9 de março de 2005

Tetris 3 - Erro de paralaxe ou Em ponto morto




"These notes are marked return to sender
I'll save this letter for myself
I wish you only knew how good it is to see you

these steps I take don't get me anywhere
I'm getting further from myself
one thing is always true
how good it is to see you

I'm done resenting you
you represented me so well
and this I promise you
how could I end up in the hands of someone else...".


*

Corro. Porque não quero estar onde estou, ou porque não tenho dinheiro para a camioneta, ou até porque não tenho para onde ir.
O Hospital de S. José, a faculdade, o jardim de Santana, tudo vai ficando para trás ao ritmo do vento frio que me greta os lábios, a boca, os pulmões... tudo fica para trás do campo de visão que oscila para cima e para baixo ao ritmo da corrida.
Também as memórias percorrem as ideias à mesma velocidade, mas parece que os seus contornos permanecem gravados, como no fósforo dos antigos monitores que, queimado para sempre pelas imagens fixas sem screen saver, exibirá para sempre aquelas letras e figuras que deixámos de querer ver. Para sempre?

As pessoas passam por mim como postes de iluminação presos à calçada; olham-me admiradas, talvez porque o meu ritmo de corrida é diferente da passada apressada do comum citadino, diferente da sangria desatada dos assaltantes. E também não posso estar a fazer jogging, porque tenho a mochila, um cachecol branco, as eternas botas CAT... e cabelo comprido. E os drogados não praticam desporto!

Passo pela pastelaria onde um dia lanchámos ao sol e onde os raios entravam pelo vidro, trespassando transversalmente os nossos olhares, tornando-os mais brilhantes um para o outro. Reflectindo o bom e o mau do outro. Mais puros e sinceros. De vez em quando vinha uma nuvem, mas era tão pequenina que nem se notava... ou eu não queria notá-la!
Os olhos são o espelho da alma, segundo dizem; mas temos que ter cuidado, porque esse espelho pode ser como aqueles dos filmes americanos, com agentes do FBI atrás.

Assomei por ali adentro sem saber porquê, a correr. Passei pela banca à porta e não tirei um papelinho de consumo... quando já estava perto da mesa avisaram-me, Olhe! O senhor!... Desculpe, desculpe, Saí.
Ganhei o gosto por fugir a correr. Por levar com o frio na cara, para abrir as pestanas, fortalecer os ossos que, intactos, se sentem ainda quebrados por forças psicossomáticas. Sabe bem chegar ao fim do caminho e, na beira da estrada, ofegante, sentir aquele calor que se acende por debaixo das camisolas. Os olhos ficam quentes, e vejo agora halos de luz nos candeeiros e nos faróis dos automóveis; enfio a mão esquerda no bolso, aquele bolso mesmo feito à medida para dentro dele darmos as mãos. Imediatamente lembro-me disso e tiro a mão cá para fora. Fecho o zipper.

Dirigi-me, já a passo, para a paragem do autocarro. Apanho-o. Sento-me. Encosto a cabeça ao vidro que estremece com o motor em permanente ralenti e lembro-me, sonolento, de que fingimos que não nos vimos, e que tornaremos a fazê-lo. Imediatamente antes de adormecer, ia jurar que te vi a sair pela porta do autocarro, que agora já não é a porta do autocarro, mas sim a porta do bar da faculdade, a que eu detesto que abram e não fechem depois. Escrevo freneticamente num guardanapo de papel que é agora uma pauta de exames: as nossas notas, os nossos nomes na mesma linha, juntos. Sorrimos. Eu bebo o meu descafeinado e tu bebes a tua garrafa de água.

Estamos então a vaguear no espaço sideral em montanha russa, vendo novas estrelas e planetas a bordo de um tapete mágico: a rodela verde do meu olho que ninguém vê. Ouve-se música, derretemo-nos em chantilly a ouvi-la...

