31 de dezembro de 2006

O sistema isolado

"E enquanto fitava as ondas que se revolviam umas nas outras, sentiu nas mãos geladas os grãos de gravilha húmida de diferentes formas e tamanhos. Inspirou fundo aquele vendaval polvilhado de névoa marinha, e começou a construir um invólucro imaginário que combatesse as leis da termodinâmica mais proverbial: hermético como um surdo-mudo na escuridão; inviolável como um livro que em dia algum será aberto; silencioso como o espaço sideral.

Então, depositou lá mil dias que passaram. Fechou vigorosamente o frasco e chocalhou o conteúdo, rodando sobre si mesmo, fazendo de si mesmo o eixo das suas reflexões, centrifugando todas as histórias, sóis e luas. Deixou assentar o cascalho no fundo, e as emoções subiram para os lugares que lhes cabiam por direito próprio, formando um gradiente que ia do negro pastoso ao branco fluorescente gasoso.

Quis então retirar o pouco sobrenadante que brilhava intensamente, desenhando um ténue filme mesmo no topo de todas aquelas ideias; queria guardá-lo consigo. Mas logo percebeu que não conseguia abri-lo, porquanto não mais poderia ser violado depois de fechado. Num acesso de fúria, atirou o recipiente com toda a força contra as rochas; este embateu violentamente, rolando de volta até aos seus pés.

De repente, ficou muito cansado. Franziu o sobrolho e ficou quieto, de cócoras, de mãos no queixo e cotovelos nos joelhos por um longo momento. "É inútil. Tenho de aceitar o mau com o bom" - pensou.
Depois, levantou-se e colocou o frasco no bolso da grossa gabardina. Afastou-se daquele lugar.".
In "Os novos Fragmentos de memória(s)".

14 de dezembro de 2006

Noite


A brisa gélida perpassa a janela semicerrada. Está um frio seco lá fora e o meu corpo bramante reclama pelo aconchego do edredão. Para trás deixo longas horas de espera, corredores atolados, horas infindáveis em que me perco e nada faço, comboio, metro, cansaço.

Quando um dia completar o curso lembrar-me-ei destas manhãs heróicas de desprezo e tédio. Ainda que procure não colocar as mãos nos bolsos, sinto-me inútil e ignorada ao passar pelas portas dos quartos. Trata-se de uma espécie de passeio matinal, entremeado por uma ou outra ida à cafetaria. A Drª corre pelos corredores olhando para o chão. Dos seus contornos lânguidos, apenas se destacam os caracóis irregulares pendentes de uma plataforma viscosa e as pontas das botas que berram a cada passo frenético.
O curso de medicina (sim, aquele curso cuja admissão exige altíssimas classificações) é melismático – muita música, o mesmo discurso. Nada se move. Tudo permanece estático e silencioso, numa falsa harmonia e paz. Os estudantes perdem-se pelos corredores e os tutores, os mestres orientadores, deixam-nos passar. O saber, aquela virtude que exige desafios e encaminhamento, não chega a brotar nas nossas mentes tão “brilhantes”.

Volto à noite. A esta noite. Finalmente encontrei o conforto do lar. As luzes estão apagadas, permanecendo apenas o verde luminescente das constelações que desenhei no tecto do meu quarto. Tomara que fossem verdadeiras estrelas, estas que incessantemente me olham e nas quais deposito o meu olhar ébrio. Ouço poesia acompanhada pela música de Jorge Palma. São poemas de Abril, gritos revoltos de coragem sublimados pela melodia nostálgica de um músico, de uma voz que canta o canto dos poetas.
De repente, esta “apenas noite” apoderou-se de mim. Também eu estou nos versos e nas palavras que transbordam pelos meus olhos. Quem não se reencontra nas entrelinhas de Eugénio de Andrade, Ary dos Santos, Sophia, Torga. Eles estão aqui comigo, agora. Sinto a presença deles a meu lado e num tempo distante anseio pela mesma liberdade.

O ciclo eterno que sacraliza a nossa humilde condição de transeunte surge cada vez mais nítido. Independentemente daquilo que pautou a vida de cada ser, há na doença uma convergência inevitável. Hospitais, gente, confusão, dor. A qualidade dos cuidados médicos não deve de todo basear-se na maior ou menor dimensão humana do doente, nem tão pouco no grau de diferenciação intelectual. Contudo, esta equidade a que me refiro não deverá ser medida por defeito – quantos de nós não se sentiram já “presos” numa cama de hospital, resignados com os “estranhos” termos médicos e largados à sorte no tumulto da doença?
Neste jogo que procura respostas e palavras de esperança falta muitas vezes lugar para o ser. Não procuro encontrar culpados. Apenas alerto para a impaciência e intransigência impregnadas naqueles corredores e salas por onde diariamente caminho. A bata branca e o estetoscópio não superlativam a moral de ninguém. Deixemos de lado o terrível hábito de julgar quem quer que seja. Os doentes devem ser orientados e não tratados como crianças. A reprimenda não faz parte da medicina e o direito à informação é inalienável. Fica o apelo.

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Eugénio de Andrade

A poesia cessa com a música. Nos meus ouvidos ressoam ainda os sons do piano. A noite vai longa e o sono apodera-se de mim. Extinta a luminescência das estrelas de plástico, tudo se torna mais nítido. Procuro no silêncio da casa um lugar para o sono. As palavras misturam-se e deixam de fazer sentido. E eu “sem vocação para a morte” continuarei na senda do sonho de vir a exercer medicina.

30 de novembro de 2006

Esclarecimento sobre a ordem Natural das coisas

Nunca fui pessoa de acreditar em coincidências. Tenho aquela ideia que o que acontece acontece por alguma razão ou por razão alguma e não por ter de ser. Julgo pertencer ao grupo de pessoas que o que não explica atribui a factores aleatórios. Há uma certa probabilidade de levar com um vaso de uma frondosa Avenca na cabeça enquanto se desce a Avenida da Liberdade.

Penso eu que quem anda à chuva molha-se por que quer e não porque tem de ser. Eu penso tudo isto, e certo estou do que digo mas, que probabilidades nos metem em rota de colisão com certos acontecimentos?

Visualizo esta questão naquele jogo em que se larga uma bolita, género berlinde, por uma parede vertical abaixo, em que esta está cheia de pregos e na base tem balizas com prémio ou armadilha. A aposta que fazemos à partida é completamente cega, e as possibilidades são imensas mas mesmo assim temos uma fezada no prémio.

As nossas vidas são lançadas por uma parede vertical abaixo e vamos ressaltando nos pregos, por vezes com ricochetes violentos, que nos fazem subir ligeiramente a vertical parede, por vezes leves embalos que parecem propositados e pior: premeditados! Se por vezes exclamamos admirados com a pequenez do mundo, por outras somos levados a exclamar que fado é o nosso.

Será que das infinidades de ressaltos possíveis estão para mim destinados aqueles específicos para atingir a baliza pré destinada? Será que a probabilidade de atingir cada baliza é a mesma ou estará o jogo viciado sem que saibamos?

Se estes embalos e ricochetes são pré determinados, parecem ser muitas vezes bem curiosos mas vêm em última análise darem-me razão: somos nós que nos pré determinamos. O que anda à volta vem de volta!

26 de novembro de 2006

apontamento


A chuva corre nos vidros. Vêm reflexos de luzes, gemidos de uma multidão que se atropela, sirenes que em tons de azul desesperam, agonia que impera, sangue que exaspera em mim, aqui. Tudo lá fora tem vida que se esconde entre as fragas da solidão e eu, só, vivo a energia deste silêncio, da vibrante calma que o consente.
Tudo dorme a par do cansaço lúgubre dos tempos e de repente ouço passos de gente que se aproxima, maquinal como o correr dos dias, maciça como o cimento dos prédios que me cercam.
A noite vai longa e a chuva ressalta nos cristais das pedras. Vagueio pela escrita sem rumo à procura de um lugar mas nada encontro e esqueço quem sou. Os ossos, os músculos as articulações abandonam-me, voam pelo escuro da sala. Os vasos jorram sangue que se espraia ao vento, os nervos rastejam como vermes pelo chão. Eu renasço do pó de que era feita. Sinto a música que me ilumina e o som que me embala. Finalmente encontrei a vida sem que ela deixasse de existir em mim. Vem música serena e bela, abraça-me com todo o teu fulgor e leva-me nessa viajem louca.

7 de novembro de 2006

Fisiopatologia da solidão


O sol, amarelo todo o ano, mesmo no inverno; as gemas de ovo, amarelo vivo; as cores do vestuário, mesmo daquele que é lavado duas vezes por semana, sempre brilhantes e apelativas; os olhos de todos os amigos, sempre límpidos, de tons impossíveis de imitar com lápis de cera, guache, aguarela ou tinta de óleo…
As notas de cada música, vibrantes, guardadas no ouvido que, ávido, tudo capta, e interioriza; cada letra nos define, porque nos identificamos com ela, e porque nos transforma à medida que depois a exteriorizamos com os amigos.

As batalhas perdidas, as catástrofes, as desilusões… todas elas são combatidas de peito aberto, porque nada é definitivo ou eterno e há todo um futuro pela frente. Embora não o saibamos, as coisas que parecem insignificantes à luz da juventude são as que vão marcar para sempre.
Em cada dar de mão, em cada olhar trocado… em cada gargalhada em conjunto, há um aumento de pulsação e um ruborizar de face. Nada é eterno? Julga-se que os amigos o são! Nunca se pensa neles no futuro. Gosta-se deles, partilha-se a vida com eles, mas sempre no presente. São como são e gostam de nós. São quase como nós, mesmo sendo muito diferentes. Mas ouvem, avisam, aprendem, acompanham, ajudam, acompanham de novo, sempre, e preocupam-se. Aconselham; quando bem, porque é o que querem, quando mal, porque se enganam. São as melhores pessoas do mundo, insubstituíveis; chega-se a ter pena das outras pessoas, que não têm os amigos que nós temos. Os outros têm amigos interesseiros, egoístas, que não se podiam estar mais a borrifar. Os outros têm sempre grupos de amigos que, volta não volta, desaparecem e são substituídos por outros, novos, iguais, sem piada nenhuma, sem sal, burros, pouco interessantes, de personalidades pouco densas. Os nossos amigos é que são fixes. Escolhemo-los a eles, mas eles também nos escolheram a nós. Somos uns privilegiados. E ainda bem que temos muitos amigos!

Eram muitos. Mas vão desaparecendo, enquanto o tempo passa. Não aqueles que se vão embora para outras escolas; não os que morrem (esses, de certo modo, vão ser sempre amigos); não os que, em meia dúzia de meses que passam, atravessam a rua para não terem que nos encontrar. Não aquelas pessoas que aparecem e desaparecem fugazmente ao sabor da novidade e da necessidade de afecto. Os que desaparecem, realmente, são aqueles que continuam junto de nós, mas se vão modificando lentamente… vão acumulando diferenças, vão ganhando indiferença, e a preocupação que têm por nós e a importância que nos dão desvanece-se. Continuamos a gostar deles porque sempre estiveram mais ou menos ao pé de nós; mas, na verdade, eles já não nos lembram o tempo em que eramos mais novos. O que é assustador é que este é um processo irreversível, sucede a cada ano, imparável, e sem nos darmos conta. É uma doença insidiosa, de desfecho previsível, de prognóstico reservado.

