13 de agosto de 2004

Tetris - Como esquecer a pessoa que amamos

Já perderam no tetris sem fazer uma única linha? Aconteceu-me por várias vezes seguidas, numa dessas noites de Agosto cujo ambiente faz lembrar Saigão, no Vietname que aparece no "Desaparecido em combate", com o Chuck Norris; aquele ambiente muito quente, mas com 100% de humidade. Quem gosta muito do Chuck é a avó da minha "mais que tudo", porque ele ganha sempre aos maus - já não se fazem homens destes!
Mal dou por mim e estou numa dimensão muito "Lost in Translation": com os sonos trocados, sozinho, em que as noites se tornam dias e os dias se tornam noites; em que qualquer foco de luz é envolvido por uma auréola suave, de algodão, de onde fogem raios em todas as direcções - os olhos cansados e embaciados do sono distorcem as cores e as formas. A diferença é que, em vez de em Tóquio, estou em casa, iluminado pela luz encandeante do monitor do pc; com a caixa do computador aberta, o piscar da luz da placa de rede exerce uma espécie de hipnotismo ainda mais profundo, do qual só acordo com uma espécie de ruído telefónico proveniente da televisão: começaram as televendas.
Decido fazer um pouco de exercício: à falta de halteres, chega bem um garrafão de 5 litros de água do luso. É pouco peso, pensariam os experientes, mas para mim chega fazer o movimento devagar e muitas vezes. Ao fim de algum tempo, qual Chuck, estou coberto de suor, com os braços e ombros doridos, cabeça a latejar; mas o exercício é para continuar, mesmo na dor, enquanto tudo passa e repassa na mente em remoínhos e torrentes incontroláveis. Dizem que as piores de todas as dores são as de dentes, as cólicas renais e as dores de amor. Já tinha tido as outras, agora tenho as de amor. Não sei de qual gosto mais. Também dizem que as dores dão tréguas de dia mas pioram muito à noite...
É estranho como, passado algum tempo, só vêm à cabeça as boas memórias, e essas, comparadas com o presente, causam uma dor tão grande na alma como uma queimadura de ferro em brasa no corpo; como uma longa cãimbra que permanece nas vísceras, em espasmos fortíssimos. E o braço dói mais, todos os músculos se contraem num gemido de raiva, e mais uma vez o garrafão sobe.


Quando vivemos no espectro de alguém, somos progressivamente invadidos por outra energia que não é a nossa - algo que embebe as nossas células e as faz viver para alimentar essa energia, essa presença. Enquanto a simbiose existe e dá frutos, a relação é altamente compensadora: todos os elos da relação se desenvolvem, crescem com grande vigor e imponência, levando à ilusão e à crença de que só assim ambos os seres podem viver. Cresce a relação como um prédio com alicerces fortes, compacto, bonito... mas quando morre, essas células ficam votadas ao abandono; são nervos pulsantes, agredidos, envolvidos por tecido necrosado, moribundo - uma ferida. Quando os restos das raízes do outro ser forem removidos progressivamente, quando o tecido atingido (que é todo) for reparado e substituido - uma cicatriz - terei voltado a ser alguém tanto mais próximo do que era quanto possível. É assustadora a maneira como o nosso consciente e subconsciente passam a viver em prol de outra pessoa, silenciosamente, lenta mas inevitavelmente. Quando a união é cancelada, o ego atinge um mínimo histórico (talvez relativo, mas sempre sentido como absoluto). Ficamos deprimidos, hiperpolarizados, impassíveis de qualquer excitação.
No choque extremo, é impossível não invocar a separação primordial: quando deixamos de ser unos com a nossa mãe para constituirmos um ser independente.
Seguidamente, tudo é muito confuso. Esperamos comunicação da outra parte; exigimos essa comunicação, mas imediatamente vem à mente que não depende de nós, que não a devemos desejar, que ela provavelmente não virá, sob a forma que queremos, nem hoje nem nunca. Percorre-nos então um arrepio visceral, profundo. "- Dirá alguma coisa!- E se não disser? - Tem que dizer! - Mas não me deve nada! Separámo-nos! Levará a vida dela e ligar-se-à a outra pessoa! Deixou de fazer parte de mim! - Como pode tal coisa acontecer? Eramos um do outro..." - é o que penso de mim para mim numa fracção de segundo multiplicada por um número muito grande, hora após hora, dia após dia. Sinto um grande vazio na barriga. Parece-me que não tenho baço.


Quando a energia se esgota, volto para o computador. Desenterro músicas amigas de longa data, meio encobertas pelo tempo que entretanto passou, não contaminadas pelos últimos anos. Vem à tona o metal mais antigo, o grunge não batido pelas massas, como o mexilhão protegido das vagas... e sente-se uma réstia da pessoa despreocupada e pura que era há muito tempo a querer voltar à superfície. Pessoas, coisas e lugares de outros tempos voltarão à memória. Tornarei a apreciar coisas simples que deixei de fazer, não por falta de tempo, mas por falta de dedicação, e porque outros valores se levantaram entretanto para as lançar na sombra ostracizante. Tudo isso acontecerá. Sinto-o irracionalmente como uma questão de esperança, mas sei racionalmente que é uma questão de tempo.

