31 de agosto de 2006

Dás-me um beijo?


... e ao voltar de não sabemos onde, sentou-se à espera do eléctrico num daqueles separadores de metal que estão nos passeios para tentar evitar que as pessoas atravessem as ruas em determinados pontos. Tinha anoitecido sem se dar por isso, mas o vento que soprava em direcção ao rio continuava quente, ainda de Verão, embora Setembro se aproximasse pé ante pé para que não o ouvissemos chegar. Um ou outro casalinho de estrangeiros deambula em passos inseguros, empunhando mapas da cidade, guias de transportes, dicionários para turistas.
Do outro lado da rua, um quiosque aproveita ainda para tentar vender jornais moribundos, feitos de notícias que nunca tiveram vida, apesar de inventadas por mentes tão desesperadas por furos jornalísticos como cozinhadas pelo calor que em todo o lado penetra. É a fruta da época - embora se saiba que, cada vez mais, a silly season se estende pelas quatro estações. Mas Johannes, que veio não sabemos de onde, está alheio a tudo isto. Limita-se a estar. Espreguiça-se como um gato e quase cai do poleiro para a estrada que está por trás, embebida na velocidade de alguns carros que passam àquela hora sem respeitar os semáforos, mas nem o susto o desperta do torpor. Johannes vem bêbado, mas não bêbado de cerveja ou de um vinho a martelo qualquer: os seus pulmões estão cheios de suspiros; a sua pele vem barrada de carícias; os seus músculos descontraídos de satisfação. Johannes tinha certamente estado com alguém muito especial.

O placar digital ao seu lado, por cima da sua cabeça, que supostamente informa os tempos aproximados de espera dos transportes, está completamente descontrolado. Vários números piscam sem ritmo aparente; o E15, que Johannes espera, demorará cerca de 120 minutos a chegar àquela paragem. Embora gostasse de definir escalas para depois as rebentar, ele sabia que aquele tempo não correspondia à verdade. E, na verdade, 30 segundos depois, o eléctrico chegou.

Depois de fintar um pequeno corredor pejado de estrangeiros e de gente estranha à sua maneira, ele chega à ponta do eléctrico. É um eléctrico antigo, feito de madeira, de dimensões reduzidas. O condutor parece apressado, visto que acelera a fundo assim que entra o último passageiro. Parece que o veículo se vai desfazer, e as pessoas mais velhas, sentadas, abanam a cabeça em direcção ao homem do leme em sinal de reprovação. Johannes viaja, naturalmente, em pé, mas à janela, escancarada. É tão fina a fronteira entre o dentro e o fora, apenas dois dedos de espessura de madeira. E a parede é mais janela do que outra coisa - à altura da cintura - bastando um pequeno empurrão oportuno para aterrar na estrada. Enquanto Johannes pensa despreocupadamente nisto, é interpelado por um casal de estrangeiros de meia idade (não consegue perceber de onde vêm, mas falam um inglês perfeito):

- Excuse me!
- Yes?
- Could you please tell us how to go to "Jerownimux"?
- Sure! See this line on the map over here? It's the road where you are now. You wait in this ..."train"?... until Belém, or even better, until Centro cultural de Belém. I'll warn you when you have to get down, don't worry. Then you'll see Jerónimos right in front of you.
- Hey, tank you, pall!
- It's ok!
Johannes voltou ao torpor, embora não se possa dizer que o eléctrico o embalasse. Na verdade, o condutor acelerava como se não houvesse amanhã, e travava a fundo em todas as paragens, como se estivesse a testar os travões. Mas não ficou sozinho por muito tempo.

- I'm sorry pall, do you have a lighter?
O casal tinha acabado de enrolar um charro do tamanho de uma caneta bic. Johannes nem nunca tinha visto ao vivo mortalhas tão grandes.
- Hmm... let me see.
Fingiu procurar atentamente nos bolsos. Fingiu, porque sabia que nada trazia nos bolsos dos calções de ganga, a não ser um isqueiro Clipper. Na verdade, Johannes nem bilhete tinha para o eléctrico. Antes de o dar, disse ao casal:
- See this lighter? You can do this with it (desmontou a roldana que faz atrito na pedra para produzir faísca, que vem com um pequeno pauzinho agarrado)!
- And what the hell is that for? - perguntou o rapaz, admirado.
- Well, you may find it usefull to make that joint, see? (e calcou com o pauzinho a ponta do charro que o casal estava a fazer).
- Oh, that is sooo cool! May i have it? - diz a rapariga.
- Well, you really shouldn't smoke inside the train ... but if you share that with me you may keep the lighter! - Johannes ri-se como se estivesse a gozar, mas na verdade estava a falar a sério.
- How rude of you, Arek! He was so nice with you!
O rapaz ri-se e aceita bem a proposta. Acende o charro.
- I thought portuguese people didn't like it!
- Are you planning to get high and then watch mosteiro dos jerónimos? Never done that! Might be cool!

