12 de novembro de 2023

Entrançado


 

Andava com uma foto dela tipo passe, metida na carteira. Tinha sido surripiada para mim por uma amiga em comum, e desde então olhava-a embevecido e sonhava acordado diariamente.

Observava-a muitas vezes ao longe pela janela, meio escondido atrás dos estores, enquanto regressava da escola. Ou juntava-me aos treinos de basquetebol feminino só para poder estar um bocadinho mais perto dela. Os meus amigos diziam-me que um dia tinha de deixar de ser maricas.

Franzina, pequena, de olhos de um castanho esverdeado brilhante e sorriso de caninos felinos, quando olhava para mim as minhas supra-renais eram apertadas por mãos habituadas a torcer panos da loiça. É claro que durava meio segundo, porque eu desviava o olhar.

Um certo fim de tarde, depois de um treino, decidi respirar fundo e acompanhá-la a casa. O dia de inverno já se tinha feito noite, e o nevoeiro borrava a luz dos candeeiros da rua. Obviamente que ela já sabia o que eu ia dizer. Fiz da timidez força e disse-lhe que gostava dela, enquanto caminhavamos lado a lado, de olhos no chão. Supra-renais apertadas e com vontade de fugir. Claro que ela acelerou o passo e me disse que era muito querido e que era um belo amigo.

Quase trinta anos depois, ainda haveria de me dar conta de que essa tinha sido até então a única vez que me tinha declarado a uma mulher.

Passei as duas semanas seguintes, depois da escola, enfiado no quarto do Chico a ouvir Pearl Jam e Nirvana e a sentir-lhes as dores como minhas; ou então ficava na minha cama a olhar para o tecto. E continuava a olhar através dos estores para ela enquanto atravessava o descampado à volta da escola por entre as ovelhas que naquela altura ainda ali eram levadas a pastar, e jogava na mesma basquetebol com as miúdas.

Chegou o verão. 

Fui de férias com a família para a Ericeira, e lembro-me da minha avó e da minha irmã a divertirem-se a fazerem-me tranças no cabelo todo pela primeira vez, e eu a encolher os ombros sem qualquer medo do ridículo. Flutuava meio acordado pelas madrugadas dentro ouvindo música num walkman da Sonny, ou impedido de dormir pelos ataques das melgas, ou a imaginar o que ela estaria a fazer naqueles dias.

Um dia tivemos de regressar apenas para fazer as matrículas escolares. Naquele ano eu teria de mudar de escola porque ia transitar para o ensino secundário, mas ela permaneceria na mesma porque era um ano mais nova do que eu.

O nosso grupo de amigos ficava sempre à tarde ou depois do jantar numa praceta de terra batida entre duas fileiras de prédios,  e ela morava num desses prédios. Havia um pessegueiro nessa praceta, e todos os verões a fruta bichada caía de madura no chão e saturava o ar de um aroma doce inebriante.

E foi nessa praceta, nessa manhã quente e soalheira, que esbarrámos um no outro por acaso enquanto evitávamos pisar os pêssegos caídos. Eu de tranças no cabelo, ela de t-shirt azul escura. Sorriu-me muito e falámos. Pareceu-me alegre e especialmente simpática. Descobrimos que no dia em que eu voltasse outra vez da Ericeira iria ela para o norte. Pareceu-me desapontada como eu pelo desencontro de datas. Que voltariamos a encontrar-nos logo que ela regressasse. Sorriu-me outra vez, olhava-me nos olhos, e passou ao de leve a mão pelo meu antebraço. E enquanto nos afastávamos olhámos os dois para trás por cima do ombro. Tu queres ver que ... ?


*


Tinha sido convidado para sair na noite de Halloween. Nunca tinha aproveitado esta ocasião, embora quando em miúdo tivesse chegado a ir ao Pão-por-Deus na manhã do dia de Todos os Santos, a bater às portas dos vizinhos e a receber frutos secos, castanhas, romãs, moedas pequenas e alguns doces. 

De qualquer das formas sempre me agradou a possibilidade de encarnar personagens com roupas e adereços diferentes, e portanto decidi mascarar-me à minha maneira de estrela rock "agarrada".

Foi tudo um pouco à pressa. Rasguei umas skinny jeans e arranjei uma camisola terrível, larguíssima e compridíssima, com o padrão mais duvidoso que encontrei na Springfield. E encaminhei-me para o Centro Comercial Babilónia, conhecido por ser muito étnico e pelos inúmeros cabeleireiros. Certamente que ali alguém me iria entrançar o cabelo, mesmo que já a meio da tarde e em véspera de feriado.

Estava com dificuldade em parar o carro, e entretanto lembrei-me que ali perto havia uma cabeleireira que eu conhecia bem, mas que já não via há vários anos. Embiquei para aquela rua e estacionei em quatro piscas em cima do passeio. Lá estava o mesmo salão de sempre, desta vez vazio. Fiquei à entrada da porta uns segundos a olhar para a Lourdes, que arrumava as coisas, certamente preparada para fechar e ir embora.