Os velhos amigos lembram-me sempre o tempo em que os conheci, porque nunca mudou a relação que nos une. As faces vão ficando diferentes. As feições tornam-se mais angulosas, carregadas, mas a maneira como sorriem ou explodem em gargalhadas é sempre igual, sempre com piadas ou situações mil vezes contadas e recontadas. Esses velhos amigos sabem quando estou a dizer uma coisa que não é verdade; e sabem que, se o digo, não é para lhes mentir, e sim porque me estou a tentar convencer de alguma coisa que não corresponde à realidade. No entanto, dizem-no como se os estivesse a fazer de parvos: “Sabes há quantos anos te conheço? Pensas que eu não te conheço?”. E eu sorrio, embaraçado, porque eles têm quase sempre razão.
E se há algo de preocupante, algum desvio no seu comportamento, alguma diferença de actuação, imediatamente nos insurgimos. Indignamo-nos, porque aquele não é o nosso amigo, e portanto precisa de levar na cabeça.
É muito raro valorizarmos verbalmente os nossos verdadeiros amigos, porque os temos como certos. E essa previsibilidade acaba por ser a melhor maneira de os valorizarmos. Não é preciso um esforço para saber deles ou para os acompanhar, porque eles fazem parte das nossas vidas, ocupadas, quotidianas, mesmo sem nos darmos conta.

Quem desaparece, esquece; mesmo que não desapareça fisicamente da nossa vista. É o preço a pagar. Mas é a forma que temos de escolher quem queremos que nos rodeie, e quem preferimos que não faça parte das nossas vidas. E é também a forma que temos de ter a certeza de que quem permaneceu, ficou porque não poderia ter sido de outra maneira. As verdadeiras relações são como a água ou como a electricidade. Escolhem sempre o melhor caminho, o único caminho.

O crivo vai ficando inacreditavelmente largo. São tão poucas as pessoas que sobrevivem à selecção dos anos! Ainda sou novo e isto já me assusta. Já li vários emails daqueles que as pessoas mandam sucessivamente umas às outras, sobre como a amizade deve ser cultivada: “ligue ao seu amigo hoje mesmo e diga-lhe que gosta dele e mostre-lhe como ele é importante!”. Estive a pensar, e não concordo nada. Para quê fazê-lo, se esse amigo está sempre aqui ao lado? Até ia gozar comigo se o fizesse.

As circunstâncias são madrastas, e perdem-se muitas pessoas de quem gostamos, boas pessoas, mas cujas vidas as levam para longe de nós (obrigado, Mafalda Veiga, benza-te Deus). Penso nisso muitas vezes, e eu próprio estou a ser levado para longe de várias pessoas por forças que não compreendo bem. São forças pouco intensas, muitas vezes imperceptíveis; mas são muitas, e a união faz a força resultante! O balanço é esmagador. A velocidade de afastamento começa por ser pequena; mas uma pequena aceleração ao longo do tempo suficiente, produz por fim uma velocidade enorme, e uma distância percorrida proporcionalmente grande. E as ligações são inversamente proporcionais ao quadrado da distância entre elas.

Claro que continuo a gostar dessas pessoas, e quando me lembro delas ainda sorrio, mas a pouca convivência e a distância (relativa ou absoluta) tende a adicionar diferenças de gostos, de carácter e até de valores. A barreira da ausência permite que se acumulem essas diferenças nas interfaces relacionais que antes encaixavam na perfeição.
As nossas vidas caem na quiescência…

Acredito que os melhores amigos que tenho, já os fiz. É um pouco como com a reserva óssea de cálcio. Bebe muito leite e faz exercício enquanto és jovem. Economiza, acumula. Vou ficar mais velho, e as pessoas que conhecer não vão estar tão disponíveis para ser amigas como estavam antigamente. As folhas em branco das vidas das pessoas acabam-se… o futuro produtivo esgota-se. E as relações que fizermos não vão ser mais do que palavras escritas nos espaços entre frases já escritas por outras pessoas; serão palavras gravadas por cima de papel que já sofreu censura de borracha e está encharcado em desconfiança, ou que já está rasgado. Não vai haver praticamente espaço para o completamente novo e surpreendente. É cada vez mais difícil ser marcante para alguém, e isso entristece-me muito, embora o compreenda porque sinto a mesmíssima dificuldade em me deixar marcar. É por isso que admiro e respeito as pessoas mais novas do que eu: exibem com alegria e espontaneidade a capacidade de se deixarem marcar.
*

As gemas de ovo parecem-me baças. O sol parece-me mais branco e mais frio do que há uns anos. As minhas t-shirts nunca têm cores tão intensas como gostaria que tivessem, mesmo acabadas de sair da loja. Os meus olhos parecem-me mais empurrados para dentro da cabeça, e o branco já não faz tanto contraste com a cor da íris.

E a música de hoje parece-me toda igual…

16 de outubro de 2006

Isto só visto...

"Menina de 14 anos interrogada por ameaçar Bush na Internet

Uma adolescente de 14 anos foi interrogada pelos serviços secretos dos EUA depois de ter publicado algumas ameaças a George W. Bush num site para jovens na Internet.

Dois agentes federais interromperam uma aula de Biologia na escola McClatchy de Sacramento, na Califórnia, para levarem Julia Wilson para um interrogatório que durou 15 minutos.
«Disseram-me apenas que era um crime federal e eu comecei a chorar porque pensava realmente que iam prender-me», explicou a adolescente.
Durante algum tempo, Julia protestou contra a guerra e contra a política de Bush num fórum virtual. A página continha caricaturas do presidente dos EUA e mensagens ameaçadoras, o que converteu a menina em suspeita.
Depois do susto, os pais consideram que os serviços secretos foram precipitados, principalmente por terem interrogado a sua filha sem o seu consentimento."


in Diário Digital.


Sr. Presidente dos E.U.A., é impossível alguém chegar ao seu grau imbecilidade. Parabéns. Atingiu um novo patamar, simbólico por certo, da estupidez. O que é que uma rapariga de 14 anos ia fazer? Obrigá-lo a engolir um tampão sanguinolento?! Torturá-lo com um vibrador nas orelhas?! Ah...não. Deve ser uma rapariga com um "cinturão taliban". Só pode. Espera...mas ela desatou a chorar? Aquela malta da CIA deve ter um impressionante hálito a cebola, porque as meninas-ameaçadoras-com-bombas-na-cintura não se deixam torturar! Não senhor! Elas resistem a todos os tipos de tortura...incluindo o programa matinal da TVI. Não haverá problema em gastar recursos para esta exaustiva investigação! Mais um passo dado na luta contra o terrorismo.
Enfim, comentem esta notícia ridícula. Sei que alguns dirão "Ei...mais do mesmo?!".

15 de outubro de 2006

I might be wrong VII - Mal dispostinho!


Acordei assarapantado, como sempre. Vesti duas peças de roupa caídas no chão, peguei nas coisas para as aulas - chave de casa, carteira, telemóvel quase sem bateria - meti um bocado de pão seco à boca e saí de casa a correr para apanhar o autocarro. Ainda pensei em descrever um pouco mais aqueles momentos em que saí da cama, e talvez inventar um bocado, mas decidi não o fazer por dois motivos: primeiro, não corresponderia à verdade. As minhas manhãs antes de sair de casa são todas iguais, e não são muito mais do que já contei; segundo, porque o Nuno Markl já me roubou a ideia, e com ele não se brinca.
Na verdade, o Markl faz-me lembrar manteiga de amendoím. Boa, muito boa ao início, mas se a comemos directamente do frasco e à colherada, vai chegar uma certa altura em que já não conseguimos sequer salivar; por outras palavras, já estou mais do que enjoado da voz do gajo. Na sic comédia, é ele quem faz aqueles interlúdios entre os programas (veja isto, veja aquilo, etc...), e sinceramente já irrita um bocado. Já sei que muita gente me vai partir a cabeça por estar a dizer isto: "ai, coitado, ele tem muita piada e aquela barba e óculos ficam-lhe a matar! E a maneira como ele acaba as frases, com aquela entoação?"...

Bem, saí de casa e afinal não estava atrasado. Na verdade até estava mais adiantado do que seria agradável tomar conhecimento. Ou seja, fiquei na paragem 20 minutos, o que é um dado novo, visto que eu tenho sempre que correr atrás do autocarro, ultrapassá-lo uns bons 100 metros até à paragem seguinte, meter-me à frente dele para que o condutor se decida a parar. Mas não desta vez. Desta vez antecipei-me, não me escapa.

As nuvens estavam algo negras quando saí de casa, mas como não houve tempo, não trouxe guarda-chuva. Bom, em abono da verdade, eu nunca levo guarda-chuva, detesto guarda-chuvas e tenho raiva de quem usa guarda-chuvas. Aquela ideia do "homem prevenido vale por dois" dá-me a volta ao estômago e aos intestinos, pá, não sei explicar mas dá. No nosso país os índices pluviométricos são dos mais baixos da europa. Toda a gente come chouriços de trás-os-montes, fuma e bebe que nem cavalo, tem sexo o mais desprotegido possível, mete-se em solários provenientes de Chernobyl, mas ei! O que é que pode correr mal? Eu trouxe um guarda-chuva! Homem prevenido vale por dois! Pelo menos não me chove em cima e por isso vou viver até aos 100 anos. Ainda por cima aquela merda num autocarro pode ser uma arma de destruição maciça. Mas nem vamos por aí, senão tinha de falar nas gajas que usam sapatos com aqueles bicos à frente, que me fazem lembrar aqueles postes nas proas dos navios de antigamente... e que têm contratos com clínicas de ortopedistas para os usar - a incidência de traumatismos localizados aos tendões de Aquiles nos transportes públicos deve ter aumentado dramaticamente quando alguém teve a infeliz ideia de idealizar moda tão ridícula. Depois dizem que têm joanetes. Eu por mim tanto faz, não sou eu que lhes vou pôr algodõezinhos com antifungicos nos espaços entre os dedos.

Voltado ao guarda chuva. Infelizmente, a senhora que estava ao meu lado à espera de um autocarro que eu presumi ser o mesmo que eu (visto que passaram autocarros com os números 1, 22, 43, 12, 125, do 300 até ao 750 inclusivé, e ela não se foi embora) não era da mesma opinião, e envergava um guarda-chuva que fazia inveja à pala do pavilhão de Portugal, do Siza Vieira. Para piorar um pouco as coisas, ela achava que não estava suficientemente protegida, de maneira que ocupou o único lugar que restava por baixo da cobertura da paragem.
Quando as equipas da protecção civil já estavam nas ruas a salvar cãezinhos e ovelhas com helicópteros, e as correntes selvagens formadas pelo dilúvio arrastavam cofres de bancos, pianos, jipes, e eu já estava assim a modos que um pouco molhado, a tal senhora vira-se para a outra ao lado e diz: "Parece-me que hoje é capaz de chover!". Mas eu não fiquei muito chateado com as palavras da doce senhora.
Entretanto o autocarro chegou e eu corri logo para a entrada, antecipando-me à Liedson. "Ah, pois, já não há cavalheiros!", ao que eu respondi "Oh minha cabra de merda, estou aqui todo molhado e ia estar à espera que entrasses e pagasses o bilhete com moedas de 5 cêntimos, e até o homem contar as moedas todas já eu tinha encolhido com tanta chuva!? Achas mesmo?".
Claro que não respondi isso à senhora. Limitei-me a ficar calado e a deslizar para o meio do autocarro, pois que já não havia lugares sentados. Mas para a senhora, claro que se levantou logo um senhor já muito idoso, com um andarilho, grávido, com um puto ao colo e ceguinho! - "Minha senhora, sente-se, sente-se!", "Oh, não, então? Deixe-se estar, deixe-se estar", enquanto se ia sentando "muito obrigado senhor, dê cá o andarilho que eu guardo-lho, que cavalheiro. E que criança adorável que aí tem...!".
Pouco depois, enquanto eu utilizada o molhado da chuva para pentear o cabelo, e fazia o ritmo de uma música com o barulhinho chloc!chloc! que saia dos meus ténis alagados, essa senhora virava-se para a do lado e dizia "não sei porque é que se faz tanto trânsito de manhã! Eu trabalhei a vida toda, sempre fui de transportes para lisboa, e sempre me apresentei com fatiota impecável! Impecável! Ninguém diria que eu ia de transportes! Ia sempre mais arranjada que a patroa!".

