30 de novembro de 2023

Falou e disse - 22

    Senhora Mãe: Faz xixi.

    A minha filha: Não quero!

    Senhora Mãe: Antes de ir dormir tens de fazer.

    A minha filha: Mas eu já fiz!

    Senhora Mãe: Quando?

    A minha filha: Hoje!

Falou e disse - 21

    (À noite, tarde)   

    STP - Caminha!

    Anónima - Estás a ir ou a mandar-me ir?

    STP - Ambos.

    Anónima - Se estivesses abraçado a mim já estava a dormir. És melhor do que um Xanax!


    (Não sei se isto é um elogio ou não. Antigamente recebia booty calls/booty messages ocasionalmente, agora recebo solicitações para funções como soporífero).

Hold my beer

 
    Quando o secretário lá do meu serviço (que é um fixe) veio esbaforido a correr atrás de mim, pensei que era porque precisava de mim para resolver um problema qualquer, ou por causa de uns papéis ou assim. Mas não. Não quis deixar de me dar este saco e uma caneta, oferecidos pela minha entidade empregadora.
    Antigamente ofereciam um bolo rei ou um cabaz de natal aos "colaboradores". Mas agora estamos em tempos de vacas magras. Seja como for, posso sempre decidir considerar este como um sinal do universo.
Como já tinha dito há dias, hold my beer. Vamos lá ganhar isto.

    Pedi números e estrelas aos amigos quase todos. É engraçado que repetiram quase sempre o número 33. E enquanto registei as apostas pus a tocar esta música, porque me parece propícia a orações.



Piedade

    Estava a relaxar ao fim da noite e a ver um bocadinho de uma série na Netflix. Tinham-me falado nela e referido o Hugh Laurie e o Mark Ruffalo, portanto claro que me aguçaram a curiosidade. E estava eu com o meu copinho de Fiuza Chardonnay ao lado do sofá - admito, já era o segundo e estava a saber a mel -a dar uma oportunidade à série.
    Acontece que comecei a ouvir vozes nas escadas do prédio, e essas vozes começaram a sobrepor-se ao som da televisão, o que é especialmente relevante pelo facto de  que o início da série mete bombardeamentos da II Guerra Mundial. 
Na verdade... era uma gritaria de meia noite. Literalmente.

    Vou ver o que se passa? Vou.

    Abro a porta de casa e saio para as escadas em robe e pantufas, de copo na mão, medindo os passos na escuridão. Subo dois lanços de escadas e a voz fica muito mais nítida. Nem preciso de encostar o ouvido à porta para perceber tudo como se estivesse na casa de uma vizinha que sempre viveu no mesmo prédio e que deve andar nos seus setenta. Apesar de ter andado comigo ao colo continua a guardar-me uma reverência que não consigo entender. Quando me vê a sair diz-me: "vais trabalhar, não é, João? Coitadinho. Quando me vê a entrar diz-me: "Vais descansar, não é, João? Coitadinho". Digo-lhe sempre que não.
    Traz-me coisinhas boas no natal e sopinha quando calha.

    E falava lá de dentro com uma dicção diferente, como se tivesse tirado a dentadura.

    Vizinha - Oh Zéi! Devias era estar calado que tu calado é que estás bem! Só sabes dizer asneiras!

    Vizinho - ... (voz incompreensível).

    Vizinha - Pára lá com isso, guarda lá essa coisa! Olha, tu se não fosse o viagra não sei! Isso parece um bebé acabado de nascer! Tens aí uma bela coisa!

     Vizinho - ...

   Vizinha - Olha, tu estavas bem era para aquelas mulheres viciadas! Se eu fosse viciada estava bem servida! Vai lá ter com elas, vai! Olha, vai lá tomar o viagra!

    Vizinho - ...

    Vizinha - Não ponhas a mão aí, não ouviste que me doem os joelhos?

    Vizinho - ...

   Vizinha - Só sabes dizer asneiras! Reza mas é o pai nosso, devias era rezar o pai nosso que isso é que tu não sabes fazer!

