2 de novembro de 2023

Metáfora

 



   "Imaginem que estão sentados numa cadeira, em frente a uma mesa. Imaginem que em cima dessa mesa está um puzzle; puzzle esse que têm vindo a construir durante meses a fio.
    Imaginem as horas perdidas em redor deste... 
    Imaginem tudo aquilo que deram de vós para o ver finalmente construído...
    Imaginem a dedicação... 
    A obsessão que aquele puzzle representa... 
    O desejo inexplicável de o ver finalmente concluído.

    Imaginem agora que todo o puzzle está constuído. Falta uma única peça, peça essa que está na vossa mão, pronta para ser colocada no espaço em branco, no espaço que falta para, por fim, completar o puzzle e, de certa forma, para completar-vos a vós mesmos.

    Imaginem que, no preciso momento em que vão colocar a última peça no seu devido lugar, ela vos cai por entre os dedos. Imaginem-na a deslizar pelo chão...
desliza...
desliza...
desliza...

    Imaginem que esta peça, com toda a paz e equilíbrio que para vós representa, decide finalizar a sua viagem instalando-se confortavelmente por baixo de um móvel... Um móvel daqueles antigos, pesados, que exigem no mínimo a força de três homens robustos para serem movidos.

    Imaginem que, não sem uma ponta de desespero, se precipitam para esse mesmo móvel, com todo o tipo de objectos, procurando retirar de lá a tão ambicionada peça.

    Imaginem então que nenhum dos instrumentos de que se serviram para chegar à dita peça é suficiente para a alcançar.

    Imaginem que já tentaram tudo para remover a peça do sítio onde se instalou, mas sem sucesso. Imaginem que não há nada mais que possam fazer para tentar tirá-la de lá.

    Conseguem imaginar o que fariam então ?"

Moony, julho de 2007

*

    Minha querida Moony:

    Decidi ter a ousadia - ou cometer o sacrilégio - de continuar o teu texto.

   Primeiro exprimiu-se a veia de orto em particular, e de homem no geral, que me empurrou a fornecer soluções para resolver o problema.

    Já tentaste lá chegar com o cabo de uma vassoura? Tens a certeza que o móvel é assim tão pesado que não dá para arredar sem dares cabo das tuas costas? Será que não dá para tocar à campainha do terceiro esquerdo onde há uns jeitosos do ginásio que te podem ajudar? Será que não podes usar a "força" para atrair telecineticamente a peça para ti? Já experimentaste desligar e tornar a ligar?

    De facto muitos homens tendem a oferecer soluções aos problemas que as mulheres lhes apresentam, e não percebem que nem sempre é isso que elas pretendem. Vocês às vezes querem apenas ser ouvidas, e ouvir é uma coisa que muitos de nós não sabem fazer.

    A verdade é que a minha veia de orto em particular e de homem no geral está em transformação, agora que tenho tempo para reflectir. E, portanto, talvez não tenha o talento para terminar o teu texto de forma esteticamente atraente, nem o sentido prático de fazer facilmente um damage control aos problemas, mas fizeste-me pensar e sentir. Nunca é demais valorizar a capacidade de uma cabeça de pensar, e de um coração de sentir.

   O meu primeiro impulso foi responder-te que saberia exactamente o que fazer: desmanchar o puzzle imediatamente e metê-lo na caixa, e enfiá-la em cima de um armário. Mas o meu lado orto obriga-me a ser um reconstrutor, e o meu lado romântico impele-me a crer que não há impossíveis.     E que sim, há peças perfeitas, especiais, insubstituíveis. Eu e o meu Ѱ andamos à espadeirada por causa deste tema e acho que nunca estaremos de acordo, portanto se ele alguma vez ler isto irá abanar a cabeça de certeza.

    Será que a peça escorregou sozinha das tuas mãos ou foste mesmo tu quem a deixou cair? Vou excluir a possibilidade de a teres atirado deliberadamente ao chão e para debaixo do móvel, mas talvez não o devesse fazer tão levianamente, uma vez que acontece. 

Quer pelo medo de completar a façanha e não ter uma satisfação tão grande quanto se esperava.
Quer porque afinal nos fartámos de fazer puzzles.
Quer por um acesso temporário de insanidade.
Quer por acharmos que não merecemos a recompensa.

    A verdade é que a peça foi parar debaixo do móvel, e é lá que está. Ou será que não? Tens a certeza de que consegues vê-la? Domina o teu desespero e a tua vontade. Conseguirás esperar algum tempo, e ter ideias diferentes para recuperar a peça?
    
    Eu aprendi que o tempo e a paciência podem levantar alguns móveis, da mesma maneira que o tempo e o alheamento podem depositar monos em cima de nós sem que nos apercebamos.

    Conforme o tempo passa, muitas coisas podem acontecer. Um ratinho pode morder as orelhas à peça caída. A humidade pode fazer o cartão inchar como um mil folhas. A cor e os desenhos da peça podem desbotar. Uma corrente de ar vinda por debaixo da porta da rua pode soprar-te a peça de volta às tuas mãos. Um aspirador pode engolir-te a peça para sempre sem que o saibas sequer.

    E no entanto, durante esse tempo, como nunca mais a viste à luz vais sempre pensar que ela é ainda mais bonita e perfeita do que originalmente.

    Pode acontecer que nunca a recuperes, e se assim for o "e se?" tornar-se-á difícil de silenciar.
E pode até ser que quando a recuperares não gostes dela, ou nem sequer encaixe no puzzle.
   
   A metáfora mais importante é o puzzle, não é a peça. E um dia pode parecer-te que fica mais bonito sem ela.

    É que o puzzle também terá ficado diferente.

2 comentários:

  1. Meu querido...

    Longe de ser um sacrilégio, enche-me o coração ver-te pegar num texto meu e criar algo novo com ele (ou por causa dele).
    Tinha 19 anos, acabados de fazer, quando o escrevi. Pouco ou nada sabia sobre peças, ou puzzles, apesar de, na altura, estar convencida do contrário.
    É engraçado como o passar dos anos nos traz novas perspectivas.
    Hoje sei que nem todas as peças são alcançáveis, e que os puzzles podem refazer-se sem elas, criando padrões diferentes dos inicialmente pensados, mas não menos bonitos.
    Mas também sei que há outras pelas quais vale muito a pena lutar. Mesmo que estejam perdidas por baixo de móveis inamovíveis.
    Porque acredito, tal como tu, que há peças especiais, capazes de transformar simples puzzles em pequenas obras de arte.
    E quanto a essas, os últimos 16 anos ensinaram-me que compensa esperar, ainda que sem desesperar. É que, por vezes, com o passar do tempo, o móvel torna-se perro e, consequentemente, mais fácil de mover. Permitindo-te recuperar a peça e, finalmente, colocá-la no seu devido lugar.

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  2. Kintsugi. Também acredito em kintsugi.

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