Um bocado depois, deixei de ouvir a bondosa senhora, visto que a poluição olfactiva conseguiu superar a auditiva. O conjunto de diferentes cheiros e aromas dentro daquele autocarro, com gente que ia pegar no trabalho às 9 da manhã, era claramente dominado por 3 tipos de tendências. Havia as senhoras de idade, que não sei o que é que estavam ali a fazer àquela hora todos os dias - não estão reformadas? Não têm napronzinhos para fazer? - que contribuiam com o cheiro exagerado a sabonete e a laca para o cabelo, tão clássicos e que decerto povoam a memória da juventude de muitos. Havia também as mulheres dinâmicas com fatiotas mais formais, mas em cujos pescoços e atrás das orelhas (e no decote, porque mulher prevenida vale por duas, e aqui duas é o número que se repete), se reparássemos bem, tinham lá sprays borrifadores engenhosamente ligados por um circuito a um depósito de meio litro de perfume de uma marca qualquer da moda, comprado numa barraquinha de uma feira qualquer da moda;
provavelmente o circuito completava-se com uma ligação via ondas de baixa frequência aos seus telemóveis, de maneira que quando passassem por alguém, ou quando estivessem numa multidão (como era o caso) poderiam sempre sobressair, não fosse o rapazinho giro que elas tinham catrapiscado na outra ponta do autocarro ser impedido de reparar nelas. A última tendência era encarnada pelos homens com aqueles desodorizantes terríveis. Eu confesso, não uso desodorizante. Se calhar é por isso que ninguém se senta ao meu lado nos transportes públicos: nem que estejam a abarrotar há de haver sempre uma cadeira vazia - a que está ao meu lado. Aposto que nem o homenzinho de andarilho se sentaria lá. Mas pelo menos não uso desodorizante terrível. Terrível, meus amigos... Deus ma pardoe! Antes com água-rás.

Bem, lá chegou o autocarro a lisboa. Apanhei o metro, e comecei a reparar nos cartazes das estações. O primeiro que vi foi sobre a música no coração, o novo musical do La Féria. No Destak, lá vinha ele na capa todo contente com aquela pose só ao alcance dos grandes génios encenadores: "o meu melhor musical de sempre!". Aposto que sim. Com a Lúcia Moniz e a Anabela lá a fazer de preceptora dos putos, deve ser de rebolar a rir. O que é que pode correr mal? Ai, La Feria, La Feria, amigalhaço... deves estar pouco rico à pala do pessoal que tem a mania que é culto e vai ao teatro ver as tuas peças de revista. E dos subsídios do ministério da cultura, claro está! É como tirar um doce a uma criança, e ele tem umas 500 para este musical! Eu quero ver é quando se acabarem os clássicos! Porque Lúcias Moniz e Anabelas... dá-se um pontapé numa pedra da calçada e saem lá de baixo 500 por ano. Eu tenho alguma pena é dos miúdos. Acho que não há pior razão para o abandono escolar em tenra idade do que participar num musical do La Feria.

Pouco depois, numa outra estação, lá estavam meia dúzia de cartazes publicitários a falar no Wall Street Institute. O slogan realmente é uma pérola do marketing: "Learn English. Live Life. Desde 79€ por mês". Pronto, agora que já fiz publicidade, sinto-me no direito de dizer mal: epá, que slogan tão fateloso! Está-se mesmo a ver que foi escrito por um gajo a fingir que era inglês ou americano ou coisa assim do estilo, com a mania que era criativo de marketing só porque faz rir as tias nos almoços de domingo lá de casa, e que é primo ou sobrinho ou afilhado de um gajo qualquer da empresa. Primeiro que tudo, analisemos a sintaxe: Aprenda inglês. Learn English. Não consigo imaginar um americano ou um inglês a dizer "learn english"! Assim de repente não me estou a lembrar de como escreveria um inglês uma coisa assim do género, mas ninguém me convence de que foi um gajo que pegou na frase "Aprenda inglês" e a traduziu à letra. Parece aqueles panfletos dos parques de campismo ou então os restaurantes das zonas turísticas, com um inglês muito manhoso! "Drink Tea!", "Eat Chocolat!"...
Em segundo lugar, revejamos o conteúdo: Aprenda inglês... viva a vida. Pelo amor de deus, viva a vida? Epá, o pessoal tem transportes públicos da merda, sofre com os impostos, os internamentos hospitalares agora vão passar a custar 5€ por dia (não vamos por aí, senão não me calava...), mas se tivermos umas aulinhas de inglês, ah pronto, assim 'tá bem! Já vamos poder ser felizes e cosmopolitas e dizer aos fins de semana coisas como "carbon and sardines!"
Isto se sobrar dinheiro para o carbon e para as sardines. Aposto que me vão ensinar a dizer lápis (pencil), janela (window), mesa (table), cadeira (chair), e já me estou a imaginar a gritar entusiasticamente em coro, com os meus coleguinhas pouco letrados: WIN-DOW! TA-BLE! E pronto, estaremos prontos a enfrentar o mundo selvagem e a viver a vida como deve ser. Tudo graças ao Wall Street Institute.

Mas no metro eu via montes de gente agarrada ao telemóvel e a falar. De início pensei: que gente tão estúpida, é do vício, estão tão habituados a tagarelar ao telemóvel que agora até já ensaiam, uma vez que aqui no metro (sim! pelo menos aqui!) não há rede. Puro engano. O último santuário, o último triângulo das bermudas, o último coito (não é esse, seus malandros! é o das escondidas ou da apanhada, ou lá o que era! Não me digam que não se lembram!) das ondas electromagnéticas fora profanado. Um gajo agora não se pode encostar à janela do metro sem que haja uma gaja qualquer com uma boca de onde só sai merda aos jorros... convencida de que a
sua conversa é, mais do que digna, indispensável aos restantes passageiros do metro inteiro. Aposto que as pessoas que vão a atravessar ruas nas passadeiras, uns quantos metros de betão armado acima, conseguem ouvir estas gajas. E são muitas... e multiplicam-se...
Bem, pelo menos já há alguma alternativa ao Destak e ao Metro. Mas é mais do mesmo. O metropolitano é um veículo que transporta, para além de pessoas, muito, muito lixo. Não que os conjuntos "lixo" e "pessoas" sejam mutuamente exclusivos! Nada disso. Mas estes jornais atacam as pessoas no período em que elas são mais vulneráveis, e acho que não estou a ser demasiadamente delirante se pensar numa teoria da conspiração do tipo "ah e tal, ELES sabem
que de manhã estamos a dormir, 'bora lá dar jornais deformadores da opinião pública". E depois vêm pérolas como a entrevista do La Feria, os signos mais parolos do mundo, ou uma que li já não sei bem em que contexto, mas que jurava a pés juntos que o triptofano é uma proteína muito consumida. Sim, porque para estas pessoas um tijolo é uma casa. Uma andorinha é uma primavera. Um bibi é uma Bélgica.

Para finalizar a minha manhã (porque se chega facilmente depois do meio dia às aulas se se for nos transportes públicos certos, na manhã de chuva certa), antes de sair do metro ainda surpreendi uma conversa entre dois gajos, todos fatinho Armoni (Armani não é para todos...) e malinha de executivo, a falar da microeconomia. Curiosamente, ambos tinham aquela carinha de advogado fuínha, sabem? Assim de cabelo que nem é curto nem é comprido o suficiente para andar com um rabo de cavalo. Assim tipo... aquele gajo que defende os filhos da puta todos deste país, benza-o deus! Estoira-me a cabeça, este menino! Mais facilmente via a Fátima Felgueiras a defendê-lo a ele em tribunal do que o contrário. Essa bela senhora que eu acho que devia ser a procuradora geral da república.
E fez-me lembrar, obviamente, esse grande comentador, Nuno Rogeiro. E a conversa metia coisas como "ah e tal o que falta é o poder de compra, o poder de compra para aqui, o poder de compra para ali, e as taxas de juro sabes como é, qualquer dia já nem dá para dar entrada para meia dúzia de ovos, nem às PRESTÁÇÕES, porque as PRESTÁÇÕES estão muito altas, e as exportações bla bla" - eu sinto-me obrigado a lembrar que a palavra "prestações" não leva acento, e que detesto a expressão "poder de compra". Detesto. Acho que é uma palavra muito usada por quem não percebe nadinha de economia, nadica de nada. E é sempre usada por quem não tem dinheiro. Mas não por todas as pessoas que não têm dinheiro, é só por um subgrupo de 80% dessas todas - aquele constituído pelas pessoas que dizem mal dos ricos apenas e só porque não são elas a ter "poder de compra". Mas depois adoram ir para casa e ver novelas do tipo "Os ricos também choram". Se a inveja matasse não havia efeito de estufa! Deus ma pardoe...
Vou é a minha vidinha, que alguns de nós têm de trabalhar...