    Vizinho - ... 

    Vizinha - Oh Zéi, deixa-me mas é sossegada! Sabes o que é que eu preciso? É de sossego!

    Não continuei a ouvir. Sim, eu sei, nem devia ter ido ouvir nada in the first place. Mas fugi para casa porque já me estava a rir alto sem querer e a fazer reverberância no prédio.

28 de novembro de 2023

Querer muito nem sempre é poder, mas...

 

                                              ... é preciso ter calma. Ir comendo pelas beiradas.

25 de novembro de 2023

Sushi

1989 - Queda do Muro de Berlim

2020 - Pandemia Covid19

2023 - Aconteceu, foi real: fui jantar sushi e gostei muito. Ainda por cima convidado!

Galhofa

 

    Carespos, pá! Ganda cabeça!

    Boa companhia num belo almoço. E agradeço o teu abraço apertado, genuíno, sincero, feito de 15 anos de ausência e de boas memórias. É um bom começo. Prometo que da próxima vez venho de carro a bombar STP com janelas todas abertas e há de se ouvir no CHPL!


    Segui a tua dica e vi o filme Encanto da Disney, à pala das arepas de queso. Gostei muito do filme (não esperava outra coisa porque sou fã). Mas é só para te dizer que amanhã vou experimentar fazer umas arepitas. Hei de conseguir fazer melhor do que estas que provámos!

Falou e disse - 20

     Moony - Nunca joguei no Euromilhões.

     STP - Hã? A Sério?

   Moony - Nunca joguei. Para quê? Para gastar dinheiro? Se Deus quisesse que eu ganhasse o Euromilhões não precisaria de jogar!

      STP - Hold my beer.

Falou e disse - 19

     Moony - Por acaso nunca vi neve.

     STP - A sério? Até já vi neve em Lisboa…

     Moony - Mas isso é porque tu és antigo!

24 de novembro de 2023

Buenas empanadas

    Este sítio tem umas belíssimas empanadas argentinas. E pode-se pedir vinho a copo, o que também não está mal. As empanadas são variadas, mas as minhas preferidas são as de vitela spicy.

    Se as trouxerem para casa, aquecerem ligeiramente e servirem com um arrozinho de feijão, também sabem bem.

    Mas são tão boas que as comi in situ e em casa.


Falou e disse - 18

     (A minha filha a andar de costas)

     A minha filha - Mãe, olha a minha vida a andar para trás!

Falou e disse - 17

      (7 graus, dá-me um arrepio)

   Juanna - Ahh! Como de costume não trouxeste casaco!

      STP - Népia. É só um arrepio de xixi.

      Juanna - Arrepio de xixi? Isso existe?

      STP - Não confio em mulheres que não sabem o que é um arrepio de xixi.

Falou e disse - 16

  STP - Trazes-me para os copos porque tens pena de mim, não é?

  Juanna - Porque é que eu havia de ter pena de ti? És um privilegiado de merda! E digo isto como privilegiada de merda.


23 de novembro de 2023

Teatro

 


   Fui ao Villaret ver o "Amor, quero beijar mais pessoas".
  Não vou escrever sobre o tema, mas a peça está engraçada. E foi uma orgia tão grande que perdi lá a chave do carro.
   Por isso subi a rua e fiquei ali na esquina do Monumental a dizer adeus aos carros que passavam. A ver se me davam boleia para casa.



    
    

Não há fome que não dê em fartura! - 02

 

Acho que me quiseram dar uma gandá'dica!

22 de novembro de 2023

Mulheres: respect!

 


Não foi há muito tempo

 

    Comecei a noite com estas estrondosas batatas que já são para mim uma instituição, e um not-so-guilty pleasure. São boas para armazenar calorias para sobreviver ao inverno.

      Noutra era sabia-me capaz de chegar aos sítios sem me perder no Bairro Alto, contando que fosse à noite e depois de um par de copos. Foi bom ter dito isso à minha companhia e ter conseguido cumprir. É como andar de bicicleta.

