11 de janeiro de 2008

Realidade em dois tempos

Bati de contra a espuma. Arrastei-me por ali. Àquela mistura de água do mar e gás dá a natureza o nome de espuma e os garotos o nome de leite. Escorre por detrás das orelhas e enche o ouvido. Os dois.Tento não a deixar entrar pelas narinas, pois não sou eu que vou contrariar milhões de anos de evolução. Se escolhemos que fossem trocas gasosas, eu alinho! Levanto lentamente a cabeça e o leite vai desaparecendo. Leite mágico. Tenho de tentar compreender isto pois agora só água vejo.

Aqui e ali exespero por explicações simples, daquelas que convençam uma criança. Se conseguirmos convencer uma criança, então por certo acertámos. Dizem que as crianças não mentem. A pessoa com mais poder neste mundo talvez seja aquele senhor que consegue explicar a uma determinada criança o porque daquele brinquedo ser melhor.

Cara criança, analisando de perto as suas necessidades, concluo que o dinossauro mega blástico ser-lhe-à mais útil que a gárgula alada. O dinossauro mega blástico pelo sua disponibilidade de cores e funções adicionais será uma escolha mais inteligente, mesmo tendo em conta o maior esforço financeiro inicial com a sua aquisição.

O seu pai, na esperança de lhe proporcinar uma maior segurança em viagem, comprou uma super auto van especial, com 300 cavalos e com tudo o que há de mais inovador em segurança passiva e activa. A escolha entre uma condução mais atenta e as suas exigências em chegar o mais depressa possível ao destino foi óbvia. O seu pai obviamente preocupa-se consigo, pois em situação de acidente, tem ao dispor tudo o que a nossa tecnologia tem de melhor. Também não servirá de mortal projéctil em caso de embate pois está confortavelmente acomudado na mais segura cadeirinha de bébé. Esta cadeirinha resistiu a testes na lua e nos anéis exteriores de saturno. Mais uma vez, estas escolhas pediram por um maior esforço por parte dos seus pais mas, um dia, dar-lhes-à razão.

Ao celebrar o seu 3º aniversário, os seus pais proporcionam-lhe o necessário espaço para evoluir. Por certo estará feliz. Agora só tem de perder uns instantes antes de disfrutar deste telemóvel. Pré-programado com 10 números de amiguinhos seus, e quem sabe a sua mais que tudo, este aparelho permite-lhe fazer filmes em alta definição e tirar cerca de 200 fotos em formato perfeito. Já não vai mais ter de pedir à educadora para que ligue para que o seu pai o venha buscar. Será popular na sala dos 4 anos mesmo antes de lá chegar.

Este tipo sim. Ele proporciona bem estar, ele emancipa, ele sabe. Numa palavra só, ele é feliz. Estas etapas vão estar escritas, impressas como linhas guia da nossa vida. A evolução será o neo natal. Esse será o próximo mercado, proporcionar o bem estar mesmo antes de se ter nascido, programando tudo, para que não tenhamos de escolher.

Vamos ter um GOLD standart social, um APACHE de conduta e um TIMI da evolução. Como facilmente se percebe, não cumprindo estas linhas orientadoras, a sobrevivência está comprometida. A vivência vai ser feita em resevas, para pessoas que insistem em que a espuma do mar sempre é leite. Vivem, mas não são felizes.


*

Finalmente anoitece. Antes que me aperceba já tenho mesmo de me ir embora. Já saí. Comprei algumas coisas muito ao acaso que estavam pelas parteleiras do supermercado. Não sei se este acaso me proporciona uma refeição mas, como os grandes inventos, também o meu jantar será fenomenal. Eu até te queria era pedir para não ir, hoje preciso de mim. Venho exausto e preciso de descansar. Preciso de saber que entre o melhor dos dois mundos que não posso ter, hoje escolho aquele que nunca tenho. Amanhã já saberá melhor. Chego cansado, com aquele suor desconfortável de quem se agasalhou mais do que devia e com um saco de banda, pois a alsa não aguentou a minha escolha perfeitamente aleatória. Queria-me dizer o quanto estou bem agora a roer uma bolacha Maria e sentindo uns leves espasmos nas costas.
Ah, este maldito hábito de ligar a televisão logo que se chega a casa não tem de acabar. Não acendo um cigarro. Não bebo um copo, talvez um whisky com 2 pedras de gelo. A minha escolha recai por uma lata de cajus, de abertura fácil, não estou para grandes aventuras! Depois duma bolacha Maria o que me apetece são uns cajus. Penso mais uma vez naquilo que tenho para fazer amanhã e não vou fazer. Riu baixinho e rápido, com um estalar de dedos: que se lixe! Há tanta coisa que ainda vou fazer e que o mundo não sabe.
Volto-me para o lado. Entornei os cajus. Assim não corro o risco de me curtar na lata, não estando eu hoje para aventuras. À porta de mim hoje está um sinal de não incomodar, pintadinho de fresco. Oiço o serviço de quartos da minha vida a mandar vir porque queria entrar para fazer a cama. Riu-me baixinho e rápido estalando os dedos. Que se lixe mesmo, hoje não vou abrir.
Esfrego os pés no cobertor com vigor. Penso na quantidade de energia que perco na forma de calor e em toda a energia potêncial que não vai por certo se transformar em cinética. Ah, se ao ao menos estivesse num sistema fechado!

Sem comentários:

Enviar um comentário