20 de novembro de 2007

Tetris 8 - Tão a Solo...


Não podia ter escolhido pior dia para dar um passeio à noite. O barulho que a chuva fazia na clarabóia do meu prédio não ficaria nada a dever ao ruído de uma enorme cascata. Ainda assim, achei que os ares da noite me haviam de fazer bem; não conseguia dormir com o som da chuva lá fora, e por isso decidi ir ter com ela. Nem sempre estou de acordo convosco, que acham que é a melhor música para adormecer. Não hoje. Não às duas e tal da manhã.
A luz amarela dos candeeiros empasta os prédios, os carros, os contentores do lixo... e cria uma atmosfera de solidão cinematográfica. Aqui e ali ouve-se, vez ou outra, o patinhar encharcado de algum cão que ainda não encontrara abrigo. Quanto a mim, mantenho-me na esquina de um prédio, com a protecção da varanda de um primeiro andar, e uma fila ininterrupta de gotas gordas cai lá de cima, passa a menos de meio centímetro do meu nariz - sinto-lhe o vento nos lábios... - e vai explodir nas pedras da calçada, humedecendo aos poucos as baínhas mal feitas das minhas calças de ganga. Poderia dizer que são umas jeans, dando aqueles ares de escritor maduro que teve as primeiras calças de ganga aos 18 anos. São bonitas, as minhas jeans. Talvez as tenha comprado para disfarçar de mim mesmo o que quer que haja dentro de mim que não sinta que é tão bonito assim. É uma frase complicada.
E este fumo que sai da minha boca e que invade a noite que chora, podia ser de um cigarro. Mas é apenas vapor de água que não se consegue esconder no ar saturado de humidade. Mesmo assim, junto aos meus pés, junto à explosão das gotas gordas que vêm do prédio que me abriga, encontram-se dezenas, talvez centenas de beatas. Deixaram-nas ali abandonadas quando perderam a luz, e como se deus quisesse ter a certeza de que não se tornavam a acender, fez-lhes desabar mesmo em cima uma enorme torrente de água.

Talvez já alguém ali tivesse estado antes de mim.
Talvez me fizesse bem avançar uns passos para o meio da rua e ser atingido em cheio na cara pela água fragmentada que cai lá de cima. Seria uma novidade se a água caísse de baixo ... Seja como for, estou demasiado apático para tal, e deixo-me estar bem seguro debaixo do meu abrigo.
Lembro-me que há uns bons 15 anos passei nesta mesma rua - no meio da estrada - por volta das 16h, vindo de uma aula qualquer, e começou a desabar a maior tempestade de granizo que já vi até hoje. Mas vinha armado em triste, numa daquelas alturas em que, na adolescência, temos a mania que somos melancólicos e resolvemos dar uma de auto-castigadores, quando na verdade somos muito felizes e nem o sabemos. E como vinha armado em auto-castigador, resolvi não me abrigar do granizo, e até me dei ao luxo de abrandar o passo, apesar de qualquer um dos fragmentos que caiam ter o potencial de me abrir a cabeça, ou, como se diz na gíria, de causar um traumatismo craniano. Cheguei a casa com as orelhas avermelhadas e a arder, com o raspar das pedras de gelo que me pouparam a cabeça propriamente dita. Só me lembrei disto muito mais tarde, quando já estava convencido há muito tempo de que tinha uma fada madrinha que olhava por mim, e quando o fiz, tal recordação tão só se me afigurou como mais uma prova que apoia a sua existência.
Mas hoje não me apetece dar trabalho à minha fada madrinha.
O cheiro que emana dos caixotes do lixo empresta à noite um hálito adocicado de cascas de laranja, arrancadas do fruto há algumas horas. É interessante... os cheiros nunca são dados, apenas emprestados. Até o cheiro de alguém de quem gostamos muito só é nosso enquanto esse alguém não se vai embora - só enquando o sentimos. Depois, esse alguém vai-se embora, e o cheiro fica emprestado apenas durante algum tempo. Pode ficar mais uns dias na nossa roupa, ou duas ou três noites mais na nossa cama se não mudarmos os lençóis; mas vai desvanecendo devagarinho, vai-se transformando numa nuvenzinha cada vez mais fininha que entra pelo nosso nariz e se entranha nas profundezas do nosso cérebro como quem não quer a coisa, e ali fica, bem enquistado o cheirinho num qualquer centro nervoso de memória olfactiva, conseguindo até que finjamos que nos esqueçamos dele. E quando menos esperarmos, sentimos de novo esse perfume na rua, numa casa, nas roupas de alguém, nem que seja só uma miragem olfactiva ou uma alucinação, e eis que essa nuvenzinha enquistada rebenta com o nosso cérebro, inundando-nos de todas as saudades e sensações dolorosas que lhe vieram pegadas. Porque os cheiros também podem ter destas coisas: são pegajosos - como algodão doce - a tudo o que é memória relacionada, e são autênticas bombas relógio sem ponteiros nem dígitos. É como quando abrimos aquelas caixas de onde salta uma mola com um palhaço e faz BOOOINGGG! e mesmo estando fartos de saber o que vai acontecer, assustamo-nos sempre com uma vertigem na barriga e um suster de respiração. Pode até acontecer que essa bomba só rebente quando o relógio já nem tiver ponteiros nem dígitos, mas uns símbolos quaisquer que marquem o tempo no futuro, numa altura em que somos velhinhos e nem o nosso próprio cheiro é o mesmo, nem o da pessoa de que gostamos, que se deita todas as noites ao nosso lado desde o momento em que voltou após se ter ido embora daquela vez e apenas ter deixado a memória do seu cheiro.