    Vim dar ao Clandestino certinho direitinho. E disse-lhe: "vais ver que aí no balcão vais encontrar um senhor careca".

      Infelizmente não encontrei o senhor Careca. Não que fosse amigo dele ou que ele se lembrasse de mim. Quero dizer, talvez em tempos ele se lembrasse da minha cara. É que desde miúdo, desde que comecei a ir sair ao Bairro Alto, este senhor estava ao balcão deste bar.

     E eu disse: "bem, isto deve ter acontecido recentemente. Não foi há muito tempo que vim aqui e ainda o vi".

       Depois perguntámos ao barman que nos disse que tinha falecido há 8 anos.

Isto é uma cena um bocadinho à Interstellar.


    Tenho carinho por este bar e por boas memórias de muitos momentos aqui passados. E por estas paredes, porque cheguei a escrever em algumas mas já não me lembro onde.

     Deixo aqui uma música que ouvi aqui várias vezes (espero que ao sábado continuem com música como deve ser; é que ainda não cheguei ao ponto de gostar de Bon Jovi).


20 de novembro de 2023

Campistas Ciclistas III (?)

 

    Chico, bora ali ao Algarve outra vez?

Falou e disse - 15

     (Ela queria andar de bicicleta sem as rodinhas, e portanto fomos à procura de um capacete na Decathlon).

    A minha filha - Mas eu já vim a esta loja, é só de roupas!

    STP - Está bem, vamos só procurar o capacete.

    A minha filha - Olha ali skates, vamos ver!

    STP - Está bem, podes ir ver...

    A minha filha - Podíamos comprar um skate, o que achas?

    STP - O pai já não anda de skate há muito tempo...

    A minha filha - Então compramos para mim!

    STP - ...

    STP - Mas eles são muito grandes para ti!

    A minha filha - Este aqui não parece muito grande!




    STP - (fuck...) anda lá ver os capacetes, vá.

    (escolhemos um capacete)

    A minha filha - Já temos um capacete. Agora só falta o skate!

    STP - Filha, o pai não te vai comprar um skate agora. Tens que falar também com a tua mãe sobre isso.

    A minha filha - Podemos-lhe telefonar agora. Eu falo com ela!

    STP - Olha, agora vamos procurar uma mantinha polar, que está frio.

    A minha filha - Está bem, agora não, mas depois de comprarmos a mantinha podemos comprar o skate?

    STP - ...

    (no corredor das mantinhas)

    STP - Olha, esta é quentinha, vês?

    A minha filha - Pai, podíamos estar a ver coisas muito mais fixes. Como um skate...

    

19 de novembro de 2023

Falou e disse - 14

 


A minha filha - Aqui estamos nós os dois a ver as estrelas e os planetas com uma máquina que se chama “coloscópio” para espreitar! E aqui está um meteorito a cair e tu estás a tentar apanhá-lo e depois queimas-te todo! (gargalhada a gozar).

18 de novembro de 2023

Falou e disse - 13

     (Vinha a subir as escadas atrás dela até ao terceiro andar, com 500 sacos nas mãos com compras e tralha).

    STP - Anda lá que o pai está carregado!

    A minha filha - Isto é uma corrida e eu vou ganhar!

    (Já cá em cima)

    A minha filha - Pai, não importa ganhar ou perder. O importante é que estamos cansados.

Falou e disse - 12

(No meio do hipermercado, andava ela a correr entre os carrinhos de compras com uma amiga, a jogar à apanhada).

A minha filha - (muito alto, agarrada à minha cintura, a fugir da amiga) Sabes, o meu pai bate-me e depois eu bato-lhe a seguir (e desata a rir).

Pais da outra criança, casal de velhinhos, operadora de caixa, tudo a olhar para mim.

STP - Diz isso muitas vezes em voz alta, e depois logo me dizes como é que isso correu para ti!