13 de outubro de 2006

Sem título *



* Este foi um texto pedido pelo (in)excelso professor de oncologia. Dado que o s' TÔR nem sequer vai lê-lo e como não gosto de trabalhar para as paredes (já segurar nelas é outra coisa), deixo este post para quem quiser ler :)

A escolha de um caso clínico particularmente marcante reveste-se sempre de alguma dificuldade, sobretudo se estivermos a pensar em doenças oncológicas. A doença, em sentido lato, é composta essencialmente por duas dimensões – a física, que contempla os mecanismos fisiopatológicos e respectivas alterações orgânicas; a humana, que diz respeito à influência psicossocial exercida no doente e nas pessoas que o rodeiam. Ainda que ambas se complementem e sejam, diria mesmo, indissociáveis, a vertente humana é, em meu entender, a que maior carga emotiva confere a uma história clínica. Desta forma, deixarei os mecanismos de doença um pouco à revelia deste texto.
Na condição de jovem estudante de medicina, ávida de conhecimento, doentes e doenças, esqueço muitas vezes que diante de mim não existem apenas músculos, ossos, órgãos e vasos. Se assim fosse, bastariam meros rudimentos de anatomia, fisiologia e clínica para envergar uma bata branca e um estetoscópio. Ser médico está para além do saber científico que de forma imberbe teimo em colocar num plano superior.
Durante o estágio prático de hematologia (4º ano), chegou à consulta uma jovem, S.M., acompanhada pelo pai. Ambos traziam um brilho no olhar e a euforia de quem acabara de receber a informação da existência de um dador compatível de medula óssea.
S.M. era uma doente de 27 anos com leucemia mielóide aguda (LMA) e com indicação para transplante de medula óssea. Tinha sido saudável até ao despoletar da doença. Acabara a licenciatura e preparava-se para fazer uma pós-graduação. Contudo, de forma súbita, o seu percurso direccionou-se para o IPO e para a luta que diariamente viria a travar. De repente, todos os projectos deixaram de fazer sentido, a vida era uma causa perdida.
Na fase inicial do tratamento sentia-se vencida e mal conseguia reagir àquela doença que, de forma insolente, invadia o seu corpo. Perguntava frequentemente a si própria a razão e o porquê de estar naquela situação, sentindo-se injustiçada e revoltando-se contra os entes mais próximos.
Durante o internamento e tratamento, o contacto com outros doentes, por vezes até mais jovens do que ela, foi preponderante para a sua mudança de atitude, fazendo da esperança uma fonte de força e determinação para combater aquele estado de saúde que a debilitava cada vez mais. Cada biopsia medular passou a ser encarada como apenas mais uma e aquilo que inicialmente parecia impossível, tornava-se realidade. Dedicou-se aos estudos, conseguindo completar a pós-graduação – autêntica prova de motivação, esforço, empenho e vontade de viver. Dos episódios de internamento destaca-se, pela sua importância clínica e prognóstica, o desenvolvimento de infecção respiratória baixa por Aspergillus sp. com pneumectomia subsequente.
No dia da consulta (anteriormente referida), depois de tanta incerteza e angústia, S.M. vislumbrava uma solução para o seu problema. Sentia que de alguma forma poderia voltar a nascer e recuperar o tempo que a doença furtara. Tanto ela como o pai e o resto da família, cujo incessante apoio em muito contribuiu para a forma activa com que passou a encarar a doença, depositavam grandes esperanças, senão todas, no transplante. Não obstante a importância de tal procedimento, as notícias da médica assistente viriam a frenar aquela alegria. Antes de mais era preciso fazer ainda alguns testes de compatibilidade, embora tudo indicasse que o dador seria aquele, e era preciso cuidar da infecção fúngica, dado que a intensificação da imunossupressão devida ao transplante poderia agravar ainda mais aquela infecção. Vistos os riscos e os benefícios, era quase certo que S.M. iria ser submetida a transplante contudo, as hipóteses de sucesso rondavam apenas os 30%.
Enquanto assistia à consulta e à medida que a euforia inicial da doente ia esmorecendo, fui forçada a conter as lágrimas ou qualquer outra manifestação de tristeza. Nunca dantes tinha sido tão difícil sorrir para alguém, numa atitude apaziguadora de dádiva e esperança. Procurei ser forte e utilizar os tão aclamados mecanismos de defesa. Pela primeira vez senti que diante de mim estava um ser, cuja confiança quebrava os limites da própria evidência médica. S.M. considerava aquela fase da sua vida um interlúdio – o futuro seria ainda melhor do que o passado.
Acabada a consulta de S.M., outros doentes e outras doenças chegaram até mim de forma insidiosa e ténue. Naquele dia parecia que mesmo que me acontecesse algo de muito grave, nada poderia ser pior do que a situação de incerteza que S.M. e a sua família enfrentavam.
Ao final da manhã, a médica assistente fez uma espécie de visita guiada ao serviço. Foi então que vi de novo S.M., durante uma sessão de quimioterapia. Tinha tirado a cabeleira postiça que levara para a consulta e podiam então observar-se várias equimoses no seu corpo. Se a identidade de uma pessoa fosse determinada exclusivamente pelo aspecto exterior, diria que quem ali se encontrava não era a S.M. que aparecera uma hora antes na consulta. Apenas o sorriso sofrido e humilde se mantinha, não ousando sequer quebrar a esperança que nela germinava e fortalecia diariamente. De mão dada com o pai, que guardava para si o medo da incerteza, transmitia a confiança e coragem plenas dos que já experimentaram a dor e que, conhecendo a efemeridade da vida, empreendem toda a sua força na luta contra a doença.

Quando passei os portões do hospital, o sol ainda brilhava e o céu azul era convidativo. Decidi caminhar um pouco para espairecer, contudo, aquele quadro permanecia nos meus pensamentos. Os sinos certamente dobravam por mim, não me referindo à morte mas sim ao momento que marcou o meu despertar para a perspectiva humana do doente, tão discutida nas cadeiras da faculdade. Os mecanismos de defesa não estão em nós a priori, devendo evoluir a partir de um conjunto de experiências como esta. É impreterível perceber a vida em toda a sua essência e escutar aquilo que razão muitas vezes procura esconder.


16 de setembro de 2006

redescobrir


Caminho sobre a orla irregular do passeio tentando encontrar um ponto de equilíbrio. Estou só com os pensamentos que acompanham o corpo e a mochila que carrego. Não sei bem para onde vou, muito embora conheça perfeitamente o caminho que percorro. Olho em frente e vislumbro um cruzeiro que brama a sua partida da doca entrecortado pelo padrão dos descobrimentos, hoje dotado da imponente beleza de um primeiro encontro. Nunca senti tal devoção.

À proa, o infante lidera os fervorosos rostos de uma nação que um dia ousou destronar Adamastor. O sal, as lágrimas legaram uma das mais prolíficas passagens da nossa história. Mas tudo vale a pena, não só pelo tudo mas também pela pena, sem a qual a premente vontade de superação sucumbiria na mais grotesca das virtudes.

Mesmo que não tenhamos consciência, o valor atribuído à causa depende em parte do grau de impossibilidade de concretização e o esforço e sacrifício pessoais são indissociáveis da felicidade. Contudo, há dias em que preciso apenas de simples momentos como este, aqui e agora. O lânguido passar do vento sobre a face, adequa-se à minha atitude de renegação face a qualquer assunto mundano.

Volto a mim e ao mar, calmo e suave espraiando-se a meu lado. Espectral, caminho contra o sol, cruzo pessoas, vozes, esplanadas, pescadores de rio que comentam as marés e os pormenores técnicos dos quais resulta a escassez da pescaria. O silêncio permite-me alcançar o som da ponte, que brilha ao raiar último do pôr-do-sol e sombreia o Tejo, já matizado por um cacilheiro laranja e branco. Presencio em mim uma certa sensação de alívio e bem-estar. Se pudesse, continuaria o meu percurso infinitamente, deixando para trás a poeira de terra batida ou somente as marcas no solo de uma qualquer terra inóspita.

O desejo de contactar com o desconhecido impele os meus sentidos. A necessidade de partir rumo a mundos tão diferentes daquele em que vivemos freme dentro de mim. Preciso sair e conhecer a outra versão do mundo e da vida, na tentativa de fazer um update de conhecimentos que só a vivência presencial permite. Pode ser que um dia possa concretizar esse sonho. Por enquanto são as luzes das “docas” que iluminam o limiar da tarde. É fim-de-semana adivinhando-se por certo uma noite de folia por estas bandas.

Estou prestes a chegar ao carro. É preciso voltar à realidade e ganhar fôlego para conduzir até casa. O dia foi demasiadamente perfeito para tolerar o trânsito e a confusão característicos das horas de ponta. Homens e mulheres apressam-se e entre tropelias várias lá encontram um espaço na fila ao lado. Muitos regozijam-se pelas suas façanhas em estrada, outros nem sequer dão conta dos seus hábitos, comportando-se como máquinas programadas para a rotina do dia-a-dia, acabando por não usufruir dos frutos do seu trabalho. É verdade que o pão não nasce por geração espontânea contudo, parar um pouco e sentir que pelo menos há vida em nós não paga imposto.

Hoje redescobri que a vida deve ser um elo de fugas e que a evasão, por mais responsabilidades e prazos estudantis ou laborais que tenhamos, é a forma mais eficaz de recuperar a força e retomar o percurso que nos cabe com maior perseverança.

Ganho coragem, parto.

10 de setembro de 2006

Parábola

Voltava do café, segurando um cigarro entre os dedos, fumava-o pacificamente: observava o fumo a ser abraçado pela neblina. A humidade corria de forma galopante por entre as árvores, enquanto a luz nascente de um solitário poste de iluminação contava as gotículas que lá se depositavam e esvaneciam. Luz atrevida que mergulhava pela duna onde me sentei a admirar o mar, que apenas me sorria com uma espuma ténue e quase que fluorescente. Tentava embalar-me com o seu som, qual ninfa que cantara para Ulisses. Mergulho os dedos em tenros grãos de areia – fria e pálida como cal – como se raízes fossem. Reflicto. Sei que vou voltar para lá, um dia destes em que a Natureza decidir que sou o menos apto. Todos perdemos o nosso lugar. Renasceremos?
Não sei. A ideia de ser um grão de areia que está enterrado há muito e que, subitamente, é trazido novamente à superfície é algo apelativo para muitas pessoas e crentes nessa matéria. E se formos uma elipse com um foco fixo e outro no infinito? Afinal de contas, se nascemos e nos podemos imortalizar pelas nossas múltiplas acções, não podemos fechar a elipse. O Mundo, a Natureza, está toda equilibrada numa parábola.
Sou interrompido. Resolvo não atender. A Natureza abraça-me: a maresia toca-me na cara enquanto a cheiro, a espuma fala comigo enquanto enrola na areia. Sussurra-me no ouvido um terno “és meu”. O cigarro depressa acabou. Desenraízo-me, atravesso a bruma e o vento traz-me recordações gotejantes. As minhas passadas, pesadas, deixam cicatrizes que o mar rapidamente cura. Subo em direcção ao topo da duna e só o vento sara essas pegadas profanas que ousaram pisar tão sagrado solo. Quartzo, feldspato e mica acomodam os meus pés enquanto sou iluminado a cada vez que um carro passa. Passo pela rua estreita do costume. Não há um único fotão mais atrevido que os da Lua, a delinear-me. Estava cheia, ela. Sim, tu que praticas o culto da gula durante uns dias dos teus 28 de esplendor, à custa do Sol.
Meto a chave na porta de casa e rodo-a; a porta de madeira maciça range de dor. Os últimos Invernos haviam sido rigorosos. Despejo a tralha toda que tinha nos bolsos em cima da mesa e abro uma garrafa de Whisky. Encho o copo, como de costume, faço mergulhar duas pedras de gelo naquele tentador destilado de 1976. Sorvo cada golo ardente, esticado no sofá da sala, olhando para o tecto enquanto as pedras descaradamente beijam o copo. A Lua espreita pela janela. Quando chego ao quarto vejo que tinha tacteado tudo. Deito-me com ela aos meus pés, olho para ela uma última vez e, ao som de Tool, digo: “serei tua, mas não hoje…não hoje”.

