O sol, amarelo todo o ano, mesmo no inverno; as gemas de ovo, amarelo vivo; as cores do vestuário, mesmo daquele que é lavado duas vezes por semana, sempre brilhantes e apelativas; os olhos de todos os amigos, sempre límpidos, de tons impossíveis de imitar com lápis de cera, guache, aguarela ou tinta de óleo…
As notas de cada música, vibrantes, guardadas no ouvido que, ávido, tudo capta, e interioriza; cada letra nos define, porque nos identificamos com ela, e porque nos transforma à medida que depois a exteriorizamos com os amigos.
As batalhas perdidas, as catástrofes, as desilusões… todas elas são combatidas de peito aberto, porque nada é definitivo ou eterno e há todo um futuro pela frente. Embora não o saibamos, as coisas que parecem insignificantes à luz da juventude são as que vão marcar para sempre.
Em cada dar de mão, em cada olhar trocado… em cada gargalhada em conjunto, há um aumento de pulsação e um ruborizar de face. Nada é eterno? Julga-se que os amigos o são! Nunca se pensa neles no futuro. Gosta-se deles, partilha-se a vida com eles, mas sempre no presente. São como são e gostam de nós. São quase como nós, mesmo sendo muito diferentes. Mas ouvem, avisam, aprendem, acompanham, ajudam, acompanham de novo, sempre, e preocupam-se. Aconselham; quando bem, porque é o que querem, quando mal, porque se enganam. São as melhores pessoas do mundo, insubstituíveis; chega-se a ter pena das outras pessoas, que não têm os amigos que nós temos. Os outros têm amigos interesseiros, egoístas, que não se podiam estar mais a borrifar. Os outros têm sempre grupos de amigos que, volta não volta, desaparecem e são substituídos por outros, novos, iguais, sem piada nenhuma, sem sal, burros, pouco interessantes, de personalidades pouco densas. Os nossos amigos é que são fixes. Escolhemo-los a eles, mas eles também nos escolheram a nós. Somos uns privilegiados. E ainda bem que temos muitos amigos!
Eram muitos. Mas vão desaparecendo, enquanto o tempo passa. Não aqueles que se vão embora para outras escolas; não os que morrem (esses, de certo modo, vão ser sempre amigos); não os que, em meia dúzia de meses que passam, atravessam a rua para não terem que nos encontrar. Não aquelas pessoas que aparecem e desaparecem fugazmente ao sabor da novidade e da necessidade de afecto. Os que desaparecem, realmente, são aqueles que continuam junto de nós, mas se vão modificando lentamente… vão acumulando diferenças, vão ganhando indiferença, e a preocupação que têm por nós e a importância que nos dão desvanece-se. Continuamos a gostar deles porque sempre estiveram mais ou menos ao pé de nós; mas, na verdade, eles já não nos lembram o tempo em que eramos mais novos. O que é assustador é que este é um processo irreversível, sucede a cada ano, imparável, e sem nos darmos conta. É uma doença insidiosa, de desfecho previsível, de prognóstico reservado.
Os velhos amigos lembram-me sempre o tempo em que os conheci, porque nunca mudou a relação que nos une. As faces vão ficando diferentes. As feições tornam-se mais angulosas, carregadas, mas a maneira como sorriem ou explodem em gargalhadas é sempre igual, sempre com piadas ou situações mil vezes contadas e recontadas. Esses velhos amigos sabem quando estou a dizer uma coisa que não é verdade; e sabem que, se o digo, não é para lhes mentir, e sim porque me estou a tentar convencer de alguma coisa que não corresponde à realidade. No entanto, dizem-no como se os estivesse a fazer de parvos: “Sabes há quantos anos te conheço? Pensas que eu não te conheço?”. E eu sorrio, embaraçado, porque eles têm quase sempre razão.
E se há algo de preocupante, algum desvio no seu comportamento, alguma diferença de actuação, imediatamente nos insurgimos. Indignamo-nos, porque aquele não é o nosso amigo, e portanto precisa de levar na cabeça.
É muito raro valorizarmos verbalmente os nossos verdadeiros amigos, porque os temos como certos. E essa previsibilidade acaba por ser a melhor maneira de os valorizarmos. Não é preciso um esforço para saber deles ou para os acompanhar, porque eles fazem parte das nossas vidas, ocupadas, quotidianas, mesmo sem nos darmos conta.
Quem desaparece, esquece; mesmo que não desapareça fisicamente da nossa vista. É o preço a pagar. Mas é a forma que temos de escolher quem queremos que nos rodeie, e quem preferimos que não faça parte das nossas vidas. E é também a forma que temos de ter a certeza de que quem permaneceu, ficou porque não poderia ter sido de outra maneira. As verdadeiras relações são como a água ou como a electricidade. Escolhem sempre o melhor caminho, o único caminho.