15 de novembro de 2023

Camélias

    A Sra. M. veio à consulta dizer-me que estava óptima após a cirurgia e que já conseguia arrancar as ervas do jardim à volta de casa, que não conseguia estar parada a olhar para elas. Portanto só conversámos um pouco.

    Contou-me que o pai era estucador e apenas trabalhava nos meses sem chuva, porque o estuque precisava de secar, e que a mãe era vendedora de fruta e também cedo ganhou artroses graves dos joelhos por causa do peso dos caixotes. Depois também me disse que conseguiu comprar a sua vivendinha a muito custo a trabalhar numa mercearia a vida toda, e que só a fechou para ser operada.

    E eu disse-lhe que gostava de fazer o mesmo mas que o preço das casas está pela hora da morte. E que tinha saudades da minha hortinha na outra casa, com a mesma área do gabinete de consulta, aproveitadinha até ao limite com alfaces, tomateiros, rúcula, morangueiros, e couves com que fazia belíssimos caldos verdes ou cozia para acompanhar bacalhau.

    Então ela contou-me que tinha duas belas cameleiras no jardim - uma branca e uma vermelha - com camélias lindíssimas. E explicou-me que lhe tinham dado as sementes, e lhe disseram que só germinariam após sete anos. E assim foi durante sete anos, a regar as sementes nos vasos até que brotassem. E que já lá iam quarenta anos.

    A Sra. M. agora vive com o filho e com os três netos, porque eles perderam a casa depois de um negócio que correu mal e o banco lhes ficou com tudo. E não queriam incomodar, mas ficariam os quatro a viver na rua. E ela ficou contente e tinha-lhes dito que se encolhessem um bocadinho e que tudo correria bem.

    Contei-lhe que cresci num T2 pequeno com mais quatro pessoas, mas estávamos sempre juntinhos. E nas minhas festas de aniversário vinham todos os tios e primos e avós e as pessoas se sentavam umas em cima das outras e as crianças se pisavam a jogar à apanhada, e era difícil chegar à mesa, mas que todos nos recordamos hoje desses aniversários porque eram os melhores de sempre.

    Saiu da consulta a sorrir de olhos molhados e disse-me que me ia trazer sementes de cameleira. E eu prometi-lhe que ia encontrar um sítio para as semear.


To laugh.

 




12 de novembro de 2023

Entrançado


 

Andava com uma foto dela tipo passe, metida na carteira. Tinha sido surripiada para mim por uma amiga em comum, e desde então olhava-a embevecido e sonhava acordado diariamente.

Observava-a muitas vezes ao longe pela janela, meio escondido atrás dos estores, enquanto regressava da escola. Ou juntava-me aos treinos de basquetebol feminino só para poder estar um bocadinho mais perto dela. Os meus amigos diziam-me que um dia tinha de deixar de ser maricas.

Franzina, pequena, de olhos de um castanho esverdeado brilhante e sorriso de caninos felinos, quando olhava para mim as minhas supra-renais eram apertadas por mãos habituadas a torcer panos da loiça. É claro que durava meio segundo, porque eu desviava o olhar.

Um certo fim de tarde, depois de um treino, decidi respirar fundo e acompanhá-la a casa. O dia de inverno já se tinha feito noite, e o nevoeiro borrava a luz dos candeeiros da rua. Obviamente que ela já sabia o que eu ia dizer. Fiz da timidez força e disse-lhe que gostava dela, enquanto caminhavamos lado a lado, de olhos no chão. Supra-renais apertadas e com vontade de fugir. Claro que ela acelerou o passo e me disse que era muito querido e que era um belo amigo.

Quase trinta anos depois, ainda haveria de me dar conta de que essa tinha sido até então a única vez que me tinha declarado a uma mulher.

Passei as duas semanas seguintes, depois da escola, enfiado no quarto do Chico a ouvir Pearl Jam e Nirvana e a sentir-lhes as dores como minhas; ou então ficava na minha cama a olhar para o tecto. E continuava a olhar através dos estores para ela enquanto atravessava o descampado à volta da escola por entre as ovelhas que naquela altura ainda ali eram levadas a pastar, e jogava na mesma basquetebol com as miúdas.