Tool – Parabola

We barely remember
Who or what came before
This precious moment,
We are choosing to be here,
Right now.
Hold on,
Stay inside...
This holy reality,
this holy experience.
Choosing to be here in...
This body.
This body holding me.
Be my reminder here that I am not alone in
This body.
This body holding me.
Feeling eternal, all this pain is an illusion.
Alive
This holy reality,
In this holy experience.
Choosing to be here in...
This body.
This body holding me.
Be my reminder here that I am not alone in
This body.
This body holding me.
Feeling eternal all this pain is an illusion...
Of what it means to be alive
Swirling round with this familiar parable.
Spinning, weaving round each new experience.
Recognize this as a holy gift and celebrate this chance to be
Alive and breathing
Chance to be
Alive and breathing.
This body holding me reminds me of my own mortality.
Embrace this moment.
Remember: we are eternal, all this pain is an illusion.

31 de agosto de 2006

Dás-me um beijo?


... e ao voltar de não sabemos onde, sentou-se à espera do eléctrico num daqueles separadores de metal que estão nos passeios para tentar evitar que as pessoas atravessem as ruas em determinados pontos. Tinha anoitecido sem se dar por isso, mas o vento que soprava em direcção ao rio continuava quente, ainda de Verão, embora Setembro se aproximasse pé ante pé para que não o ouvissemos chegar. Um ou outro casalinho de estrangeiros deambula em passos inseguros, empunhando mapas da cidade, guias de transportes, dicionários para turistas.
Do outro lado da rua, um quiosque aproveita ainda para tentar vender jornais moribundos, feitos de notícias que nunca tiveram vida, apesar de inventadas por mentes tão desesperadas por furos jornalísticos como cozinhadas pelo calor que em todo o lado penetra. É a fruta da época - embora se saiba que, cada vez mais, a silly season se estende pelas quatro estações. Mas Johannes, que veio não sabemos de onde, está alheio a tudo isto. Limita-se a estar. Espreguiça-se como um gato e quase cai do poleiro para a estrada que está por trás, embebida na velocidade de alguns carros que passam àquela hora sem respeitar os semáforos, mas nem o susto o desperta do torpor. Johannes vem bêbado, mas não bêbado de cerveja ou de um vinho a martelo qualquer: os seus pulmões estão cheios de suspiros; a sua pele vem barrada de carícias; os seus músculos descontraídos de satisfação. Johannes tinha certamente estado com alguém muito especial.

O placar digital ao seu lado, por cima da sua cabeça, que supostamente informa os tempos aproximados de espera dos transportes, está completamente descontrolado. Vários números piscam sem ritmo aparente; o E15, que Johannes espera, demorará cerca de 120 minutos a chegar àquela paragem. Embora gostasse de definir escalas para depois as rebentar, ele sabia que aquele tempo não correspondia à verdade. E, na verdade, 30 segundos depois, o eléctrico chegou.

Depois de fintar um pequeno corredor pejado de estrangeiros e de gente estranha à sua maneira, ele chega à ponta do eléctrico. É um eléctrico antigo, feito de madeira, de dimensões reduzidas. O condutor parece apressado, visto que acelera a fundo assim que entra o último passageiro. Parece que o veículo se vai desfazer, e as pessoas mais velhas, sentadas, abanam a cabeça em direcção ao homem do leme em sinal de reprovação. Johannes viaja, naturalmente, em pé, mas à janela, escancarada. É tão fina a fronteira entre o dentro e o fora, apenas dois dedos de espessura de madeira. E a parede é mais janela do que outra coisa - à altura da cintura - bastando um pequeno empurrão oportuno para aterrar na estrada. Enquanto Johannes pensa despreocupadamente nisto, é interpelado por um casal de estrangeiros de meia idade (não consegue perceber de onde vêm, mas falam um inglês perfeito):

- Excuse me!
- Yes?
- Could you please tell us how to go to "Jerownimux"?
- Sure! See this line on the map over here? It's the road where you are now. You wait in this ..."train"?... until Belém, or even better, until Centro cultural de Belém. I'll warn you when you have to get down, don't worry. Then you'll see Jerónimos right in front of you.
- Hey, tank you, pall!
- It's ok!
Johannes voltou ao torpor, embora não se possa dizer que o eléctrico o embalasse. Na verdade, o condutor acelerava como se não houvesse amanhã, e travava a fundo em todas as paragens, como se estivesse a testar os travões. Mas não ficou sozinho por muito tempo.

- I'm sorry pall, do you have a lighter?
O casal tinha acabado de enrolar um charro do tamanho de uma caneta bic. Johannes nem nunca tinha visto ao vivo mortalhas tão grandes.
- Hmm... let me see.
Fingiu procurar atentamente nos bolsos. Fingiu, porque sabia que nada trazia nos bolsos dos calções de ganga, a não ser um isqueiro Clipper. Na verdade, Johannes nem bilhete tinha para o eléctrico. Antes de o dar, disse ao casal:
- See this lighter? You can do this with it (desmontou a roldana que faz atrito na pedra para produzir faísca, que vem com um pequeno pauzinho agarrado)!
- And what the hell is that for? - perguntou o rapaz, admirado.
- Well, you may find it usefull to make that joint, see? (e calcou com o pauzinho a ponta do charro que o casal estava a fazer).
- Oh, that is sooo cool! May i have it? - diz a rapariga.
- Well, you really shouldn't smoke inside the train ... but if you share that with me you may keep the lighter! - Johannes ri-se como se estivesse a gozar, mas na verdade estava a falar a sério.
- How rude of you, Arek! He was so nice with you!
O rapaz ri-se e aceita bem a proposta. Acende o charro.
- I thought portuguese people didn't like it!
- Are you planning to get high and then watch mosteiro dos jerónimos? Never done that! Might be cool!

A viagem continua, e curiosamente o eléctrico parece prosseguir cada vez mais devagar. Talvez o condutor tenha entrado no espírito dos três viajantes do fundo... ou então apenas lhes parecia dessa forma. Passados alguns minutos, ainda o charro ia a meio, e depois de alguma conversa em inglês, banalíssima para os restantes passageiros, mas que parecia carregada de profundidade universal para Johannes, este julga sentir o cheiro das oliveiras do jardim dos jerónimos.
- You have to get down in the next stop!
- Tank you pall! And tanks for the lighter.
- You're welcome! Enjoy! Bye! Have fun!
O eléctrico está agora meio vazio, e isso permitiu-lhe sentar-se à janela, que lhe dá agora quase pelo nível do cotovelo. Põe o braço de fora e recosta-se confortavelmente no banco.
Johannes sentiu-se como se estivesse no comboio das praias da caparica. E então deixou-se embalar pelas irregularidades de percurso. Observava com demasiado interesse os edifícios, as luzes dos candeeiros; saboreava longamente os cheiros trazidos por aquele vento de verão que teimava em não arrefecer; perscrutava demoradamente as caras dos passageiros, que se perguntavam porque é que ele os olhava, antes de desviarem os olhares; pensava todos os estímulos visuais, auditivos, olfactivos, e delineava teorias, como se tudo estivesse ligado por uma ordem ditada superiormente, como se tudo fizesse sentido. E então lembrou-se outra vez dela.

Fechou os olhos. Com as pontas dos dedos desenha-lhe o rosto a traços leves, as feições, as sobrancelhas, os lábios, o sinal por baixo do lábio e descaído para a esquerda que já tão bem conhecia. Penteia-lhe o cabelo com os dedos entreabertos, desde a raíz até ao pólen, enquanto a puxa para si com a outra mão, pelas presilhas das calças de ganga. Sente-lhe o perfume irresistível por baixo da orelha, e fecha os olhos com mais força. Sente-se agora em comunhão com as forças do universo.
Enquanto as carícias imaginárias se sucedem, Johannes recorda mentalmente o seu sorriso, que só aparece de quando em vez, mas que ilumina qualquer coisa dentro de si e lhe dá uma vontade inexplicável de sorrir também. E tudo sobre ela continua a encaixar e a formar um puzzle enorme, com cada vez mais peças, mas cada uma que vem encaixa ainda melhor nas precedentes.
Não é preciso Johannes pedir-lhe um beijo, porque ela lho dá quando ele mais o deseja, sem ele lho dizer. E ele sabe que ela o quer tanto como ele. Não são necessárias palavras; basta que ela passe a mão pela sua cara e olhe para ele como Johannes recorda para que ele se sinta especial para ela. E recorda. E reconstrói. E reinventa...
"Gosto tanto tanto de ti!"
"Gostas gostas..."
"Pois gosto!"
"Então, que é que eu disse?".
Abraçou-a, tem-na agora perto de si, e o eléctrico vai em frente mais depressa, enquanto apita com aqueles barulhos musicais que só os eléctricos têm, que são parecidos com o toque dos telefones antigos. Sempre em frente. Johannes poderia sair em qualquer paragem, mas quer ir até onde o eléctrico o levar; continua de olhos fechados, não quer saber onde está nem para onde vai. Apenas desenha repetidamente as feições dela enquanto se afoga no seu perfume.
*

- Algés! Última paragem!

Não sabemos de onde veio Johannes. Nem ele sabia que ia apanhar aquele eléctrico. Mas sabia que não podia tê-lo perdido.