Removo primeiro as expressões próprias da pessoa ou com ela comuns do meu próprio discurso interior, e das minhas conversas com os meus interlocutores. Esqueço entretanto o cheiro da pessoa; deixo de antecipar os telefonemas, de correr para o telefone quando ele toca em dada hora do dia, porque saberei já, inconscientemente, que não é para mim. Esqueço partes dos contornos da cara da pessoa. Vejo então depois as coisas, lugares, situações e pessoas de acordo com o que elas valem para mim, sem me perguntar o que pensaria o outro. Rio-me das coisas sem antecipar o riso do outro face a essas mesmas coisas. Aprendo a gozar a liberdade de usar o meu tempo, de canalizar a minha alegria, a minha energia e os meus recursos para outras coisas e pessoas; mas principalmente, habituo-me a gostar de usar tudo isso em meu exclusivo proveito, em vez de ansiar a todo o momento a partilha de um bocadinho de tudo com o outro. Afinal de contas, sou Eu que eu estou a tentar recuperar. Mas se eu sei que isto é possível, porque é que não quero fazê-lo?


A seguir ao banho, noto que a pele da cara está coberta por uma cutícula de cera brilhante - apareceu por causa das poucas horas de sono por dia. Não é com banhos que ela se combate.
De volta ao tetris, já a noite está a dar lugar ao início do dia. Os pássaros cantam, as carrinhas de abastecimento dos cafés estacionam em 2ª fila. Ouve-se esporadicamente o ruído da ignição do motor de um automóvel - nem todos estão de férias em Agosto. Oiço a música dos Air, do Lost in Translation - "Alone in Kyoto", vez após vez...
Construo um prédio enorme no tetris, como os do Japão, classicamente à espera que depois apareçam aquelas peças em forma paralelipipédica. Fico orgulhoso da construção, compacta, com um ou outro buraquinho apenas. Deixei-me levar naquela cadência muito própria do primeiro nível, aquela lentidão das peças, aquele alento de construção, como se o objectivo do jogo fosse mesmo aquele; acordei de súbito, alertado pelo facto de estar quase a perder, estrangulado pela falta de espaço. Tenho que limpar o jogo, tenho que deitar abaixo o que construí. E as tais peças que não vêm...

6 comentários:

  1. Um grande homem não é aquele que tem sempre sucesso, mas aquele que nunca desiste.
    (J.L. Martin Descalzo)
    O tempo tudo clarifica, e não há estado de espírito que se mantenha inalterado com o passar das horas.
    (Thomas Mann)
    Ninguém te pode fazer sentir inferior sem o teu próprio consentimento.
    (Eleanor Roosevelt)
    Se todos os teus esforços forem vistos com indiferença, não desanimes. Porque também o Sol, ao nascer, dá um espectáculo incrível e, no entanto, a maioria da plateia continua a dormir ou ainda nao se deitou e nem suporta olhar pra sua luz.
    (Anónimo)
    Eu podia ficar aqui o resto do dia a copiar frases feitas de autores,perdoa me a falta de originalidade mas ao contrario de ti nunca tive muito jeito para escrever, muito menos depois de tudo o que escreveste, acredita que sei o que sentes e... nao tenho palavras pra te confortar, mas tudo isto se agrava com da tua descriçao.
    Lindo, peço desculpa pelo meu egoismo mas, a ideia de tu estares sozinho a meio da noite iluminado pela luz do monitor a fazer exercicio, coberto de suor, faz com que a tenue coerencia dos meus pensamentos fique inexistente!E a minha imaginaçao assume o comando...
    Um beijo Grande
    Dynah

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  2. Obrigado pelo comentário, Dina. Mas estou velho e cansado, não fiques com a ideia de que lá por estar coberto de suor fico parecido com os tipos das televendas a vender aparelhos de ginástica ;) O meu suor cheira mal, não é como o deles, que parece óleo Johnson ...

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  3. Lindo...deixa me ser eu a avaliar isso por favor! ou tenho k mandar um avião com uma mensagem ao estilo Big Brother... Va la!sou boa cozinheira!!! lol
    Beijos
    Dynah

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  4. Mensagem da administração: Pede-se aos comentadores do blog que não brinquem com os sentimentos do dinamizador; sejam sinceros e honestos, e acima de tudo não criem expectativas sobrevalorizadas ;)

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  5. Esta comentadora, pede as mais humildes desculpas, mas a honestidade e sinceridade, nao faltam nos seus comentários, apenas falta precisão nos mesmos e nao é de todo responsabilidade da mesma, visto que o dinamizador nao coopera!!! lol
    Dynah

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  6. ja passei por isso... cada palavra que escreveste eu identifico.me.. estou com esse vazio que falas ha 4anos.. e uma especie de doenca que esta cada vez em fase terminal..tudo isto deixa.nos a pensar nos porques e no que erramos.. fico extremamente caduca e alheia para a vida.. felizmente estou cada dia a um passo de mudar isto..e vou conseguir.. o que me assusta e a minha mae... que se separou do meu pai.. e ainda que depois de 10anos de separacao continua com o mesmo amor e a mesma lembranca de sempre... espero que isso nao seja hiereditario.. hehe...

    de qualquer forma .. grande texto..muito bem escrito..

    beijo :)

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