Chegou o verão. 

Fui de férias com a família para a Ericeira, e lembro-me da minha avó e da minha irmã a divertirem-se a fazerem-me tranças no cabelo todo pela primeira vez, e eu a encolher os ombros sem qualquer medo do ridículo. Flutuava meio acordado pelas madrugadas dentro ouvindo música num walkman da Sonny, ou impedido de dormir pelos ataques das melgas, ou a imaginar o que ela estaria a fazer naqueles dias.

Um dia tivemos de regressar apenas para fazer as matrículas escolares. Naquele ano eu teria de mudar de escola porque ia transitar para o ensino secundário, mas ela permaneceria na mesma porque era um ano mais nova do que eu.

O nosso grupo de amigos ficava sempre à tarde ou depois do jantar numa praceta de terra batida entre duas fileiras de prédios,  e ela morava num desses prédios. Havia um pessegueiro nessa praceta, e todos os verões a fruta bichada caía de madura no chão e saturava o ar de um aroma doce inebriante.

E foi nessa praceta, nessa manhã quente e soalheira, que esbarrámos um no outro por acaso enquanto evitávamos pisar os pêssegos caídos. Eu de tranças no cabelo, ela de t-shirt azul escura. Sorriu-me muito e falámos. Pareceu-me alegre e especialmente simpática. Descobrimos que no dia em que eu voltasse outra vez da Ericeira iria ela para o norte. Pareceu-me desapontada como eu pelo desencontro de datas. Que voltariamos a encontrar-nos logo que ela regressasse. Sorriu-me outra vez, olhava-me nos olhos, e passou ao de leve a mão pelo meu antebraço. E enquanto nos afastávamos olhámos os dois para trás por cima do ombro. Tu queres ver que ... ?


*


Tinha sido convidado para sair na noite de Halloween. Nunca tinha aproveitado esta ocasião, embora quando em miúdo tivesse chegado a ir ao Pão-por-Deus na manhã do dia de Todos os Santos, a bater às portas dos vizinhos e a receber frutos secos, castanhas, romãs, moedas pequenas e alguns doces. 

De qualquer das formas sempre me agradou a possibilidade de encarnar personagens com roupas e adereços diferentes, e portanto decidi mascarar-me à minha maneira de estrela rock "agarrada".

Foi tudo um pouco à pressa. Rasguei umas skinny jeans e arranjei uma camisola terrível, larguíssima e compridíssima, com o padrão mais duvidoso que encontrei na Springfield. E encaminhei-me para o Centro Comercial Babilónia, conhecido por ser muito étnico e pelos inúmeros cabeleireiros. Certamente que ali alguém me iria entrançar o cabelo, mesmo que já a meio da tarde e em véspera de feriado.

Estava com dificuldade em parar o carro, e entretanto lembrei-me que ali perto havia uma cabeleireira que eu conhecia bem, mas que já não via há vários anos. Embiquei para aquela rua e estacionei em quatro piscas em cima do passeio. Lá estava o mesmo salão de sempre, desta vez vazio. Fiquei à entrada da porta uns segundos a olhar para a Lourdes, que arrumava as coisas, certamente preparada para fechar e ir embora.

Virou-se para trás e encarou-me. Uma expressão de alegria imensa invadiu-lhe a face e veio abraçar-me aos gritinhos. Fomos tomar café na pastelaria ao lado e falar da vida.

A Lourdes é agora cinquentona, mas continua bonita, sem um cabelo branco, enxuta, alta e imponente. Um traço. Falou-me dos filhos já crescidos e do marido que já não lhe liga há muitos anos mas de quem cuida porque talvez mais ninguém o fizesse. Há vinte anos eu tinha dado explicações de matemática ao filho dela, que agora é engenheiro e sabe mais de matemática do que eu já me esqueci. E ela guarda-me um carinho e uma gratidão que perdurou pelo tempo. Depois chamou pelo telefone um senhor que trabalhava numa oficina ali ao lado e com quem falava sobre mim porque ambos descobriram por acaso que ele era meu doente. O mundo é, de facto, uma ervilha.