15 de agosto de 2006

Zen - Didjeridú


- Istá ele!
- Então puto? Tasse bem?
- Epá... ya. Baza ao café?
- Ya, baza.
- Que é que tens feito?
- Nada de especial. Não se faz nada de jeito, ninguém cá está. Isto parece um deserto, nem há pessoal na rua de quem possa dizer ou pensar mal. E tu?
- Epá... vim ontem de Azeitão.
- Azeitão? O que é que foste lá fazer?
- Fui ter com uma amiga.
- Amiga... atão, e quando é que foste?
- Fui anteontem de manhãzinha, voltei ontem à noitinha.
- Ah, então dormiste lá...
- Hã?
- Ficaste lá em casa dela.. ?!
- Pois, havia essa ideia, mas eu não sabia bem como ia ser. Mas aquelas praias são mesmo boas, acabei por ficar de um dia para o outro.
- As praias... pois. Não chegaste a falar muito nessa tua amiga, pois não?
- Hã?
- Quem é ela, porra!? Tás aí todo abananado! Ó caraças do miúdo, tenho que repetir sempre tudo?
- Epá, desculpa lá, mas é que tou Zen...
- Zen?!
- Epá, apanhei muito sol e tou um bocado queimado... e também tou um bocado cansado porque foi muita praia e depois também dormi pouco, tive que acordar às 6 anteontem para apanhar o autocarro e...
- Autocarro?! Tu foste de autocarro para Azeitão?
- Epá, fui... que é que tem? Ias ficar admirado. Demorei menos tempo a chegar lá do que se fosse de Queijas para a minha faculdade. Tá bem que é Agosto, mas não deixa de ser impressionante. Ainda é um esticãozinho...
- Tens razão, tou admirado. Tou admirado como é que te deu a ideia de ir de autocarro para tão longe. Ainda hás de me explicar isso como deve ser, se fosse eu a estar em Azeitão de certeza que não ias lá ter! E não me venhas dizer que foi por causa dos brancos areais da Arrábida!
- Epá... é que a minha amiga é fixe.
- Ah! Assim tá bem! É uma compincha! Aposto que passaram a noite inteira a jogar Uno!
- Não... eu sei o que queres dizer... mas estás enganado, não é nada do que pensas.
- Ó João... tás-te a esquecer que eu te conheço desde que nasceste?
- E eu conheço-te a ti! E então?
- Tás-me a dizer que vais de autocarro para Azeitão, dormiste lá, tu és um rapaz, ela é uma rapariga, conhece-la há pouco tempo porque eu acho que só ouvi falar nela umas duas vezes...
- Eu só dormi lá porque ela estava sozinha, o resto da família estava fora e então ela pôde-me convidar para aproveitar o dia a seguir de praia.
- Sozinha?! Ainda por cima sozinha? Ouve lá, tu és estúpido?
- Acredita em mim... estivemos lá a fazer companhia um ao outro, até jantámos lá umas cenas que eu fiz, foi muito porreiro. E estivemos muito tempo na praia que é fenomenal... chegámos a ir a Setúbal a um bar à noite, ver um amigo dela a tocar Didgeridú.
- Did... quê?
- Aqueles troncos escavados que se sopra por um bucal e faz um som todo marado uuuuóóóóóóiiiéééummmm Prrreeuu!, aquele daquela música dos Blasted...
- Ah ya...
- O gajo constrói aquelas cenas... fica muito bacano. Vai buscar os troncos à serra da arrábida, escava aquela cena, pinta-lhes umas cenas, uns lagartos... E o ambiente tava muito boa onda, basta sair de Lisboa que o ar fica diferente. Epá, aquilo é que é qualidade de vida.
- Não te desvies da conversa. Ainda por cima se foste a um bar... à noite... em Setúbal... calculo que tenhas levado pelo menos uma muda de roupa. Portanto ias preparado para o que pudesse acontecer.
- Pronto, tá bem... pá... eu fui lá porque estava naquela de a conhecer melhor. Conhecia pouco, mas gostei bastante do que conhecia... e como ia de férias depois disso, achei que era a melhor altura para ir.
- E então?
- E então que agora conheço um bocadinho mais, e gosto ainda mais, e esse é que é o problema.
- Problema porquê? Tá bem que ainda é um bocadinho longe...
- Hmm sim, e sabes o que eu penso dessas cenas. Mas por acaso não era a isso que me estava a referir. Neste caso eu até estava disposto... temos sempre a tendência de sobrevalorizar o que está perto, porque parece maior. Mas nem sempre é assim. Estava pronto para fazer disto uma excepção... porque...
- Porque ela é excepcional.
- Parece-me que sim.
- Então... qual é o atrofio?
- Epá... não correu como eu idealizei. Eu achei que a gente se estava a dar muito bem, e resolvi ver até que ponto era verdade e fui lá passar dois dias com a miúda. Só que depois cheguei lá e bloqueei,não consegui falar quase nada, era só a miúda que se desunhava, e eu ali, quietinho e calado, a admirar.
- Ehehehe granda grização... nem parece teu! Costumas ser todo bazófias e gozar com tudo...
- Pois... a cena é que fiquei caladinho e quanto mais conhecia dela, menos me conseguia dar a conhecer. E não sei até que ponto é que isso terá sido ou não determinante...
- Determinante para quê?
- Epá... eu acho que não lhe agradei.
- Mas tu és parvo? Ouve uma coisa: tu não agradas só pelo que pareces ou pelo que grunhes ou pelo que fazes. É questão de química. Ou sim ou sopas. Infelizmente não há muito que possas fazer para mudar essa realidade binária, por isso acho que não deves estar a tentar arranjar responsabilidades tuas.
- Tá bem, mas mesmo assim ... é que tu não estás bem a ver. Para quem esteve só umas poucas vezes junto, até ficámos bem próximos. Eu não cozinho para todas as raparigas que conheço! Pode até sair uma grande merda, mas... é a minha merda. Acho que é especial fazê-lo. E muitos abracinhos e festinhas... um gajo fica abananado. E depois é este cheiro a protector solar misturado com perfume que não me sai do nariz... é tão bom que é quase intoxicante!
- Bem me pareceu que não tinhas só ido lá só porque te deu um grande vaipe. Tavas-te a meter todo na casca porquê? Já não tás em Azeitão!
- Pá... ainda não pensei bem sobre isto tudo. E por isso custa-me estar a falar sobre uma coisa que ainda nem racionalizei... limito-me a senti-la, estás a perceber? E é uma cena que começou por ser interessante, depois agradável... depois Zen... e depois começou a ser um bocado inquietante e menos agradável, um bocado angustiante!
- Ehehe tu e o Zen...
- Pois! Para mim Zen é um cheiro maravilhoso a perfume e protector solar misturado com o cheiro natural de uma moça fixe, estar deitado na areia ao sol, abraçado a ela e virado para ela, enquanto me mexe no cabelo e fala baixinho comigo, com uma voz que provoca diabetes, e com o nariz dela a meio centímetro do meu. Mas, claro, não lho disse. Só disse que estava Zen. Mas perguntei o que é que ela achava que era Zen.
- Moça fixe... humm... tu e o fixe. Acho que não é bem fixe a palavra que define essa situação. Mas isso aconteceu? E que é que ela disse que era Zen?
- Aconteceu. Até por mais do que uma vez e por longos de tempo. Foi muito, muito bom... Ela disse que para ela Zen era estar numa banheira com água quentinha e sais ou espuma, já não me lembro bem... eu até disse que ela podia pôr umas pétalas de rosa, mas ela disse que nem era preciso. Enfim...
- Se calhar estava a pensar no banho, mas com companhia...!
- Ahmm... não, não estava. E fiquei naquela: perdi uma boa oportunidade de tar caladinho, visto que ela não achava aquela situação presente como originadora de um estado Zen. O meu Zen não era o Zen dela.
- Ela não te disse isso. Tu é que achaste.
- E o que eu acho não tem tanta ou mais importância do que aquilo que é dito?
- Não tinhas dito que tinha sido muito, muito bom? Qual é o problema?
- O problema é que o que aconteceu, de facto, foi muito bom. E eu até nem me importava que continuasse assim. Não fiques com ideia que eu tou com pressa de alguma coisa, não é isso. Mas tenho que ter uma boa dose de certeza que estamos mais ou menos na mesma onda. E eu acho que eu estou no pico da serra da arrábida e ela está cá em baixo na praia, percebes?
- Não.
- Alguma coisa me diz, o meu instinto é...
- Ela esteve abraçada a ti, não esteve?
- Ya.
- Esteve mais próxima de ti do que o socialmente aceitável, não foi o que disseste?
- Sim, muito mais do que o socialmente aceitável.
- Convidou-te para lá dormires, não convidou?
- Sim, mas foi porque dava jeito!
- Oh pá, então eu acho que há qualquer coisa, pá... tás aí mas é a engonhar, e cá para mim acho que foste foi um granda menino que andou para lá a anhar e a dizer tou zen, tou zen... e depois não se orientou! Sabes o que tu és? És um granda anhado! Não deste andamento à cena!
- Epá... eu só gostava era que tu sentisses o que eu senti e não estavas aí a dizer isso. Sabes que o que é mais difícil para mim de lidar... é quando eu vejo que não há nada que eu faça que seja capaz de marcar a pessoa; e ao mesmo tempo, vejo que há montes de coisas nessa mesma pessoa que me agradam, e que ela nem precisa de se esforçar para me marcar a mim.
- Epá, eu já tou um bocado farto dessa conversa do "fico desinteressante quando tou interessado". Para mim continuas a ser um menino porque não tentaste, não te desbroncaste. Pregavas-lhe era um beijo!
- Não senti que fosse isso que ela estava à espera. Apesar de toda a situação, de todo o contexto, da proximidade... não sei explicar. Até posso estar enganado, mas não me arrependo de não ter tentado. O que me faz confusão e me deixa triste é mesmo pensar como é possível estar tão próximo de uma pessoa, próximo demais, segundo os meus padrões, e ter uma impressão doida que a outra pessoa acha aquilo perfeitamente normal, que é só coisa de pura amizade.
- Tu já não és um miúdo pequeno, e devias saber que as mulheres às vezes são assim. Querem atenção, gostam do carinho, até fazem coisas para chamar a atenção, inconscientemente, do rapaz, mesmo que não queiram nada mais com ele.
- Ouve lá, e eu também gosto de atenção e carinho... mas só me meto em algumas situações se for bastante mais do que isso!
- Mas as pessoas são diferentes...
- Houve uma altura, quando me deitei de sábado para domingo, depois de irmos ao tal bar, que estava um bocado irritado e susceptível, e ela até notou isso, mas eu fingi que não, que era para não estar ali a ter que desbroncar-me todo. Ia lá o tal bacano do didgeridú a casa. Se eu dissesse alguma coisa, é como os fios dos collants, se tu puxas nunca mais acaba, e naquela situação ainda dormia era na rua ehehehe!
- Ou então acabavas aos beijos com ela, não sabes!
- Epá cala-te lá, parece que não ouviste nada do que eu disse.
- Sim, continua... estavas irritado?
- Epá, estava, porque me estava a sentir um bocado torturado com aquela situação. Por um lado, imensos carinhos, bons, óptimos, e eu todo derretido com aquilo tudo. Por outro, via-a quase imperturbável, não havia um único sinal de hesitação, de nervosismo, enfim, até às vezes parecia que eu não estava lá!
- Não te esqueças que ela estava a jogar em casa.
- Epá... não jogou em casa porque não jogou, nem defendeu, nem atacou, nem nada! Nada que eu percebesse como inequívoco de uma posição. Não foi carne nem peixe.
- Foi marisco! Mas pelos vistos tava verde, não é?
- Eheheheh!!...
- Mas continua!
- E então, fui-me deitar. E pensei comigo: "se neste momento fosse de manhã, acho que me ia embora a pé e depois falava com ela, já não aguento mais, isto é de pôr um gajo com a cabeça a andar à roda!... mas vou agora descansar... durmo bem, amanhã de manhã logo vejo se ainda penso assim...".
- E acordaste...
- Acordei, bué cedo, até nem parece meu! Acho que foi de começar a regularizar o sono, porque também tinha acordado mesmo cedo no dia anterior por causa do autocarro. Dormi no quarto dos pais dela, eu só queria um canto da sala para dormir, sabes como é, gajos rijos dormem até no chão... mas ela quis meter lençóis todos bonitos e que eu dormisse ali, enfim...
- Granda menino, ias era ao quarto dela durante a noite!
- ... continuando: liguei a tv, meti-me a ver os Simpsons na Fox, depois fui à cozinha comer qualquer coisa, vim fora de casa, dei uma volta, voltei à cama e vi mais dois episódios dos Simpsons, até que finalmente ela acorda. Achei por bem não me ir embora sem me despedir... de manhã eu ainda estava um bocado chateado comigo mesmo por não conseguir ser imune a estas cenas. Mas estava menos. Se estivesse igual tinha mesmo ido embora a pé até à paragem das camionetas... e eu nem sabia o horário, mas não interessava. Havia de passar uma casal boss e um velhote, e dava-me boleia ou assim.
- Mas ela acordou...
- Pois, aí é que está! Acordou e veio com umas bermudazinhas (aqueles calçõezinhos mesmo à rapariga, bué curtinhos, acho que são bermudas, n sei) com o snoopy e um topzinho (era o pijama dela) e toda bronzeada e tal, deitou-se encostada ao meu lado, deu-me um beijo enorme na cara e disse que tinha estado a sonhar comigo.
- AHAHAHAHAHAH! Que grização!- Acredita... eu ali todo rijo, vou a pééé! e vou bazar daquiiii!!! E sou buéda mauuu! Em dez segundos, o meu sangue todo circulou 50 vezes pelo corpo e mudei de ideias. Claro que acabei por ir à praia e mais não sei quê e só bazei à noite de lá.
- Então... mas ficou tudo bem. Se ficaste lá, onde é que está a crise?
- A crise está, que continuei com a mesma sensação, apesar de isso ter acontecido de manhã. Por um lado mudei de ideias, mas por outro fiquei com aquela ideia que aquele momento serviu só para baralhar o meu raciocínio, chegou naquele momento em que eu estava a preparar-me para tomar uma atitude, mas desestabilizou-me... e no entanto a minha atitude se calhar teria mesmo sido a mais sensata.
- Epá, foi tormenta para mais um dia, mas também serviu para fortaleceres as tuas opiniões e para ficares com mais dados...
- E para ficar mais confuso. Confuso não, um bocado triste. O que eu queria era ser especial para ela, não queria mimos ou massagens ou...
- Massagens? Mas ela fez-te massagens?
- Fez, ela tem jeitinho... mete uns cremezinhos... e sabes que eu sou maluco por cheiros... fez-me umas depois daquilo dos Simpsons, tava eu estendido de barriga para baixo lá no tal quarto.
- E não te achas especial?
- Ao que parece, ela faz isso aos amigos de quem gosta. Também fez ao bacano do Didgeridú, que veio connosco à praia várias vezes.
- Como é esse gajo?
- Epá... é um gajo à maneira. Engraçado, simples, deixa o pessoal à vontade... não há nada a apontar! E tu sabes como eu só digo mal do pessoal. Se fosse um tótó ou um gajo com a mania que é cromo eu dizia-te logo.
- Pois, eu sei. Custa a crer. Gajas demasiado giras e demasiado queridas, normalmente atraem gajos demasiado cromos. Aliás, dá para ver por ti.
- Ah que fixe!! Que piada de merda... epá, só queria que visses como é que ela me apareceu à frente quando foi para me ir buscar, quando eu cheguei de lisboa... ah e tal, tive pouco tempo, saí à pressa de casa, desculpa tar atrasada e quê... mas: toda penteadinha, ganchinhos todos giros, altos brincos, perfume bué bom, toda top com decote giro, toda minissaia a arrebentar com o pessoal todo das redondezas que parecia que tinha caído ali uma granada, e umas sandálias que a faziam mais alta que eu. Se de cada vez que eu saio de casa assarapantado mandasse uma pausa assim...
- Pois, puto... não sei que te dizer... já sabes que cenas de gajas são sempre uma granda merda.
- Como eu tava a dizer há bocado, o que eu queria era ser especial para ela. Os mimos são muito bons, mas não significam o mesmo se tu te convences que ela não está a sentir o que tu sentes quando lhe fazes os mesmos mimos.
- Isso tu não sabes, há pessoas mais explícitas que outras. Mas não é isso que me faz confusão nessa história toda. As pessoas vivenciam essas situações de maneiras diferentes, ela se calhar é fechada como uma ostra, enquanto tu dás mais nas vistas do que um fogo de artifício. E eu sei como tu és e tou mesmo a imaginar tu todo derretido com cara de "se morresse agora morria feliz". O que me faz confusão é que ela devia-te ter topado essa onda e agido um bocado mais em conformidade, para o bem ou para o mal. A cena é que elas muitas vezes não agem para não perder a atenção e o carinho, mas... até isso tem limites. Normalmente nenhuma gaja gosta de ter um gajo agarrado a ela tipo lapa se estiver farta de saber que ele gosta dela. Eu também não gosto cá de muitos abraços e muitas mãos dadas com gajas se souber que o que elas vêem em mim não é bem um amigo.
- Pois... sabes que ela já se queixou de alguns rapazes, que eram muito amiguinhos... e que depois se puseram com coisas porque gostavam dela, e depois afastaram-se e não sei quê, numa atitude muito trágica... eu percebo bem como é que passaram a gostar dela, e também percebo que deva ser um bocado mau para ela. Por isso disse-lhe que não ia ter problemas comigo.
- Mas...?
- Não há mas! Uma pessoa habitua-se à ideia, que remédio! Tenciono honrar o prometido. Quando lhe disse isso já estava a tentar ser especial para ela, mas o facto de estar a tentar seduzi-la não significa que tenha mentido.
- Essa merda do "eu quero ser especial"... tu és é um creep, um weirdo! E não pertences aqui! ehehehe!
- Tás com umas graçolas... que deus ma pardoe... por acaso fui a ouvir isso no autocarro durante o regresso!
- Eixx que lindo! Que melodramático! Tou a ver o filme! Tu, no autocarro, no escurinho, a passar a ponte, com as luzes de lisboa do outro lado, sem ninguém no autocarro, a ouvir essas músicas. Ahahahaha! E a Black, dos Pearl Jam? Ahahaha!"I know someday you'll have a beautiful life, in know you'll be a star / In somebody else's sky, but why, why why can't it be mine?" tururu tu tururuuuu... ai, que grização...
- Por acaso ouvi!
- Bem me tinha parecido... então e como foi a despedida?
- Epá, foram fixes... ficaram comigo na paragem à espera do autocarro, ela e o gajo do didjeridú. Ainda foram uns 20 minutos... mas eu estive sentado no banco ao lado dela, a receber umas festinhas na nuca!Depois o autocarro veio de repente, não deu para grandes despedidas, foi tudo muito atabalhoado, dei-lhe um beijo ao mesmo tempo que ela a mim, uma coisa assim muito esquisita que quase não era na cara... se calhar a culpa foi minha por causa do desespero, ou então foi dela... ou então isto sou eu a querer que a realidade se adeque ao que eu idealizo. Só sei que foi mais uma cena para aumentar a confusão!
- Foste menino! Arriscavas! Depois bazavas, de qualquer maneira! O que é que podia correr mal? O que ainda podia acontecer era teres que mandar o homem do autocarro embora!
- Só me lembrei disso depois... mas não sei se teria tido lata para o fazer.
- Lá está! És um granda tótó! Olha puto, mas a sério, tu é que sabes, tu é que estiveste na situação, e se achas que alguma coisa não encaixava... é porque se calhar era verdade. As coisas são como são, as pessoas são como são, e só acontece o que tem de acontecer. Se não aconteceu... é porque um de vocês ou os dois não queriam assim tanto. E se ela estivesse a sentir o mesmo que tu, haveria de arranjar maneira de o mostrar sem margem para dúvidas. Mesmo as pessoas tímidas e que se reprimem ao máximo, chega uma altura em que se descaem... nem que seja só por um momento, uma coisa que se diz, ou se faz, sem querer... e parece-me que não foi esse o caso, pois não? Senão tu tinhas notado. Mesmo estando caidinho como estás, e nota-se a léguas... tu até és um gajo observador, e não ias deixar isso em claro.
- Mais uma vez te digo: não é que tivesse de acontecer alguma coisa. Não era preciso nada... mas gostava de ter ficado com a sensação que não era só eu a sentir-me esquisito e nervoso no bom sentido.
- Bem... então vê isso como se fosse uma virose. Não eras tu que estavas com uma amigdalite? É a mesma cena... se tudo correr bem daqui a uns dias passa! E aí vais poder honrar a tua "promessa".
- Ya, é capaz de ser melhor assim.
- Puto! Vou pa casa. Tá a ficar fresco.
- Ok jovem, até logo! E não te esqueças que não tenho net, se não me vires no msn não te admires!
*
In "Excertos de Conversa do STP com o Acre" :)

