"E enquanto fitava as ondas que se revolviam umas nas outras, sentiu nas mãos geladas os grãos de gravilha húmida de diferentes formas e tamanhos. Inspirou fundo aquele vendaval polvilhado de névoa marinha, e começou a construir um invólucro imaginário que combatesse as leis da termodinâmica mais proverbial: hermético como um surdo-mudo na escuridão; inviolável como um livro que em dia algum será aberto; silencioso como o espaço sideral.
Então, depositou lá mil dias que passaram. Fechou vigorosamente o frasco e chocalhou o conteúdo, rodando sobre si mesmo, fazendo de si mesmo o eixo das suas reflexões, centrifugando todas as histórias, sóis e luas. Deixou assentar o cascalho no fundo, e as emoções subiram para os lugares que lhes cabiam por direito próprio, formando um gradiente que ia do negro pastoso ao branco fluorescente gasoso.
Quis então retirar o pouco sobrenadante que brilhava intensamente, desenhando um ténue filme mesmo no topo de todas aquelas ideias; queria guardá-lo consigo. Mas logo percebeu que não conseguia abri-lo, porquanto não mais poderia ser violado depois de fechado. Num acesso de fúria, atirou o recipiente com toda a força contra as rochas; este embateu violentamente, rolando de volta até aos seus pés.
De repente, ficou muito cansado. Franziu o sobrolho e ficou quieto, de cócoras, de mãos no queixo e cotovelos nos joelhos por um longo momento. "É inútil. Tenho de aceitar o mau com o bom" - pensou.
Depois, levantou-se e colocou o frasco no bolso da grossa gabardina. Afastou-se daquele lugar.".
In "Os novos Fragmentos de memória(s)".
bosnito
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