Embarcou à três meses mas só ontem recebi a primeira carta. Diz que está bem, que a comida é boa, mas faz muito calor. Está bem, e come bem e isso é que importa e que Deus nosso senhor o proteja e guie.
- Ai está bem? Isso é que importa, uma guerra onde se come bem, embora com algum calor – acenando a cabeça o merceiro põe as compras numa cesta. Embrulha bem meia dúzia de ovos em papel manteiga e passa o cordel pelo embrulho com duas postas de bacalhau alto, do bom para grelhar – deve até dar para ir a banhos!
O senhor Augusto por acaso não está a fazer troça da dor duma mãe? É que se for esse o caso deixe que lhe diga que faz muito má figura! Como até um parvo vê, agarro-me ao que de bom tenho.
- Dona Maria Teresa, por acaso eu troçaria com a dor duma mãe que vai ao cais das colunas ver o único filho, arrancado das carteiras da escola industrial – e bom aluno se dizia ser -, partir para o ultramar sem regresso certo? Mas olhe, agarre-se bem, não vá correntesa a baixo.
O cesto foi arrancado ao balcão e restolhado pelas sacas de cereais que se dispunham até à saida, tão veloz que deixou uma nuvem de pó por assentar. Augusto vem à porta compor as sacas no seu passo calmo e decidido, sempre com uma vassoura na mão, caso o pó volte ou algum pilantra lhe esteja a galar as résteas de cebolas e os caracóis que estão à porta.
- Ai está bem? Isso é que importa, uma guerra onde se come bem, embora com algum calor – acenando a cabeça o merceiro põe as compras numa cesta. Embrulha bem meia dúzia de ovos em papel manteiga e passa o cordel pelo embrulho com duas postas de bacalhau alto, do bom para grelhar – deve até dar para ir a banhos!
O senhor Augusto por acaso não está a fazer troça da dor duma mãe? É que se for esse o caso deixe que lhe diga que faz muito má figura! Como até um parvo vê, agarro-me ao que de bom tenho.
- Dona Maria Teresa, por acaso eu troçaria com a dor duma mãe que vai ao cais das colunas ver o único filho, arrancado das carteiras da escola industrial – e bom aluno se dizia ser -, partir para o ultramar sem regresso certo? Mas olhe, agarre-se bem, não vá correntesa a baixo.
O cesto foi arrancado ao balcão e restolhado pelas sacas de cereais que se dispunham até à saida, tão veloz que deixou uma nuvem de pó por assentar. Augusto vem à porta compor as sacas no seu passo calmo e decidido, sempre com uma vassoura na mão, caso o pó volte ou algum pilantra lhe esteja a galar as résteas de cebolas e os caracóis que estão à porta.
Andaste a chatear mais uma mãe que deu o filho ao prego? Augusto, Augusto...
- Olha lá, não devias estar ali em Santa Apolónia a pedir esmola aos que chegam, já que os que partem ou vão sem esperança ou sem dinheiro? És cego, és cego mas é para o que te cheira!
O Dr de S.José disse que eu era invisual, cego é uma parte da tripa! – e vá de se sentar numa saca de cevada por encetar que estava por ali á mão. Eu também ia ás sortes se Deus nosso senhor me tivesse destinado a ver.
- Assim destinou-te a pedinte na estação de Santa Aplónia. Mas pelos vistos já podes comandar batalhões, foste promovido a invisual! Isso até faz uma bela rima com General, General invisual! Não parece muito longe da realidade – por breves instantes pousou a vassoura mas logo a energia de mercieiro o tomou – vamos mas é a levantar dai o traseiro que isso não é uma espreguiçadeira.
Bem se aqui está, com a brisa do Tejo e mesmo defronte para a estação. Mas tens razão, chega de cobra, vou mas é ganhar a vida, a ver se chega para a bucha. Augusto atirou um papo seco para o colo do ex-cego agora invisual e começou a varrer energicamente, como se tivesse de varrer a esmola. Varria com tanto empenho que nem notou o reboliço que se formara à frente da estação, onde militares e polícias corriam em todas as direcções, vasculhando todos os cantos e todos os carros. Quando a nuvem de pó assentou, Augusto vislumbrou agentes a virem em sua direcção, que mais pareciam atiçados tal era o passo. Que venham, tudo o que leio alimenta a caldeira, tudo o que não leio não sei.
Boas tardes, precisamos de entrar na merceiria, com licença! – a educação não costuma faltar aos agentes da polícia agora aos do exército não constava que fosse item prioritário na sua formação.
