13 de outubro de 2006

Sem título *



* Este foi um texto pedido pelo (in)excelso professor de oncologia. Dado que o s' TÔR nem sequer vai lê-lo e como não gosto de trabalhar para as paredes (já segurar nelas é outra coisa), deixo este post para quem quiser ler :)

A escolha de um caso clínico particularmente marcante reveste-se sempre de alguma dificuldade, sobretudo se estivermos a pensar em doenças oncológicas. A doença, em sentido lato, é composta essencialmente por duas dimensões – a física, que contempla os mecanismos fisiopatológicos e respectivas alterações orgânicas; a humana, que diz respeito à influência psicossocial exercida no doente e nas pessoas que o rodeiam. Ainda que ambas se complementem e sejam, diria mesmo, indissociáveis, a vertente humana é, em meu entender, a que maior carga emotiva confere a uma história clínica. Desta forma, deixarei os mecanismos de doença um pouco à revelia deste texto.
Na condição de jovem estudante de medicina, ávida de conhecimento, doentes e doenças, esqueço muitas vezes que diante de mim não existem apenas músculos, ossos, órgãos e vasos. Se assim fosse, bastariam meros rudimentos de anatomia, fisiologia e clínica para envergar uma bata branca e um estetoscópio. Ser médico está para além do saber científico que de forma imberbe teimo em colocar num plano superior.
Durante o estágio prático de hematologia (4º ano), chegou à consulta uma jovem, S.M., acompanhada pelo pai. Ambos traziam um brilho no olhar e a euforia de quem acabara de receber a informação da existência de um dador compatível de medula óssea.
S.M. era uma doente de 27 anos com leucemia mielóide aguda (LMA) e com indicação para transplante de medula óssea. Tinha sido saudável até ao despoletar da doença. Acabara a licenciatura e preparava-se para fazer uma pós-graduação. Contudo, de forma súbita, o seu percurso direccionou-se para o IPO e para a luta que diariamente viria a travar. De repente, todos os projectos deixaram de fazer sentido, a vida era uma causa perdida.
Na fase inicial do tratamento sentia-se vencida e mal conseguia reagir àquela doença que, de forma insolente, invadia o seu corpo. Perguntava frequentemente a si própria a razão e o porquê de estar naquela situação, sentindo-se injustiçada e revoltando-se contra os entes mais próximos.
Durante o internamento e tratamento, o contacto com outros doentes, por vezes até mais jovens do que ela, foi preponderante para a sua mudança de atitude, fazendo da esperança uma fonte de força e determinação para combater aquele estado de saúde que a debilitava cada vez mais. Cada biopsia medular passou a ser encarada como apenas mais uma e aquilo que inicialmente parecia impossível, tornava-se realidade. Dedicou-se aos estudos, conseguindo completar a pós-graduação – autêntica prova de motivação, esforço, empenho e vontade de viver. Dos episódios de internamento destaca-se, pela sua importância clínica e prognóstica, o desenvolvimento de infecção respiratória baixa por Aspergillus sp. com pneumectomia subsequente.
No dia da consulta (anteriormente referida), depois de tanta incerteza e angústia, S.M. vislumbrava uma solução para o seu problema. Sentia que de alguma forma poderia voltar a nascer e recuperar o tempo que a doença furtara. Tanto ela como o pai e o resto da família, cujo incessante apoio em muito contribuiu para a forma activa com que passou a encarar a doença, depositavam grandes esperanças, senão todas, no transplante. Não obstante a importância de tal procedimento, as notícias da médica assistente viriam a frenar aquela alegria. Antes de mais era preciso fazer ainda alguns testes de compatibilidade, embora tudo indicasse que o dador seria aquele, e era preciso cuidar da infecção fúngica, dado que a intensificação da imunossupressão devida ao transplante poderia agravar ainda mais aquela infecção. Vistos os riscos e os benefícios, era quase certo que S.M. iria ser submetida a transplante contudo, as hipóteses de sucesso rondavam apenas os 30%.
Enquanto assistia à consulta e à medida que a euforia inicial da doente ia esmorecendo, fui forçada a conter as lágrimas ou qualquer outra manifestação de tristeza. Nunca dantes tinha sido tão difícil sorrir para alguém, numa atitude apaziguadora de dádiva e esperança. Procurei ser forte e utilizar os tão aclamados mecanismos de defesa. Pela primeira vez senti que diante de mim estava um ser, cuja confiança quebrava os limites da própria evidência médica. S.M. considerava aquela fase da sua vida um interlúdio – o futuro seria ainda melhor do que o passado.
Acabada a consulta de S.M., outros doentes e outras doenças chegaram até mim de forma insidiosa e ténue. Naquele dia parecia que mesmo que me acontecesse algo de muito grave, nada poderia ser pior do que a situação de incerteza que S.M. e a sua família enfrentavam.
Ao final da manhã, a médica assistente fez uma espécie de visita guiada ao serviço. Foi então que vi de novo S.M., durante uma sessão de quimioterapia. Tinha tirado a cabeleira postiça que levara para a consulta e podiam então observar-se várias equimoses no seu corpo. Se a identidade de uma pessoa fosse determinada exclusivamente pelo aspecto exterior, diria que quem ali se encontrava não era a S.M. que aparecera uma hora antes na consulta. Apenas o sorriso sofrido e humilde se mantinha, não ousando sequer quebrar a esperança que nela germinava e fortalecia diariamente. De mão dada com o pai, que guardava para si o medo da incerteza, transmitia a confiança e coragem plenas dos que já experimentaram a dor e que, conhecendo a efemeridade da vida, empreendem toda a sua força na luta contra a doença.