Agora aparecem no meio da chuva e do hálito nocturno a cascas de laranja os homens do lixo.
Há duas noites estava parado no meio do trânsito, porque lá à frente estavam os homens do lixo a despejar aqueles contentores subterrâneos com um camião que tinha uma enorme grua. A tarefa demorou alguns minutos, tantos que rodei a chave e desliguei o motor. Na altura não chovia, e portanto os homens demoraram o tempo que quiseram; e eu estava acompanhado - havia alguém ao meu lado - mas ambos ficámos calados à espera que a fila de automóveis com os seus stops vermelhos, explosivos, se pusesse finalmente em movimento. Havia um silêncio muito intenso naquele carro, tão alto que quase não me deixava ouvir os guinchos da grua, lá à frente, a sacudir os contentores do lixo para dentro do camião. Desejei que a grua viesse e despejasse também a minha cabeça de todo o lixo que cá tem, e que já não cheira a laranja descascada há algumas horas. Apesar de acompanhado, acho que nunca na vida me senti tão a solo.

Mas hoje os homens do lixo vêm a correr por causa da chuva. Ouve-se uma travagem algo brusca que separa da estrada uma onda de partículas de água mesmo à minha frente, mas antes disso já os homens saltaram da parte de trás do camião e se precipitaram para os contentores do lixo. A rua é invadida por uma rave de luz laranja intermitente; e como a pressa é inimiga da perfeição, salta um saco - do Pingo Doce - cheio de lixo de um dos contentores, e vem a rebolar até mim até descruzar as suas asas e se abrir a meio metro dos meus pés, enquanto os homens assobiaram, as suas mãos se agarraram aos varões, e o camião já arrancou para esvaziar a vila do resto da sua podridão.
Vejo agora, no meio de uma poça de água no chão, um monte de cascas de laranja, duas embalagens de iogurte Yoplait, e aquilo que parecia ser um embrulho de pastelaria com dois ou três bolos bolorentos, entre outras coisas. Aquelas cascas de laranja podiam ter sido aproveitadas para fazer fruta cristalizada, para pôr num bolo rei. O Natal até está à porta...
E talvez alguma criança conseguisse construir um telefone artesanal com as embalagens de iogurte e com o cordel do embrulho.
Mas isto é a minha alma de eterno reparador de causas perdidas a falar. Na verdade, é apenas lixo.
Lixo que nem os homens do lixo quiseram.

4 comentários:

  1. Ainda não percebi muito bem porquê, mas acho que encontro sempre algo nas tuas histórias que reflecte a minha própria vivência mais ou menos presente. Também estava acordada às 2 e tal nessa noite, sem conseguir dormir "por causa da chuva". Não saí, mas olhei para a rua, onde a chuva caia, e equacionei essa possibilidade. Não me ocorre dizer mais nada a não ser: obrigada por partilhares os teus textos.
    Bjs,
    Cláudia

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  2. Também eu andava pela rua nessa noite. Curioso não ver visto ninguém, parece-me ter sido uma noite de fantasmas... Meticulosamente procurei um lugar para estacionar. A chuva não passava de gotas partidas em pequenas gotículas. Tentei com régua e esquadro colocar o carro perto de casa, mas temendo o mau humor de algum transeunte e após alguns minutos resignei-me ao facto de ter de ir deixar o carro relativamente longe.
    Como se o desligar do carro provocasse uma descarga eléctrica cósmica, de imediato uma imensa avalanche de gotas gordas, fartas e rápidas começa a cair, obrigando-me a pegar no meu enxuto guarda-chuva e espremê-lo pela porta do carro seguindo-me com manobras de contorcionismo. A passos rápidos e saltitantes como se a atravessar um rio, fui para o aconchego dos meus lençóis. Por momentos a vontade de me manter segura e enxuta sobrepôs-se a todos os abismos.

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  3. O tempo é uma das variáveis mais importantes de que depende o meu humor. As primeiras chuvas a sério deixam-me sempre muito estranho. Curiosamente, há dias, estive num sítio onde começou a nevar... também a sério... estava eu à espera de um comboio, a meio da madrugada. E passado algum tempo fui brincar para o meio de um campo branquinho a atirar neve a uns amigos. Julguei que a diversão de atirar neve era só nos filmes, mas aqueles 20 minutos foram provavelmente aqueles em que me ri mais nos últimos muitos meses.

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  4. Credo Joao... que depressao. Aqui nao devia chover as 2 da manha mas nevou as 8. E colocar la punta de la nariz afuera de casa es casi como una tortura. Oh homem, vem ca ter comigo e apreciaremos os dois as caracteristicas incomuns deste clima que me rege por ora.

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