A brisa gélida perpassa a janela semicerrada. Está um frio seco lá fora e o meu corpo bramante reclama pelo aconchego do edredão. Para trás deixo longas horas de espera, corredores atolados, horas infindáveis em que me perco e nada faço, comboio, metro, cansaço.
Quando um dia completar o curso lembrar-me-ei destas manhãs heróicas de desprezo e tédio. Ainda que procure não colocar as mãos nos bolsos, sinto-me inútil e ignorada ao passar pelas portas dos quartos. Trata-se de uma espécie de passeio matinal, entremeado por uma ou outra ida à cafetaria. A Drª corre pelos corredores olhando para o chão. Dos seus contornos lânguidos, apenas se destacam os caracóis irregulares pendentes de uma plataforma viscosa e as pontas das botas que berram a cada passo frenético.
O curso de medicina (sim, aquele curso cuja admissão exige altíssimas classificações) é melismático – muita música, o mesmo discurso. Nada se move. Tudo permanece estático e silencioso, numa falsa harmonia e paz. Os estudantes perdem-se pelos corredores e os tutores, os mestres orientadores, deixam-nos passar. O saber, aquela virtude que exige desafios e encaminhamento, não chega a brotar nas nossas mentes tão “brilhantes”.
Volto à noite. A esta noite. Finalmente encontrei o conforto do lar. As luzes estão apagadas, permanecendo apenas o verde luminescente das constelações que desenhei no tecto do meu quarto. Tomara que fossem verdadeiras estrelas, estas que incessantemente me olham e nas quais deposito o meu olhar ébrio. Ouço poesia acompanhada pela música de Jorge Palma. São poemas de Abril, gritos revoltos de coragem sublimados pela melodia nostálgica de um músico, de uma voz que canta o canto dos poetas.
De repente, esta “apenas noite” apoderou-se de mim. Também eu estou nos versos e nas palavras que transbordam pelos meus olhos. Quem não se reencontra nas entrelinhas de Eugénio de Andrade, Ary dos Santos, Sophia, Torga. Eles estão aqui comigo, agora. Sinto a presença deles a meu lado e num tempo distante anseio pela mesma liberdade.
O ciclo eterno que sacraliza a nossa humilde condição de transeunte surge cada vez mais nítido. Independentemente daquilo que pautou a vida de cada ser, há na doença uma convergência inevitável. Hospitais, gente, confusão, dor. A qualidade dos cuidados médicos não deve de todo basear-se na maior ou menor dimensão humana do doente, nem tão pouco no grau de diferenciação intelectual. Contudo, esta equidade a que me refiro não deverá ser medida por defeito – quantos de nós não se sentiram já “presos” numa cama de hospital, resignados com os “estranhos” termos médicos e largados à sorte no tumulto da doença?
Neste jogo que procura respostas e palavras de esperança falta muitas vezes lugar para o ser. Não procuro encontrar culpados. Apenas alerto para a impaciência e intransigência impregnadas naqueles corredores e salas por onde diariamente caminho. A bata branca e o estetoscópio não superlativam a moral de ninguém. Deixemos de lado o terrível hábito de julgar quem quer que seja. Os doentes devem ser orientados e não tratados como crianças. A reprimenda não faz parte da medicina e o direito à informação é inalienável. Fica o apelo.
Quando um dia completar o curso lembrar-me-ei destas manhãs heróicas de desprezo e tédio. Ainda que procure não colocar as mãos nos bolsos, sinto-me inútil e ignorada ao passar pelas portas dos quartos. Trata-se de uma espécie de passeio matinal, entremeado por uma ou outra ida à cafetaria. A Drª corre pelos corredores olhando para o chão. Dos seus contornos lânguidos, apenas se destacam os caracóis irregulares pendentes de uma plataforma viscosa e as pontas das botas que berram a cada passo frenético.
O curso de medicina (sim, aquele curso cuja admissão exige altíssimas classificações) é melismático – muita música, o mesmo discurso. Nada se move. Tudo permanece estático e silencioso, numa falsa harmonia e paz. Os estudantes perdem-se pelos corredores e os tutores, os mestres orientadores, deixam-nos passar. O saber, aquela virtude que exige desafios e encaminhamento, não chega a brotar nas nossas mentes tão “brilhantes”.
Volto à noite. A esta noite. Finalmente encontrei o conforto do lar. As luzes estão apagadas, permanecendo apenas o verde luminescente das constelações que desenhei no tecto do meu quarto. Tomara que fossem verdadeiras estrelas, estas que incessantemente me olham e nas quais deposito o meu olhar ébrio. Ouço poesia acompanhada pela música de Jorge Palma. São poemas de Abril, gritos revoltos de coragem sublimados pela melodia nostálgica de um músico, de uma voz que canta o canto dos poetas.
De repente, esta “apenas noite” apoderou-se de mim. Também eu estou nos versos e nas palavras que transbordam pelos meus olhos. Quem não se reencontra nas entrelinhas de Eugénio de Andrade, Ary dos Santos, Sophia, Torga. Eles estão aqui comigo, agora. Sinto a presença deles a meu lado e num tempo distante anseio pela mesma liberdade.
O ciclo eterno que sacraliza a nossa humilde condição de transeunte surge cada vez mais nítido. Independentemente daquilo que pautou a vida de cada ser, há na doença uma convergência inevitável. Hospitais, gente, confusão, dor. A qualidade dos cuidados médicos não deve de todo basear-se na maior ou menor dimensão humana do doente, nem tão pouco no grau de diferenciação intelectual. Contudo, esta equidade a que me refiro não deverá ser medida por defeito – quantos de nós não se sentiram já “presos” numa cama de hospital, resignados com os “estranhos” termos médicos e largados à sorte no tumulto da doença?
Neste jogo que procura respostas e palavras de esperança falta muitas vezes lugar para o ser. Não procuro encontrar culpados. Apenas alerto para a impaciência e intransigência impregnadas naqueles corredores e salas por onde diariamente caminho. A bata branca e o estetoscópio não superlativam a moral de ninguém. Deixemos de lado o terrível hábito de julgar quem quer que seja. Os doentes devem ser orientados e não tratados como crianças. A reprimenda não faz parte da medicina e o direito à informação é inalienável. Fica o apelo.
Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
Eugénio de Andrade
Eugénio de Andrade
A poesia cessa com a música. Nos meus ouvidos ressoam ainda os sons do piano. A noite vai longa e o sono apodera-se de mim. Extinta a luminescência das estrelas de plástico, tudo se torna mais nítido. Procuro no silêncio da casa um lugar para o sono. As palavras misturam-se e deixam de fazer sentido. E eu “sem vocação para a morte” continuarei na senda do sonho de vir a exercer medicina.
Agenda artística do cantautor Jorge Palma actualizada em www.bloguepalmaniaco.blogspot.com
ResponderEliminarnewsletter/informações: contactar ladoerradodanoite@hotmail.com
Pois é Iris... parece-me que estavas à espera de algo mais do curso. Chegará a tua vez de mudar as coisas nem que seja um pouquito.
ResponderEliminaro futuro somos nós...nunca te esqueças disso..o futuro somos nós..perdoa-me o clichet, mas...facemos dele um futuro melhor...inquieto
ResponderEliminar