladybug em russo, muito compenetrada, e a enfardar garfadas de arroz.
STP - Então filha? Não comes o franguinho?
A minha filha - ...
STP - Filha! (pus a Ladybug no pause).
A minha filha - Pai! Estava só a adorar o teu arroz!
13 de janeiro de 2025
Harmónica
STP - Filha, tenho um favor para te pedir.
A minha filha - Diz.
STP - Será que me podias emprestar a tua harmónica? O pai queria experimentar fazer uma música com ela.
A minha filha - Mas... é para tocares aqui em casa? Ou é para levares para Lisboa?
STP - Eu levava para Lisboa mas depois devolvia-te logo, claro! Eram só uns dias...
A minha filha - Owwwn... pai... mas eu vou sentir a falta!
STP - Filha... é só uma semana...
A minha filha - Mas tu esqueces-te sempre das coisas em Lisboa!
STP - ?! Esqueço...? Então?
A minha filha - Esqueceste-te das sementes de girassol!
(Tinha-lhe prometido uma vez que lhe trazia sementes de girassol para comer. Mas depois esqueci-me. Acabou por ser ela a detectá-las numa prateleira de supermercado quando fomos às compras. Aconteceu há meses...).
A minha filha - Mas olha... tu tens o teu dinheirinho... porque é que não compras uma para ti?
12 de janeiro de 2025
Blood and laugh
Ela já me havia dito que não acreditava na Fada dos dentes, e que planeava guardar todos os dentinhos que lhe caíssem para depois receber as moedas todas juntas. Quando me disse isso, equacionei de forma breve instruí-la para que pedisse à mãe as moedas em dólares, mas deixei cair a ideia. Só que ela tinha um dentinho da frente a abanar já há bastante tempo. Teimava em não cair.
A mãe dela entregou-ma no fim de semana e delegou-me a tarefa de forma indirecta. "Vejam se me trazem o dentinho no domingo!". Isso fez-me recordar o tempo em que era criança, en que, por mais do que uma vez o meu pai me tentou tirar um dente de leite a abanar e eu estava cheio de medo; recusei várias tentativas por métodos diferentes, e acabei a chorar, mas sem dente. A verdade é que eu era um bocado *onas.
Contudo, acabou por ser ela a abordar-me ao fim da tarde sobre o assunto.
A minha filha - Pai, queres tentar tirar o dentinho?
Fiquei surpreendido com o ímpeto.
STP - Posso tentar, filha, deixa ver ... (tentei apanhá-lo entre os dedos com um bocadinho de papel para não escorregar, um pouco como faço com as senhoras nas urgências - normalmente são senhoras - quando lhes tento tirar anéis de há mil anos de dedos inchados depois de os besuntar em sabão líquido. Às vezes digo-lhes que sou muito bom a tirar anéis mas não sou bom a pô-los, e elas riem-se).
Ela disse logo: "O papel é para não escorregar...". A assunção encheu-me de orgulho, porque ela intuiu imediatamente aquilo que muitos adultos não conseguem entender mesmo após explicação.
Tentei, mas não consegui.
STP - Sabes, filhota... o que dava aqui jeito era uma linha... Mas não sei se consigo arranjar agora. Se calhar temos de comprar amanhã.
A minha filha - Já sei! Tive uma ideia! Porque é que não usas as linhas da árvore de Natal?
Sim, eu ainda tenho a árvore de Natal montada. E antes que pensem em abanar a cabeça mentalmente porque o dia de Reis já passou... a verdade é que a tenho na sala desde o Natal de 2023. Mas não vale a pena focarmo-nos agora em procrastinações. Não percebi imediatamente o que me estava a tentar propor, mas ela trouxe-me uma bola de Natal com uma linha dourada.
Depois de tentar desatar os nós de várias linhas de vários enfeites de Natal, disse-lhe que não estava a conseguir, mas que tinha sido uma ideia incrível e que o pai ia tentar arranjar alternativa.
Enquanto vasculhava por gavetas e móveis, vi uma bugiganga que comprei num hipermercado em cima de uma mesa de apoio. Tratava-se de uma maquineta que supostamente fatiava dentes de alho, feita de plástico, e que à primeira tentativa de uso tinha conseguido desmontar o fio de arame de que dependia o alegado mecanismo de corte. Era um fio fino, flexível, e até diria que seria feito de nitinol se não tivesse sido comprado no Continente por 1,99 euros ou coisa que o valha. Se eu corto tão bem alho com uma faca, porque é que precisava de uma porcaria daquelas? Bem, pareceu-me boa ideia comprar aquilo na altura.
A minha filha - Mas isso é metal... não é um bocadinho estranholas?
STP - Podemos tentar! (até passei nos meus dentes primeiro).
A minha filha - Então vamos!
Abriu assim a boca e colocou o queixo em prognatismo para me pôr em evidência o dente dançante. Andei ali um bocadinho às voltas mas consegui dar dois nós à volta do dente e disse-lhe que dissesse "Ahhh!". Ao mesmo tempo puxei o fio para cima e foi fácil.
Ela esbugalhou os olhos ao ver o dente preso ao fio, e riu-se muito. Mas eu olhei-lhe para a boquinha e estava com bastante sangue. Claro que foi a correr ver ao espelho da casa de banho, e temi que se assustasse. Fui atrás dela e quando me disse que tinha sangue, houve ali aquele meio segundo em que não percebi se estava assustada ou não. Decidi fazer eu uma cara assustada e fingir que fugia dela. "Aiiii tanto sangue, aiiii vou fugir daqui, socorro!". E abri a porta de casa e fingi que ia assustado a sair a correr e descer as escadas a fugir com medo. E ela veio atrás de mim a rir-se incontrolavelmente a meter-me medo de boca aberta a dizer "âââââhhhh!!!" altíssimo, enquanto os sons faziam tremer o corrimão de metal das escadas do prédio.
A vizinha do lado abriu a porta para ver o que se passava mas estacou e nem ultrapassou o tapete da sua porta. É que, normalmente, sangue não rima com gargalhadas. Confusa, tornou a fechar a porta sem que eu conseguisse explicar.