"Mas João, eu acho que nunca fiz isso como deve ser! Já experimentaste ali no Babilónia? Ah, mas é para o Halloween? Então está bem, eu vou tentar, alguma coisa há de se arranjar!".

Trouxe-me uma enorme caixa de contas de feitios diferentes e disse-me para escolher. E esteve durante a hora seguinte a trabalhar no meu cabelo enquanto eu lhe contava a história da minha avó e da minha irmã a fazer-me tranças daquela vez quando era adolescente. A Lourdes conheceu a minha avó, a minha mãe, e conhece a minha irmã, e chegou a tratar do cabelo delas todas.

Saí de lá com um penteado melhor do que tinha imaginado, e ela insistiu em não aceitar pagamento. Pediu-me só o favor de regressar.


*


Há dois meses fui dar uma consulta numa clínica que fica pertinho da minha casa. Tratava-se de uma senhora de idade com quem tinha combinado fazer-lhe uma infiltração no joelho. É simpática, com a cabeça no sítio, e toda para a frente. Disse-me que tinha conhecido a minha avó, que toda a gente tinha conhecido a minha avó.

Ela tencionava ir a pé para casa depois do procedimento, apesar de lhe ter perguntado se tinha vindo com alguém para a ajudar. Respondeu-me que não.

Então saí de braço dado com ela, devagarinho, para descer as escadas e para a ajudar a entrar no carro. Acabei por lhe dar boleia.

- Eu moro ali ao pé do Pingo Doce, chegava lá a pé num instante, não era preciso!

- A sério? Mas quem mora ao pé do Pingo Doce sou eu!

Levei-a até à mesma praceta de antes, agora já sem pessegueiro, empedrada e transformada em parque de estacionamento, por onde não passava há anos. E parei no único lugar disponível, justamente em frente à porta do prédio da senhora, que era o mesmo prédio por onde tinha passado vezes sem conta para olhar rapidamente para a janela do primeiro andar onde vivia a minha primeira paixão.

- A sério que vive aqui? Eu tinha vários amigos nesta rua! E até tinha três amigas a viver no seu prédio.

- Vivo há muitos anos aqui!

Ajudei-a a sair do meu carro, que tem bancos muito baixos e dificulta a vida a quem sofre das ancas e dos joelhos.

- Lembra-se da miúda do primeiro andar? Assim magrinha...

- Claro, era a Liliana, coitadita. Tinham um Renault 5 branco. Aquele acidente foi uma desgraça... depois a família mudou-se daqui, nunca mais soube deles.

- Pois... eu também não.

Fiquei a vê-la a entrar no prédio a coxear enquanto me acenava com a mão.


*


Fiquei uma hora estacionado à espera para ir sair no Halloween, à uma da manhã, vestido de GILF, estrela rock de tranças, calças rasgadas, olhos pintados com lápis e sombra. Mas esperei pacientemente, porque aprendi há muito tempo que não se deve apressar uma mulher que se quer pôr bonita.

A minha companhia vinha inspirada no Blade Runner, uma estupenda replicant. Um traço ainda maior. E contou-me que se demorou muito porque esteve a pôr a filha de 14 anos - a mesma que vi com dias de vida - debaixo de duche frio por se ter portado mal numa festa de Halloween em que havia vodka preta.

Percorremos por quilómetros o fundo do Bairro Alto e as travessas de Santos de braço dado, por entre pessoas mascaradas. Algumas delas olhavam e certamente reparavam na disparidade daquele duo. Fomos parar a duas discotecas a que não ia há muitos anos, apeteceu-me dançar apesar das botas CAT pesadas que tinha calçadas e acabámos de manhã a comer pão com chouriço da Merendeira abrigados da morrinha que caía na rua. 