A viagem continua, e curiosamente o eléctrico parece prosseguir cada vez mais devagar. Talvez o condutor tenha entrado no espírito dos três viajantes do fundo... ou então apenas lhes parecia dessa forma. Passados alguns minutos, ainda o charro ia a meio, e depois de alguma conversa em inglês, banalíssima para os restantes passageiros, mas que parecia carregada de profundidade universal para Johannes, este julga sentir o cheiro das oliveiras do jardim dos jerónimos.
- You have to get down in the next stop!
- Tank you pall! And tanks for the lighter.
- You're welcome! Enjoy! Bye! Have fun!
O eléctrico está agora meio vazio, e isso permitiu-lhe sentar-se à janela, que lhe dá agora quase pelo nível do cotovelo. Põe o braço de fora e recosta-se confortavelmente no banco.
Johannes sentiu-se como se estivesse no comboio das praias da caparica. E então deixou-se embalar pelas irregularidades de percurso. Observava com demasiado interesse os edifícios, as luzes dos candeeiros; saboreava longamente os cheiros trazidos por aquele vento de verão que teimava em não arrefecer; perscrutava demoradamente as caras dos passageiros, que se perguntavam porque é que ele os olhava, antes de desviarem os olhares; pensava todos os estímulos visuais, auditivos, olfactivos, e delineava teorias, como se tudo estivesse ligado por uma ordem ditada superiormente, como se tudo fizesse sentido. E então lembrou-se outra vez dela.

Fechou os olhos. Com as pontas dos dedos desenha-lhe o rosto a traços leves, as feições, as sobrancelhas, os lábios, o sinal por baixo do lábio e descaído para a esquerda que já tão bem conhecia. Penteia-lhe o cabelo com os dedos entreabertos, desde a raíz até ao pólen, enquanto a puxa para si com a outra mão, pelas presilhas das calças de ganga. Sente-lhe o perfume irresistível por baixo da orelha, e fecha os olhos com mais força. Sente-se agora em comunhão com as forças do universo.
Enquanto as carícias imaginárias se sucedem, Johannes recorda mentalmente o seu sorriso, que só aparece de quando em vez, mas que ilumina qualquer coisa dentro de si e lhe dá uma vontade inexplicável de sorrir também. E tudo sobre ela continua a encaixar e a formar um puzzle enorme, com cada vez mais peças, mas cada uma que vem encaixa ainda melhor nas precedentes.
Não é preciso Johannes pedir-lhe um beijo, porque ela lho dá quando ele mais o deseja, sem ele lho dizer. E ele sabe que ela o quer tanto como ele. Não são necessárias palavras; basta que ela passe a mão pela sua cara e olhe para ele como Johannes recorda para que ele se sinta especial para ela. E recorda. E reconstrói. E reinventa...
"Gosto tanto tanto de ti!"
"Gostas gostas..."
"Pois gosto!"
"Então, que é que eu disse?".
Abraçou-a, tem-na agora perto de si, e o eléctrico vai em frente mais depressa, enquanto apita com aqueles barulhos musicais que só os eléctricos têm, que são parecidos com o toque dos telefones antigos. Sempre em frente. Johannes poderia sair em qualquer paragem, mas quer ir até onde o eléctrico o levar; continua de olhos fechados, não quer saber onde está nem para onde vai. Apenas desenha repetidamente as feições dela enquanto se afoga no seu perfume.
*

- Algés! Última paragem!

Não sabemos de onde veio Johannes. Nem ele sabia que ia apanhar aquele eléctrico. Mas sabia que não podia tê-lo perdido.

4 comentários:

  1. porque é que sempre que eu nadava no 15 só apanhava aqueles putos da Casa Pia com mau aspecto?

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  2. não 'nadava', 'andava', obviamente...

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  3. Rui: ainda bem que fizeste esse reparo, senão claro que este meu comment era a gozar contigo ...
    Vieste lá de puntacana e agora só pensas em nadar... seu maluco!

    Cabelinho à gulbenkian... sim... andei a brincar com gel na praia :P
    Ainda não me deu para ir à faculdade assim, mas... é capaz de ser uma grande grização :)

    Abraços ;)

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