26 de julho de 2006

Já se sabe como elas são - parte 1

Komeço por me apresentar: sou o irmão jémio do Acre, umdos gajos que escreve aqui no blog. Sou 4 anos mais novo do que ele, e pedi-lhe pa escrever umas cenas de vês em kuando, porque ele keichou-se que andava a perder a vontade de andar rabugento com o mundo e de dizer mal de tudo. Bem, eu não sou propria/ igual a ele, mas é o que se pode arranjár.

E então desta ves é assim:
Certa ves, tava eu sentadu na esplanada da minha fakuldade a esvaziar um caneco, e tava uma kolega minha a akarissiar-m u cabelo e a conversar cmg. E então ela dizia-m:
"Ai [inserir nome própriu do TouFartoDeGajas], sabes k sempre fui c a tua cara... és mesmo fofo! Já falei mtas vêses com a fulana e beltrana [inserir nomes de aves raras kom apelidos de marcas de vernis das unhas] sobre ti, e elas são da mesma opiniaum q eu! Tens uma carinha muito girinha... fazes-m rir imenso... sabes komo é importante para uma rapariga ke a fassam rir! E depois lembras-t sempre de coisas q ninguém sabe, deves ler muito nas horas vágas! E confeço que fico um bocado coisa quando olhas pa mim ficçamente... veiem-me umas temperaturax à cara e tenho q desviar o meu olhar! [era verdade, eu tinha notadu]. Só nunca investi em ti porque és baixote..." - e continuou a falar lá coisas da alma dela; enkuanto isso, akele estímulo(*) viajou pelos meus nervos periférikos acima, foi ganhando força, ganhando força e velocidade, passou a medula, continuou a subir, a subir, passou por entre os núkleos do tronko cerebral e atingiu os neurónios do kórtex cerebral como uma bombinha de mau xeiro. Enkuanto ela continuava a metralhar palavras comu um helikanhão de 20mm, e ao mesmo tempo q me mexia na trunfa karinhosa/, os efeitos dentro da minha cabeça faziam-se sentir e o meu cérebro demorava eternidades a elaburar a respoxta!

"Ai, [inserir de novo nome própriu do TouFarto...], outra koisa é q podias vestir uma camisa de vês em kuando..." - não a deichei acabar e kurtei-lhe a palavra "Oooh...[inserir nome de gaja que até tem um korpo genial, uns olhos bunitos e um kabelo bem tratado, mas que da boca só saiem partíkulas fecais]!... tu sabes q eu também sp fui c a tua kara, desde o primeiro anu do kurso. Tens uma figurinha invejável [manda um par... acudam-me!], arranjaste mta bem, és mto karinhosa kmg... e até me riu de vês em kuando c as tuas parvoíces... também nunka pensei em investir em ti porke tens as mamas pekenas! E não tou a dizer ixtu só pq disses-te q sou fôfo han?" - l0ol0olo0l0ol0o riu-m sempre q me lembro dixto.
Ela depois parou de me fazer fextinhas no cabelo."Oh [inserir nome dela]! [Inserir nome dela de novo], onde é que vais? Não keres um bokado do meu kaneco?" e ela bazou a xorar não sei porkê.

E foi isto. O meu irmão Acre julga que tem sempre razão, mas eu goxto de ouvir os konselhos dos outros para ver se fiz bem ou se fiz mal em não lhe ter dito também q devia pensar em ir korrer para o estádio universitário.
Goxtava q komentassem...! Um abraço e deskulpem os erros, é da preça.
(*) estímulo - palávra "baixote" usada no contêxto q eu tenho + um palmo doque ela.

10 de julho de 2006

I might be wrong (VI) ... but I won't change my mind!