Tive uma noite divertidíssima. Cheguei a casa sem sono, sem dor nos pés, e de alma lavada. O cabelo, esse não o lavei durante uma semana para manter as tranças só mais um bocadinho.




Falou e disse - 11

Anónima - Já que fazes anos não deviamos beber um copo?

STP - Olha, olha!

Anónima - Eu acho que devíamos

STP - Não achas que já consumi álcool suficiente?

Anónima - É para compensar pelos anos em que não fizeste nada!

STP - Sabes que me rebento todo assim... queres é a minha herança.

Anónima - Exacto, o que me fascina em ti é a tua conta bancária.

STP - Eu sei que é.

Anónima - Quando era mais nova era o carro

STP - Claro, só bens materiais! Dizes que te contentas com uma geleira numa praia deserta só para me agradar.

Anónima - Claro!!

STP - Ok, então parece-me uma óptima altura para te contar que joguei tudo na roleta.

Anónima - A sério? Raios!

STP - Pronto, parece-me que é o adeus.

Anónima - Olha, foi um prazer, gostei muito.

STP - Fica bem

Anónima - Guarda o meu número. Caso recuperes. Dá-me um toque nessa altura. Senão deixa estar.

STP - Não, eu vou fazer voluntariado em Moçambique, curto ser pobre.

Anónima - Gostava mais de ti rico.

STP - Eu sei, mas eu sou rico, tenho um coração de oiro.

Anónima - Sim, mas isso não paga jantares no Eleven.

STP - Ainda dá para uma salada vitacress... a meias.

8 de novembro de 2023

Falou e disse - 10

    (Senhora Mãe) - Eu a cozinhar carne e a mostrar-lhe: "vês, isto é uma perna, isto é uma asa...". E eu a pensar "ou vais achar nojento ou fazer perguntas sobre o animal".

    Nada.

    A tua filha: "Mas olha, não tires a pele que eu gosto. Agora parece nojento mas depois fica bom.".

4 de novembro de 2023

Falou e disse - 09

    (Tinha feito tranças no cabelo para brincar na noite de Halloween e não as desfiz para mostrar à minha filha).

    A minha filha - Tens tranças no cabelo? Pareces uma menina! Também tens um pipi?

2 de novembro de 2023

Metáfora

 



   "Imaginem que estão sentados numa cadeira, em frente a uma mesa. Imaginem que em cima dessa mesa está um puzzle; puzzle esse que têm vindo a construir durante meses a fio.
    Imaginem as horas perdidas em redor deste... 
    Imaginem tudo aquilo que deram de vós para o ver finalmente construído...
    Imaginem a dedicação... 
    A obsessão que aquele puzzle representa... 
    O desejo inexplicável de o ver finalmente concluído.

    Imaginem agora que todo o puzzle está constuído. Falta uma única peça, peça essa que está na vossa mão, pronta para ser colocada no espaço em branco, no espaço que falta para, por fim, completar o puzzle e, de certa forma, para completar-vos a vós mesmos.

    Imaginem que, no preciso momento em que vão colocar a última peça no seu devido lugar, ela vos cai por entre os dedos. Imaginem-na a deslizar pelo chão...
desliza...
desliza...
desliza...

    Imaginem que esta peça, com toda a paz e equilíbrio que para vós representa, decide finalizar a sua viagem instalando-se confortavelmente por baixo de um móvel... Um móvel daqueles antigos, pesados, que exigem no mínimo a força de três homens robustos para serem movidos.

    Imaginem que, não sem uma ponta de desespero, se precipitam para esse mesmo móvel, com todo o tipo de objectos, procurando retirar de lá a tão ambicionada peça.

    Imaginem então que nenhum dos instrumentos de que se serviram para chegar à dita peça é suficiente para a alcançar.

    Imaginem que já tentaram tudo para remover a peça do sítio onde se instalou, mas sem sucesso. Imaginem que não há nada mais que possam fazer para tentar tirá-la de lá.