- Precisam de alguma coisa? Em que os posso ajudar? – perguntou Augusto pousando a vassoura não vá o diabo tecê-las e a fiel amiga ainda se virava contra ele. Não obteve resposta.
Bom dia sr Augusto – saudou o habitual agente Palha, Zé Palha para quem entrava no seu círculo de amigos – andam à procura dum mancebo que fugiu, acho que ainda por cima é comuna ou como é que se chamam esses diabos. Chegaram de Santarém para embarcarem para a Guiné e o sacana escapoliu-se, evaporou-se melhor dizendo! - esticando o dedo como se tivesse a leccionar a mais preciosa matéria do alto dum estrado.
- Compreendo, não quer ir a banhos? Se calhar não gosta da praia, ou é mau de boca, muito embora a comida no Ultramar seja boa.
Como sabe disso? Já lá esteve?
- Não, não, chegou-me aos ouvidos, acho que é o que os nossos soldados mais escrevem nas cartas para casa, que está calor por lá mas come-se bem. Se calhar devia mudar o negócio para essas paragens, até gosto do calor e comer bem também não me custa.
Um homem alto de bivaque saiu da merceiria. Aparentava uns robustos 30 anos e tinha traços sizudos e fechados. Abeirou-se dos dois homens que pacatamente trocavam palavras à porta da loja e avisou Augusto que se visse algum mancebo fugido, ou se soubesse de alguma coisa para avisar as autoridades competentes sob pena de ser acusado de ocultamento e colaboração com um desertor. Sim senhor saiu da boca de Augusto em coro com o agente Palha, que não ficou indiferente ao peso de tais palavras. Meio embaraçado saiu despedindo-se com um aceno de cabeça e com um já sabe, se vir qualquer coisa de suspeito... Augusto respondeu-lhe com um vá descansado. Pegou na vassoura e voltou para dentro que aquilo ali fora era um mar agitado demais para a sua barca.
Estes tipos são mesmo intragáveis, pobre rapaz, espero que já esteja bem longe daqui são e salvo. A trabalheira a que eles se dão por causa dum pobre rapaz que só quer que o deixem na escola e jogar à malha. Vou mas é por as pipas à porta que o comboio do Cartaxo deve vir a horas e depois fico sem vinho. Galgou dois degraus e abriu a porta das traseiras, reparando que havia pó no ar. Começou a desarredar as pipas e a deitá-las pois vá lá um homem carregá-las doutra maneira que não seja rebolando. Estas aqui estão vazias, gastei-as primeiro para agora não ter trabalho a desarredá-las, o método vence sempre. Nem sempre. Mas que inércia tem esta pipa vazia, que ar tão pesado é este, bolas! Tenho a certeza que a gastei, deixa-me a lá virar. O peso da pipa ultrapassou o ângulo limite que a faria estar em equilíbrio e rebolou como não devia, contra a parede, fazendo soltar um som abafado.
- Bolas, isto quando corre mal, corre mesmo mal, irra! Só me faltava uma pipa rachada, e o comboio aí a vir! A força que teria de dispender para tentar erguer a pipa parecia-lhe sobre humana, mas que raio de enguiço será este agora, é a paga por zoar das mães orfãs de filhos. Ladeou a pipa e reparou numa mancha de vinho na face que tinha ficado para cima, que estranho, mas o vinho sai pelo topo? Mas isto não é vinho, e ao abrir a pipa viu que o peso desta afinal não era devido a um ar mais pesado.
- Bolas, isto quando corre mal, corre mesmo mal, irra! Só me faltava uma pipa rachada, e o comboio aí a vir! A força que teria de dispender para tentar erguer a pipa parecia-lhe sobre humana, mas que raio de enguiço será este agora, é a paga por zoar das mães orfãs de filhos. Ladeou a pipa e reparou numa mancha de vinho na face que tinha ficado para cima, que estranho, mas o vinho sai pelo topo? Mas isto não é vinho, e ao abrir a pipa viu que o peso desta afinal não era devido a um ar mais pesado.
Hey jovem :)
ResponderEliminarAinda não tinha tido a oportunidade de comentar aquela que se espera ser a primeira parte do teu conto.
Confesso que fiquei surpreendido por escreveres particularmente sobre períodos de guerra. Mas, no fundo, no fundo, estamos sempre em guerra, não é verdade?
Sublinho mais uma vez o gozo que tenho de ler o que escreves, especialmente porque tenho o privilégio de te conhecer pessoalmente, e relativamente bem, e portanto posso imaginar-te a contar a história à medida que a leio. Não a deixes pela metade, continua...
Um abraço :)