Virou-se para trás e encarou-me. Uma expressão de alegria imensa invadiu-lhe a face e veio abraçar-me aos gritinhos. Fomos tomar café na pastelaria ao lado e falar da vida.

A Lourdes é agora cinquentona, mas continua bonita, sem um cabelo branco, enxuta, alta e imponente. Um traço. Falou-me dos filhos já crescidos e do marido que já não lhe liga há muitos anos mas de quem cuida porque talvez mais ninguém o fizesse. Há vinte anos eu tinha dado explicações de matemática ao filho dela, que agora é engenheiro e sabe mais de matemática do que eu já me esqueci. E ela guarda-me um carinho e uma gratidão que perdurou pelo tempo. Depois chamou pelo telefone um senhor que trabalhava numa oficina ali ao lado e com quem falava sobre mim porque ambos descobriram por acaso que ele era meu doente. O mundo é, de facto, uma ervilha.

"Mas João, eu acho que nunca fiz isso como deve ser! Já experimentaste ali no Babilónia? Ah, mas é para o Halloween? Então está bem, eu vou tentar, alguma coisa há de se arranjar!".

Trouxe-me uma enorme caixa de contas de feitios diferentes e disse-me para escolher. E esteve durante a hora seguinte a trabalhar no meu cabelo enquanto eu lhe contava a história da minha avó e da minha irmã a fazer-me tranças daquela vez quando era adolescente. A Lourdes conheceu a minha avó, a minha mãe, e conhece a minha irmã, e chegou a tratar do cabelo delas todas.

Saí de lá com um penteado melhor do que tinha imaginado, e ela insistiu em não aceitar pagamento. Pediu-me só o favor de regressar.


*


Há dois meses fui dar uma consulta numa clínica que fica pertinho da minha casa. Tratava-se de uma senhora de idade com quem tinha combinado fazer-lhe uma infiltração no joelho. É simpática, com a cabeça no sítio, e toda para a frente. Disse-me que tinha conhecido a minha avó, que toda a gente tinha conhecido a minha avó.

Ela tencionava ir a pé para casa depois do procedimento, apesar de lhe ter perguntado se tinha vindo com alguém para a ajudar. Respondeu-me que não.

Então saí de braço dado com ela, devagarinho, para descer as escadas e para a ajudar a entrar no carro. Acabei por lhe dar boleia.

- Eu moro ali ao pé do Pingo Doce, chegava lá a pé num instante, não era preciso!

- A sério? Mas quem mora ao pé do Pingo Doce sou eu!

Levei-a até à mesma praceta de antes, agora já sem pessegueiro, empedrada e transformada em parque de estacionamento, por onde não passava há anos. E parei no único lugar disponível, justamente em frente à porta do prédio da senhora, que era o mesmo prédio por onde tinha passado vezes sem conta para olhar rapidamente para a janela do primeiro andar onde vivia a minha primeira paixão.

- A sério que vive aqui? Eu tinha vários amigos nesta rua! E até tinha três amigas a viver no seu prédio.

- Vivo há muitos anos aqui!

Ajudei-a a sair do meu carro, que tem bancos muito baixos e dificulta a vida a quem sofre das ancas e dos joelhos.

- Lembra-se da miúda do primeiro andar? Assim magrinha...

- Claro, era a Liliana, coitadita. Tinham um Renault 5 branco. Aquele acidente foi uma desgraça... depois a família mudou-se daqui, nunca mais soube deles.

- Pois... eu também não.

Fiquei a vê-la a entrar no prédio a coxear enquanto me acenava com a mão.


*


Fiquei uma hora estacionado à espera para ir sair no Halloween, à uma da manhã, vestido de GILF, estrela rock de tranças, calças rasgadas, olhos pintados com lápis e sombra. Mas esperei pacientemente, porque aprendi há muito tempo que não se deve apressar uma mulher que se quer pôr bonita.

A minha companhia vinha inspirada no Blade Runner, uma estupenda replicant. Um traço ainda maior. E contou-me que se demorou muito porque esteve a pôr a filha de 14 anos - a mesma que vi com dias de vida - debaixo de duche frio por se ter portado mal numa festa de Halloween em que havia vodka preta.

Percorremos por quilómetros o fundo do Bairro Alto e as travessas de Santos de braço dado, por entre pessoas mascaradas. Algumas delas olhavam e certamente reparavam na disparidade daquele duo. Fomos parar a duas discotecas a que não ia há muitos anos, apeteceu-me dançar apesar das botas CAT pesadas que tinha calçadas e acabámos de manhã a comer pão com chouriço da Merendeira abrigados da morrinha que caía na rua. 

Tive uma noite divertidíssima. Cheguei a casa sem sono, sem dor nos pés, e de alma lavada. O cabelo, esse não o lavei durante uma semana para manter as tranças só mais um bocadinho.




2 comentários:

  1. Tantos anos e algumas dores em tão poucas linhas. É melhor despachares-te, ficou tanto por sonhar.

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  2. Não é precisa pressa para recuperar, porque tenho muitos sonhos!
    Mas agora não posso, estou na praia ;)

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