E então que regressou a Penalva, do nada, o calor tórrido. Atingiu-me na cara como um estalo.
As estradas em paralelo brilham e parecem ainda mais desniveladas do que são na realidade com o tremor que se vê ao longe. As cigarras e a passarada competem nos decibéis produzidos. As pessoas parecem estar recolhidas nas suas casas, mas um ou outro arriscam ir ao café-taberna da esquina para se refrescarem.
Dois cães abrem os olhos à nossa passagem, espojados no granito à sombra. Nem nem se incomodam a afastar as moscas.
O aroma doce a flores quentes com tons de relva cortada domina a aura bucólica ladeada pelas montanhas.
Sempre gostei do cheiro a relva cortada. Nas ruas. Nos jardins. No vinho branco.
Penalva pareceu-me uma Corleone no século XXI à moda beirã.
*
Ao chegar ao largo da igreja com a miúda pela mão, tocava uma banda filarmónica da terra e ficámos a ouvir. Os instrumentos de sopro, dourados, coruscavam ao sol das seis da tarde. Os músicos, de todas as idades, encontravam-se vestidos a rigor e interpretavam com pompa música relativamente alegre. E tocavam bem.
Entretanto a missa teria terminado, supus eu, ao ver os fiéis a assomar à porta, vestidos com roupa de domingo a um sábado. Ainda bem que não havia ousado entrar na igreja em calções e t-shirt. Além disso já estava com uma espécie de febre interna na rua e não era preciso ir lá dentro e irromper em chamas, apesar de que - aposto - devia estar mais fresco.
Seguir-se-ia a procissão em honra da Nossa Senhora da Misericórdia. Fizemos o que tínhamos a fazer e demos meia volta, de forma a ultrapassar a troça que seguia lentamente a banda: as senhoras de bem acompanhadas pelos maridos que as aturam em troca de lhes lavarem as cuecas; os hortelões de nariz inchado e passo trôpego que se juntaram entretanto, vindos dos cafés-taberna; os imigrantes de terras de Vera Cruz que aqui se estabeleceram; pecadores em busca de perdão facilitado; e os cães que entretanto terão despertado com a animação. Quase todos falavam entre eles a ciciar à beirão. As notas tocadas, o ritmo dos passos da coorte e o som das cigarras fizeram-me lembrar a cena inicial de O Padrinho II.
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Quando a procissão assomou ao fundo da rua, já a miúda estava a comer um gelado e eu com um copo de sauvignon blanc na mão.
No rés-do-chão do meu prédio, de cada lado, abriram desde as últimas duas semanas novos estabelecimentos. De um lado, o que era um consultório veterinário passou a ser um café: os Sweet Cakes qualquer coisa … os sweet cakes são um bocadinho secos, mas têm café e vinho.
Do outro lado, um "estabelecimento", que supostamente está aberto 24h, com vending machines de bebidas quentes, snacks, refrigerantes, cerveja, e uma mini sex shop com plugs e vibradores e cenas. Podem-se usar moedas ou notas, mas não dá para usar cartão/mbway.
As necessidades básicas da pirâmide estão contempladas naquela loja. Só faltava uma sanita e uma almofada.
Ficámos à sombrinha, à porta da loja das vending machines, a ver o ram-ram da procissão a passar.
Nunca tinha retribuído tantas vezes seguidas "Boa tarde!".