    Conseguem imaginar o que fariam então ?"

Moony, julho de 2007

*

    Minha querida Moony:

    Decidi ter a ousadia - ou cometer o sacrilégio - de continuar o teu texto.

   Primeiro exprimiu-se a veia de orto em particular, e de homem no geral, que me empurrou a fornecer soluções para resolver o problema.

    Já tentaste lá chegar com o cabo de uma vassoura? Tens a certeza que o móvel é assim tão pesado que não dá para arredar sem dares cabo das tuas costas? Será que não dá para tocar à campainha do terceiro esquerdo onde há uns jeitosos do ginásio que te podem ajudar? Será que não podes usar a "força" para atrair telecineticamente a peça para ti? Já experimentaste desligar e tornar a ligar?

    De facto muitos homens tendem a oferecer soluções aos problemas que as mulheres lhes apresentam, e não percebem que nem sempre é isso que elas pretendem. Vocês às vezes querem apenas ser ouvidas, e ouvir é uma coisa que muitos de nós não sabem fazer.

    A verdade é que a minha veia de orto em particular e de homem no geral está em transformação, agora que tenho tempo para reflectir. E, portanto, talvez não tenha o talento para terminar o teu texto de forma esteticamente atraente, nem o sentido prático de fazer facilmente um damage control aos problemas, mas fizeste-me pensar e sentir. Nunca é demais valorizar a capacidade de uma cabeça de pensar, e de um coração de sentir.

   O meu primeiro impulso foi responder-te que saberia exactamente o que fazer: desmanchar o puzzle imediatamente e metê-lo na caixa, e enfiá-la em cima de um armário. Mas o meu lado orto obriga-me a ser um reconstrutor, e o meu lado romântico impele-me a crer que não há impossíveis.     E que sim, há peças perfeitas, especiais, insubstituíveis. Eu e o meu Ѱ andamos à espadeirada por causa deste tema e acho que nunca estaremos de acordo, portanto se ele alguma vez ler isto irá abanar a cabeça de certeza.

    Será que a peça escorregou sozinha das tuas mãos ou foste mesmo tu quem a deixou cair? Vou excluir a possibilidade de a teres atirado deliberadamente ao chão e para debaixo do móvel, mas talvez não o devesse fazer tão levianamente, uma vez que acontece. 

Quer pelo medo de completar a façanha e não ter uma satisfação tão grande quanto se esperava.
Quer porque afinal nos fartámos de fazer puzzles.
Quer por um acesso temporário de insanidade.
Quer por acharmos que não merecemos a recompensa.

    A verdade é que a peça foi parar debaixo do móvel, e é lá que está. Ou será que não? Tens a certeza de que consegues vê-la? Domina o teu desespero e a tua vontade. Conseguirás esperar algum tempo, e ter ideias diferentes para recuperar a peça?
    
    Eu aprendi que o tempo e a paciência podem levantar alguns móveis, da mesma maneira que o tempo e o alheamento podem depositar monos em cima de nós sem que nos apercebamos.

    Conforme o tempo passa, muitas coisas podem acontecer. Um ratinho pode morder as orelhas à peça caída. A humidade pode fazer o cartão inchar como um mil folhas. A cor e os desenhos da peça podem desbotar. Uma corrente de ar vinda por debaixo da porta da rua pode soprar-te a peça de volta às tuas mãos. Um aspirador pode engolir-te a peça para sempre sem que o saibas sequer.

    E no entanto, durante esse tempo, como nunca mais a viste à luz vais sempre pensar que ela é ainda mais bonita e perfeita do que originalmente.

    Pode acontecer que nunca a recuperes, e se assim for o "e se?" tornar-se-á difícil de silenciar.
E pode até ser que quando a recuperares não gostes dela, ou nem sequer encaixe no puzzle.
   
   A metáfora mais importante é o puzzle, não é a peça. E um dia pode parecer-te que fica mais bonito sem ela.

    É que o puzzle também terá ficado diferente.