O crivo vai ficando inacreditavelmente largo. São tão poucas as pessoas que sobrevivem à selecção dos anos! Ainda sou novo e isto já me assusta. Já li vários emails daqueles que as pessoas mandam sucessivamente umas às outras, sobre como a amizade deve ser cultivada: “ligue ao seu amigo hoje mesmo e diga-lhe que gosta dele e mostre-lhe como ele é importante!”. Estive a pensar, e não concordo nada. Para quê fazê-lo, se esse amigo está sempre aqui ao lado? Até ia gozar comigo se o fizesse.
As circunstâncias são madrastas, e perdem-se muitas pessoas de quem gostamos, boas pessoas, mas cujas vidas as levam para longe de nós (obrigado, Mafalda Veiga, benza-te Deus). Penso nisso muitas vezes, e eu próprio estou a ser levado para longe de várias pessoas por forças que não compreendo bem. São forças pouco intensas, muitas vezes imperceptíveis; mas são muitas, e a união faz a força resultante! O balanço é esmagador. A velocidade de afastamento começa por ser pequena; mas uma pequena aceleração ao longo do tempo suficiente, produz por fim uma velocidade enorme, e uma distância percorrida proporcionalmente grande. E as ligações são inversamente proporcionais ao quadrado da distância entre elas.
Claro que continuo a gostar dessas pessoas, e quando me lembro delas ainda sorrio, mas a pouca convivência e a distância (relativa ou absoluta) tende a adicionar diferenças de gostos, de carácter e até de valores. A barreira da ausência permite que se acumulem essas diferenças nas interfaces relacionais que antes encaixavam na perfeição.
As nossas vidas caem na quiescência…
Acredito que os melhores amigos que tenho, já os fiz. É um pouco como com a reserva óssea de cálcio. Bebe muito leite e faz exercício enquanto és jovem. Economiza, acumula. Vou ficar mais velho, e as pessoas que conhecer não vão estar tão disponíveis para ser amigas como estavam antigamente. As folhas em branco das vidas das pessoas acabam-se… o futuro produtivo esgota-se. E as relações que fizermos não vão ser mais do que palavras escritas nos espaços entre frases já escritas por outras pessoas; serão palavras gravadas por cima de papel que já sofreu censura de borracha e está encharcado em desconfiança, ou que já está rasgado. Não vai haver praticamente espaço para o completamente novo e surpreendente. É cada vez mais difícil ser marcante para alguém, e isso entristece-me muito, embora o compreenda porque sinto a mesmíssima dificuldade em me deixar marcar. É por isso que admiro e respeito as pessoas mais novas do que eu: exibem com alegria e espontaneidade a capacidade de se deixarem marcar.
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As gemas de ovo parecem-me baças. O sol parece-me mais branco e mais frio do que há uns anos. As minhas t-shirts nunca têm cores tão intensas como gostaria que tivessem, mesmo acabadas de sair da loja. Os meus olhos parecem-me mais empurrados para dentro da cabeça, e o branco já não faz tanto contraste com a cor da íris.
E a música de hoje parece-me toda igual…
Há uns tempos atrás falámos sobre o fenómeno das sms's de Natal e sobre o facto de, grosso modo, essas mensagens virem de pessoas que pertenceram ou não ao círculo de amigos mas, raramente de amigos. Essas pessoas que se diluem no tempo.
ResponderEliminarTalvez também um paralelo interessante com as leis de Darwin, têm estes contactos superficiais, este eu cumpri a minha parte, a culpa não é minha mas não espero contacto que não seja um mail ou um reply sms... São as pessoas que tu tens de andar a magicar, mas de quem é este número? Não me é nada familiar... mas que raio será este? Ah, cá está... que será feito dele...
Pior é quando o que temos como tido não é achado. Aqueles que esperamos ter incrustados na mais forte coluna cromatográfica lá foram lavados numa das passagens dos eluentes do tempo... se calahar não eramos a biotina/ avidina!
Caro pedro
ResponderEliminarEu considero que este texto é o resultado de uma reflexão mais profunda, que levei a cabo desde esse texto dos sms de que falas. Esse texto foi escrito, se não me engano, no Natal do ano passado.
Nessa altura, indignava-me porque determinadas pessoas só diziam alguma coisa nessas alturas, como se fosse por convenção social. Mas... acho que amadureci ao longo deste ano, nessa vertente. Agora deixei de me importar. Continuo a não mandar mensagens no natal, continuo a não me preocupar com os aniversários... se quiserem mandar mensagens de aniversário, eu gosto de as receber, não me importo. As de natal... também não me importo, se me apetecer respondo, senão também não vem nenhum mal ao mundo.