Estou aqui no Hospital Pulido Valente, numa maratona de estudo que se prevê só terminar no dia 21, quando for o próximo exame. Resolvi escrever porque já estou aqui desde as 11 da manhã, e provavelmente só irei para casa às 2 da manhã, já de terça feira.Como não escrevo há muito tempo, que melhor maneira senão fazê-lo de um computador público daqui do hospital? Mesmo à trouxe-lamouche (ou lá como se escreve).

Mal me meti no msn, reparei que havia uma lista de endereços de msn no campo onde costumamos inserir o nosso... afinal isto é público, é normal que assim seja. Mas os emails, deus ma pardoe... só nomezinhos de pares de namorados: vitoranabela@hotmail.com; susanapaulo@hotmail.com ... fdx, será que é porque não fui acometido dos calores primaveris que acho isto ridículo? Ai, amorzinho, obrigado por me ires buscar as pantufas! Ai, fofinho, és tão querido por me dares um telemóvel novo! Damn... abaixo as mariquices! Grandás nhonhices! Daqui por uns meses se for preciso estão à procura nos settings do hotmail para fazerem o account disable, aposto!
E já que estamos numa de msn... porque porra é que toda a gente mete away e busy e o caraças a 3? Vêm sempre falar comigo ou se eu falo respondem passados 5 milisegundos! "Ai, porque não quero que me chateiem, mas tu és diferente" - olha, obrigado pela parte que me toca, mas porra, não liguem o msn! "Ai, porque há pessoal muita chato!" - Bloqueiem, ora! "Ah, mas é que eles depois descobrem" - Err... porque é que os adicionaram de todo? E se não podem com eles, porque é que os mantêm na lista? Tenham dó, pá! Há que saber mandar uma pessoa dar uma volta quando é preciso! O que as pessoas fazem para não ter que dizer o que pensam ou o que sentem!
Os estados do msn são uma manifestação virtual da hipocrisia entre relações humanas! Nunca correspondem à verdade! People lie...

Falo-vos agora um bocadinho sobre o campeonato do mundo, só assim de surra. Eu não gosto muito de fazer desabar as minhas nuvens sobre o molhado, mas acho que se impõe um grito de revolta. Será que fui só eu que vi que o Nuninho fez mais em 20 minutos do que o Pauleta durante dois certames internacionais, que ainda por cima podiamos ter ganho? É que... tipo... sou o primeiro a dizer que chegámos onde chegámos pela sorte do Scolari. Mas também sou o primeiro a apontar o meu dedo acusador até ter uma luxação das interfalângicas: não ganhámos esta merda por causa dele! Dá-me um ódio... venham-me cá dizer que não fomos ajudados pelos árbitros e o caraças, mas isso para mim é-me indiferente. Mesmo não sendo ajudados, se tivessemos metido lá 3 ou 4 batatas contra a frança ninguém pensava no árbitro! E quer-me parecer... só assim uma leve sensação... que não é com o Pauleta que íamos conseguir. Não vou perder tempo a chamá-lo de nódoa, nulidade, zero, "-1", tosco, fraquíssimo, "só-marca-golos-ao-Lixãnstáin" - ok, já perdi tempo que chegue e acho que já perceberam onde quero chegar. E para vosso bem, espero que não fosse preciso este meu acervo de predicados...
Bom, felizmente que o menino lá decidiu abandonar a carreira internacional (ainda não estou em mim), mas eu acho que não há desgraça que venha sozinha, e provavelmente talvez tenhamos que gramar com o Hugo Almeida... ou o João Tomás. De bradar aos céus!
E todo este movimento tuga peri-mundial... acabou por me dar azia por diversas situações. Roberto Leal a cantar o hino nacional? Infelizmente rima e é verdade... com o filho dele a tocá-lo na guitarra? É de querer enfiar a cara num balde de água rás e inspirar profundamente... mente limpa!

Um dia destes escreverei mais pormenorizadamente sobre alguns dos notáveis da nossa praça pública. No dia do Santo António (ou terá sido do S.João?) fizeram uma transmissão televisiva deplorável de um espectáculo igualmente deplorável, em que o Betinho lá cantou o hino. Ontem, no Herman Sic (esse bastião da qualidade televisiva portuguesa), apareceram uns cromos que já não via há muito tempo, e que até pensava que eram equívocos de popularidade que já tinham sido esclarecidos com uma laje por cima (é giro ver como a expressão "pôr uma pedra sobre o assunto" se aplicaria tão bem). Infelizmente foi engano meu. Eles vivem, eles sobrevivem, eles metastizam! Não me lembro do nome do gajo, mas é aquele músico (?) que aparece sempre com a mulher gorda, e que tem cabelo assim liso, preto, escadeado, e uma cara de fuínha que até temos medo que nos ganhe ao poker (com 16 ases na manga). Impõe-se uma série de posts sobre esses ícones... mas fica para outro dia.

Até ao meu regresso! :)

30 de junho de 2006

Guerra - Cap I

Embarcou à três meses mas só ontem recebi a primeira carta. Diz que está bem, que a comida é boa, mas faz muito calor. Está bem, e come bem e isso é que importa e que Deus nosso senhor o proteja e guie.
- Ai está bem? Isso é que importa, uma guerra onde se come bem, embora com algum calor – acenando a cabeça o merceiro põe as compras numa cesta. Embrulha bem meia dúzia de ovos em papel manteiga e passa o cordel pelo embrulho com duas postas de bacalhau alto, do bom para grelhar – deve até dar para ir a banhos!
O senhor Augusto por acaso não está a fazer troça da dor duma mãe? É que se for esse o caso deixe que lhe diga que faz muito má figura! Como até um parvo vê, agarro-me ao que de bom tenho.
- Dona Maria Teresa, por acaso eu troçaria com a dor duma mãe que vai ao cais das colunas ver o único filho, arrancado das carteiras da escola industrial – e bom aluno se dizia ser -, partir para o ultramar sem regresso certo? Mas olhe, agarre-se bem, não vá correntesa a baixo.
O cesto foi arrancado ao balcão e restolhado pelas sacas de cereais que se dispunham até à saida, tão veloz que deixou uma nuvem de pó por assentar. Augusto vem à porta compor as sacas no seu passo calmo e decidido, sempre com uma vassoura na mão, caso o pó volte ou algum pilantra lhe esteja a galar as résteas de cebolas e os caracóis que estão à porta.

Andaste a chatear mais uma mãe que deu o filho ao prego? Augusto, Augusto...
- Olha lá, não devias estar ali em Santa Apolónia a pedir esmola aos que chegam, já que os que partem ou vão sem esperança ou sem dinheiro? És cego, és cego mas é para o que te cheira!
O Dr de S.José disse que eu era invisual, cego é uma parte da tripa! – e vá de se sentar numa saca de cevada por encetar que estava por ali á mão. Eu também ia ás sortes se Deus nosso senhor me tivesse destinado a ver.
- Assim destinou-te a pedinte na estação de Santa Aplónia. Mas pelos vistos já podes comandar batalhões, foste promovido a invisual! Isso até faz uma bela rima com General, General invisual! Não parece muito longe da realidade – por breves instantes pousou a vassoura mas logo a energia de mercieiro o tomou – vamos mas é a levantar dai o traseiro que isso não é uma espreguiçadeira.
Bem se aqui está, com a brisa do Tejo e mesmo defronte para a estação. Mas tens razão, chega de cobra, vou mas é ganhar a vida, a ver se chega para a bucha. Augusto atirou um papo seco para o colo do ex-cego agora invisual e começou a varrer energicamente, como se tivesse de varrer a esmola. Varria com tanto empenho que nem notou o reboliço que se formara à frente da estação, onde militares e polícias corriam em todas as direcções, vasculhando todos os cantos e todos os carros. Quando a nuvem de pó assentou, Augusto vislumbrou agentes a virem em sua direcção, que mais pareciam atiçados tal era o passo. Que venham, tudo o que leio alimenta a caldeira, tudo o que não leio não sei.
Boas tardes, precisamos de entrar na merceiria, com licença! – a educação não costuma faltar aos agentes da polícia agora aos do exército não constava que fosse item prioritário na sua formação.
- Precisam de alguma coisa? Em que os posso ajudar? – perguntou Augusto pousando a vassoura não vá o diabo tecê-las e a fiel amiga ainda se virava contra ele. Não obteve resposta.
Bom dia sr Augusto – saudou o habitual agente Palha, Zé Palha para quem entrava no seu círculo de amigos – andam à procura dum mancebo que fugiu, acho que ainda por cima é comuna ou como é que se chamam esses diabos. Chegaram de Santarém para embarcarem para a Guiné e o sacana escapoliu-se, evaporou-se melhor dizendo! - esticando o dedo como se tivesse a leccionar a mais preciosa matéria do alto dum estrado.
- Compreendo, não quer ir a banhos? Se calhar não gosta da praia, ou é mau de boca, muito embora a comida no Ultramar seja boa.
Como sabe disso? Já lá esteve?
- Não, não, chegou-me aos ouvidos, acho que é o que os nossos soldados mais escrevem nas cartas para casa, que está calor por lá mas come-se bem. Se calhar devia mudar o negócio para essas paragens, até gosto do calor e comer bem também não me custa.
Um homem alto de bivaque saiu da merceiria. Aparentava uns robustos 30 anos e tinha traços sizudos e fechados. Abeirou-se dos dois homens que pacatamente trocavam palavras à porta da loja e avisou Augusto que se visse algum mancebo fugido, ou se soubesse de alguma coisa para avisar as autoridades competentes sob pena de ser acusado de ocultamento e colaboração com um desertor. Sim senhor saiu da boca de Augusto em coro com o agente Palha, que não ficou indiferente ao peso de tais palavras. Meio embaraçado saiu despedindo-se com um aceno de cabeça e com um já sabe, se vir qualquer coisa de suspeito... Augusto respondeu-lhe com um vá descansado. Pegou na vassoura e voltou para dentro que aquilo ali fora era um mar agitado demais para a sua barca.
Estes tipos são mesmo intragáveis, pobre rapaz, espero que já esteja bem longe daqui são e salvo. A trabalheira a que eles se dão por causa dum pobre rapaz que só quer que o deixem na escola e jogar à malha. Vou mas é por as pipas à porta que o comboio do Cartaxo deve vir a horas e depois fico sem vinho. Galgou dois degraus e abriu a porta das traseiras, reparando que havia pó no ar. Começou a desarredar as pipas e a deitá-las pois vá lá um homem carregá-las doutra maneira que não seja rebolando. Estas aqui estão vazias, gastei-as primeiro para agora não ter trabalho a desarredá-las, o método vence sempre. Nem sempre. Mas que inércia tem esta pipa vazia, que ar tão pesado é este, bolas! Tenho a certeza que a gastei, deixa-me a lá virar. O peso da pipa ultrapassou o ângulo limite que a faria estar em equilíbrio e rebolou como não devia, contra a parede, fazendo soltar um som abafado.
- Bolas, isto quando corre mal, corre mesmo mal, irra! Só me faltava uma pipa rachada, e o comboio aí a vir! A força que teria de dispender para tentar erguer a pipa parecia-lhe sobre humana, mas que raio de enguiço será este agora, é a paga por zoar das mães orfãs de filhos. Ladeou a pipa e reparou numa mancha de vinho na face que tinha ficado para cima, que estranho, mas o vinho sai pelo topo? Mas isto não é vinho, e ao abrir a pipa viu que o peso desta afinal não era devido a um ar mais pesado.