"I can open your eyes
Take you wonder by wonder
Over, sideways and under
On a magic carpet ride.
A whole new world
A new fantastic point of view
No one to tell us no
Or where to go
Or say we're only dreaming
A whole new world
A dazzling place I never knew
But, now, from way up here
It's crystal clear
That now I'm in a whole new world with you.
Unbelievable sights
Indescribable feeling
Soaring, tumbling, freewheeling
Through an endless diamond sky.
A whole new world
A hundred thousand things to see
I'm like a shooting star
I've come so far
I can't go back to where I used to be..."

*

Acordo qual despertador programado, mesmo a tempo de carregar no botão para sair na minha paragem.
Estremunhado, conduzo devagar (sempre em ponto morto, que é a única velocidade do meu carro) por montes e vales, enquanto olho para os halos gigantescos dos stops do automóvel que vai à minha frente.

Lembro-me então que não vimos estrelas, mas apenas um eclipse lunar. Que me puxaste o tapete mágico no ponto mais alto da montanha russa, num solavanco inesperado, paroxístico, e que não voltaste para me apanhar, seguindo o teu voo espacial para outras galáxias, outros sóis, outros eclipses (?). Que as rodelas verdes dos meus olhos desapareceram, talvez porque já não reflectem imaturidade. Que a esperança, também ela verde, está morta e não cantou sequer como um cisne, mas como um galo que vimos um dia, abraçados, que depois voou disparado para se esconder no cimo de uma árvore. Os galos voam?!
E eu vou cantando cada vez mais alto para dentro...

"But, now, from way up here
It's crystal clear
That now I'm in a whole new world with you..."

... e sorrio para mim mesmo: fui um erro! Um erro de paralaxe!

*

Diz a Sagrada Escritura, no livro dos Macabeus: "Matou um elefante, e matou-o como esforçado e valoroso porque não lhe soube fugir como prudente...".



Nota: este texto é pura fixão; ele é dedicado ao dia internacional da mulher e aos meus amigos Marto e Papoila. Um deles anda comigo a pé por estes caminhos; o outro diz-me para seguir em frente e não olhar para trás.



13 comentários:

  1. Bem, e agora vou-me deitar. Os meus planos de fazer directa a estudar para o teste de cruzinhas de amanhã, foram por água abaixo, visto que precisei de escrever este texto.
    Levarei amanhã um dado, para responder às questões. Um dado feito de cera, que roubei quando estava a brincar com uma vela do Lounge (um bar perto do ABS). Moldei-o em forma de cubo (um tanto irregular, é certo), mas com ele ganhei ao chico uma data de vezes. Talvez me ajude amanhã, já que vou literalmente a zeros. Depois digo-vos a nota; se for positiva, haverá festa rija no Lounge ;)
    Antes que me comecem a criticar sobre os erros ortográficos... pensem assim: "Será que o joão que eu conheço escreveria um erro destes? Terá um segundo, ou mesmo terceiro, sentidos?". Pronto, tinha de meter uma pontinha de arrogância para moralizar. Está na moda...

    Grandes abraços :)

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  2. Eu dou-te a «fixão», dou-te...

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  3. P.S. O uso de uma imagem do Mulholland Drive a ilustrar esta posta perde-se no facto de que escolheste a cena inicial da limusine na encostas de Hollywood em vez de uma das fufas em acção.

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  4. Rui: talvez essa imagem das fufas pecasse por excessiva. Não se enquadrava no ambiente do texto, não é assim?

    Gosto do vermelho dos stops, porque dá tranquilidade, mas ao mesmo tempo inquieta. E para além disso é mais uma memória de uma cena que guardo, e que está relacionada com o mundo descrito no Tetris 3. Provavelmente só eu é que me lembro dessa referência, das luzes dos stops do carro em frente a cegarem-nos, sendo refractadas pelo pára-brisas riscado pelos anéis da senhora que era dona do STPmobile antes de mim. Mas ainda assim é uma recordação (mais uma) que não esquecerei...

    Quanto ao teste: pois bem, usei o dado, mostrei que o usei, fazendo barulho quando o lançava na mesa de fórmica do laboratório... a professora riu-se... não sabia 80% das questões, mas acho que pelo menos 4/20 tenho. Saí de lá alegre e acho que tenho razões para estar optimista. É o chamado optimismo dos loucos.