O que tentei abordar neste texto é mais grave do que isso. Tentei falar de amigos ... amigos que o foram, mesmo intensamente, e que agora olhas para eles e sabes que não se preocupam minimamente contigo e nem se lembram de ti, mesmo que estejas ao lado deles. Estou a falar da ausência de preocupação e de interesse. E isto vindo de pessoas que fazem parte da tua vida há anos, algumas desde a tua infância; ficas com a sensação de que, se por alguma razão, desapareceres, as suas reacções seriam algo do tipo: "ai é? bem, toca a todos".
Para além disso, outra ideia base que quis abordar foi que é cada vez mais difícil "cair no goto" das pessoas. Custa-me muito não ser marcante, não conseguir interessar as pessoas. A indiferença assusta-me, acho que sempre me assustou. E acho que é cada vez mais raro termos uma oportunidade real para estabelecer uma ligação decente, frutuosa, agradável.
Penso que uma das causas seja o facto de haver tantas solicitações e tantas pessoas no mundo. É aquilo a que eu chamo de "efeito caçadeira" - espraiarmo-nos por demasiadas pessoas e por demasiadas coisas não nos vai criar ligações fortes com elas.
Criam-se equívocos, as conversas são interrompidas por outras com outras pessoas, os caminhos de conhecer alguém ficam artificialmente cortados.
Acho que, no fundo, estou a perder a fé nas outras pessoas, e está a acontecer algo que nunca pensei acontecer: está-se a esgotar o meu interesse e a minha preocupação, generalizadamente, pelo outro.
Sad but true.
STP gostei muito do teu texto, sobretudo porque fala de um tema que inadvertidamente se apodera de nós. Eu tenho menos uns aninhos do que tu e já sinto a distância que me separa dos grandes amigos de outrora. Fizeram parte da minha vida mas foram saindo dela gradualmente, restando apenas 1 ou 2. Esses não me mandam emails de amizade, ligam-me de quando em vez para sair ou para conversar. Podemos até estar quase 1 ano sem contactar mas sabemos que temos ali alguém que gosta de nós. Para mim são esses os verdadeiros amigos. Por vezes a vida não dá para muitos convívios e isso é uma realidade com a qual tenho de me habituar. Contudo, a distância une as pessoas se elas assim o quiserem.
ResponderEliminarSomos amigos há pouco tempo (5 anos?) mas de certa forma serás das poucas pessoas com as quais manterei contacto depois de acabar a faculdade. Não sei porque ficámos amigos ... lembro-me que começámos a falar nos intervalos das aulas ... depois umas idas a praia para jogar umas futeboladas ... os t.p.c.s de anatomia ... enfim, uma série de coisas que acabaram por construir uma amizade que marcará o meu percurso pela faculdade. Foste de certo modo o meu padrinho e nem por isso me emprestaste dossiers ou livros copiados da farida. Foi algo que surgiu naturalmente talvez porque tenhamos pontos em comum. Para mim é difícil escolher os amigos. Eles vão surgindo porque gosto de estar com eles, de falar, discutir ideias ... Para mim os amigos não se impõem ou escolhem, surgem com o tempo. É essa a base que solidifica qualquer amizade.
Bom texto, mas equanto somos jovens mais vale guardar o que á de bom e largar as vivências más para outros com mais "idade"...
ResponderEliminarA vida é como uma k7 de video...a fita vai ficando gasta, mas mesmo assim tudo se vê quase nitido!
E anda por aí mto boa k7 de video á espera de ser vista... :)
Cara isa: tenho orgulho em te ter como colega e amiga. E também não sei muito bem como surgiu a nossa amizade, mas o importante é que surgiu, e fico mesmo contente por pensar retrospectivamente, desde os acontecimentos mais recentes até aos mais antigos, e ver que és provavelmente a única pessoa que nunca me desapontou.
ResponderEliminarNão vale a pena estar a enumerar as situações em que pude contar com o teu apoio e com a tua ajuda. Se fossem apenas aquelas de natureza académica, só por aí já seriamos bons amigos. Mas sabemos que seria muito redutor da minha parte lembrar-me apenas dessas.
És em boa medida responsável por eu até agora não me ter lixado no curso, e também, porque não dizê-lo, por não me ter ido abaixo em tantas coisas que têm sucedido desde que nos conhecemos.
Sinto que tenho tido até agora uma vida cheia de pormenores intrincados, complexos, difíceis de gerir, que decerto daria um interessante e surpreendente relato, relato esse que duvido muito que algum dia tenha paciência para escrever. No entanto, tu farias parte dele em muitos capítulos :)
Muitos beijinhos!