16 de fevereiro de 2005

A luz é como a água



No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.

— De acordo — disse o pai — vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.
Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que os seus pais achavam.
— Não — disseram em coro — Precisamos dele agora e aqui.
— Para começar — disse a mãe — aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.

Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madrid, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganho. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação,

— O barco está na garagem — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não há maneira de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não há mais lugar.

No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram os seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até ao quarto de empregada.

— Parabéns — disse o pai. — E agora?

— Agora, nada - disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto.

Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca como água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa.

Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó perguntou-me como era que a luz acendia só com a gente carregando num botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes.

— A luz é como a água — respondi. — A gente abre a torneira e sai.

E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido.

— Já é mau ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada.
— disse o pai — Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho.

— E se ganharmos a gardénia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel.
— Não - disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência.
— É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever — disse ela — mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor.

No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardénias de ouro e o reconhecimento público do director. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos no seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos se tinham perdido na escuridão.

Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe.

O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade — disse.
— Deus te ouça — respondeu a mãe.

Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama.

Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até ao tecto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com o seu xale de Manilha, que se agitava com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude da sua poesia, voavam com as suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos libertados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No quarto de banho flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores.

No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigénio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira os seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o director, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha-se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madrid de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.


Gabriel García Márquez, Dezembro de 1978.

3 comentários:

  1. Achei que algumas pessoas haveriam de gostar de ler este conto. Partilho-o convosco porque o acho genial. É preciso um grande génio para nos re-ensinar de maneira tão subtil que é possível afogarmo-nos na luz . Muito bom, espero que gostem.

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  2. Como te tinha dito, acho que já me tinha deparado com este conto. Realmente é bastante simples e com um toque de génio (ohhh, xalente!! gárrrincha).

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  3. Já o facto de o puto se chamar Totó me tinha conquistado...

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