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  5. bons velhos tempos do STPmobile a caminho de Paredes de Coura com uma geleira de Carlsbergs atrás. Lembro-me que na altura o co-piloto estava tão bem que já apresentava dificuldades em desdobrar um mapa, quanto mais consultá-lo.

    Se passares nesse teste, cagar-me-ei com rir

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  6. Essa é uma bela recordação, Rui. Muito bonita mesmo. Mas nessa altura pode-se dizer que eu estava no auge, no paroxisma, da queimadice. Acabado de sair da fcul...

    Mas eu fui uma excelente ajuda nessa viagem. Alguém tinha que fazer força para irmos pela nacional, e alguém tinha que as beber todas!

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  7. Sim, cosmic. É o verde da esperança. Mas uma esperança diferente... já não é a esperança de que as coisas voltem ao que eram (porque não depende de mim, nem nunca dependeu), mas sim esperança de que eu consiga viver feliz, despreocupado, confiante no futuro, e usando o passado como fonte de agradecimento, vivências úteis e alegrias, e não como uma corrente com bola de ferro no fim.

    Obrigado por notares.
    Bisous...

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  8. Serei eu conhecido por dizer sempre aquilo que realmente penso?! Aqui vai:
    João, acorda!!! Esquece!!! Acredita que consigo sentir a tua "dor" quando "desabafas" comigo! E por isso mesmo não te quero ver assim mais tempo! E só esquecendo é que vais ser o João, o JOÃO! Já pensaste que corres o risco de "alguém" pensar de ti: "Fodax, este não esquece! Parte para outra!" (Who are this sick people?!)
    A vida tem "injustiças"... queres viver à volta de uma?!
    Do teu sempre amigo...

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  9. Tens razão. Já me tinha ocorrido o que tu disseste, e foi com essa intenção (pelo menos consciente) que escrevi este texto. Não quero que olhem para mim como se me estivesse a fazer de vítima!
    Custa-me, isto... mas vai ao sítio! Tem que ir! :)

    Vou ser breve e conciso: tão cedo não escrevo no blog, e não escreverei mais de todo sobre isto. É um "statement" sujeito à prova do tempo, mas que pretendo honrar. Vou começar a desenvolver a versão mais recente do antigo site "Conjecturas".

    Obrigado, chico. És o saco que salga os mares :)

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  10. Espero que isto seja o fim da sequela Tetris! Já nem consigo olhar pó jogo por tua causa. As pedras caem, fazemos as linhas, mas, eventualmenta, acabaremos por perder! É o jogo! Depois, mudamos de jogo! Jovem, o jogo das minas, o pinball... o cm2 97/98! O Tetris já era!

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  11. Agradeço a tua dedicatória, João. De facto, aprazou-me ler este texto; cheguei a vê-lo como uma forma catártica de te libertares desse assombro que te consome. Devias perceber que muitas vezes as pessoas são como o Mycobacterium tuberculosis: provocam reacções de hipersensibilidade do tipo IV. Por favor, deixa os bacilostáticos funcionarem. Alegorias à parte, gostei bastante do tom envolvente do texto. Dá uma ideia bastante aprazível de distância e esperança. Cultiva isso. Vive isso. Amigo, se não colocares a primeira, o carro vai ficar em "ponto morto" durante muito tempo...e tu não queres isso pois não?

    Um abraço

    Pedro

    P.S.: 4-0? O teu FCP está muito fraquinho! :P

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  12. O porto está fraquinho... é fruta da época. Encerrou-se um ciclo, agora é preciso muito trabalho para voltar às vitórias.

    Este texto não serviu de grande coisa. Fala de um assunto que só a mim me atormenta, fala de alguém que não o merece e para quem não signifiquei mais que um simples bibelot (para variar). É o último comentário que faço sobre o tetris, foi o último tetris que escrevi, e não quero escrever mais aqui durante um bom tempo. Aguentem-se vocês à bomboca, eu estou atento... mas não venho mais à net num período que se avizinha longo. A recuperação começa agora e com outro tipo de métodos mais rigorosos e radicais.

    Estimo-vos muito...
    joão

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  13. É só para dizer que tive 12 no tal teste. São fantásticos os desígnios de Deus ...

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