Quando passei os portões do hospital, o sol ainda brilhava e o céu azul era convidativo. Decidi caminhar um pouco para espairecer, contudo, aquele quadro permanecia nos meus pensamentos. Os sinos certamente dobravam por mim, não me referindo à morte mas sim ao momento que marcou o meu despertar para a perspectiva humana do doente, tão discutida nas cadeiras da faculdade. Os mecanismos de defesa não estão em nós a priori, devendo evoluir a partir de um conjunto de experiências como esta. É impreterível perceber a vida em toda a sua essência e escutar aquilo que razão muitas vezes procura esconder.


2 comentários:

  1. Gostei muito do teu texto, Isa. E, ao lê-lo, confirmei a opinião que tinha sobre este trabalho, que também me foi requerido, e que optei por não fazer.
    A expressão "pérolas a porcos" adequa-se aqui como uma luva. Acho de muito mau gosto um professor pedir aos alunos um texto pessoal sobre uma temática tão delicada e movediça como esta, quando não tem intenção de dar a atenção que esse texto, por definição, merece.

    Não tenho dúvidas que os meus caros colegas contaram histórias sentidas - pelo menos, a maior parte deles; enquanto estava no bar a tomar o pequeno almoço esta quinta feira até me veio a meia de leite à boca, quando ouvi uma gaja a dizer que inventou a história e que tentou escrever como se tivesse sido muito sentida, como se a tivesse marcado muito... realmente não ter coração pode ser uma faca de dois gumes, não concordas?

    Eu optei por não escrever esse texto. "Ai, és tão estúpido, ficaste sem uma décima na nota final" - ao que eu respondo: "nem que chumbasse". Não. Na verdade respondi "não fiz porque não me apeteceu", porque essa tal gaja nunca iria compreender o meu ponto de vista.
    Não vendo as minhas emoções e os meus textos por tão pouco. Por tão pouca nota e por tão pouca atenção. Se escrevo, é para que as pessoas que decidem ler, o façam, sem nada em troca, sem intenções. Com que direito é que ele me vai avaliar um texto pessoal? Sobre uma situação pessoal? Pelo que tenho visto ele até nem é dotado de uma sensibilidade por ai além...
    Só o escreveria, se tivesse certeza que ele fosse ler, e me chumbasse em seguida.

    Isto tudo para dizer que adorei o teu texto, e que fizeste bem em pô-lo aqui no blog, porque de certeza que algumas pessoas lhe irão dar a atenção que merece.
    Um beijinho grande :)
    João

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  2. Está um texto bastante bom: revela a angústia do doente oncológico; revela a angústia do médico (futuro) perante a incapacidade de curar. A capacidade de tratar já é outro assunto. Em suma, é uma "novela" bem real e que nos deixa sempre um pouco inquietos - por muito frios que sejamos em relação a este tema.

    stp: é impressão minha ou essa "gaja" é aquela que levava uma snipada na cabeça?


    Abraço a todos!

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