23 de março de 2005

A Era do Egoísmo



Aproximo-me em ponto morto de um sinal vermelho, lá ao longe. Ao de leve, o meu pé direito afaga o pedal do travão do carro, gerindo a velocidade para não parar antes que o semáforo abra. O Chico vai cantando uma música qualquer de Red Hot Chili Peppers.

- 'tás muito calado, puto! Que é que se passa?
- Nada... estava-te a ouvir!
- Ah... assim 'tá bem!

Mastigo mais uma chiclete oferecida pelo Chico (comprada na Makro) enquanto penso no comentário que vou fazer ao post da Isabel. Já abordei sob várias perspectivas as suas palavras - primeiro humana, depois intelectual, e depois social. Mas agora tento mentalmente produzir também pela palavra escrita o que me vai no espírito, e o impacto que nele causou aquele texto.

Estiveramos no Refúgio das Freiras, um barzinho em Santos. Bebo uma green (só uma, cuidado com as interacções medicamentosas!) e umas coca-colas, enquanto esperamos eternidades pela banda que supostamente ia tocar ao vivo.
A localização da nossa mesa, com vista privilegiada para a porta do W.C., fez-me lembrar aquelas margens dos rios africanos, onde as zebras necessariamente vão beber, e onde crocodilos se escondem submersos à espera de uma presa mais incauta.
Raparigas passam por nós todas arranjadas, com decotes generosos, cinturas que se abraçariam com duas mãos bem abertas, aragens de perfumes doces, passos felinos e olhar misto de sedução e "filha-da-putice". Olhares cruzam-se; sorrio, afável e despido de segundas intenções. Quase invariavelmente recebo de volta uma cara bonita, mas com tromba de mal disposta. E quase sempre vem um nuno atrás, ou um fábio, ou um cláudio. Ou um Jorge...
Não entendo todas estas pessoas. Não estamos no mesmo comprimento de onda.

Tamborilo com as mãos na mesa de mármore, envolto no fumo dos cigarros que todos os outros (ainda) jovens prendem entre dois dedos, tentando inserir-me no ritmo do reggae alegre que passa na altura.
De repente começa a banda a tocar. É uma banda de covers de Red Hot.

"I'm overcoming gravity,
I'm overcoming gravity,
(It's easy when you're sad to be,)
It's easy when you're sad, sad like me

I like pleasure spiked with pain and music is my aeroplane,
It's my aeroplane..."

Sigo agora o ritmo mais rápido com a cabeça, os pés batem no chão como se lá estivessem pedais de bombo, pestanejo à mesma cadência, sinto-me agora mais apto, mais adaptado, mais forte, melhor e mais pertencente do que toda a gente ali. Aquela é a minha música de há muito, é a carne e os ossos de que sou feito. Começa a viagem aos tempos antigos da ESBA, do secundário, do ir para todo o lado de bicicleta, de apanhar sol, de ser expulso das aulas para ir ter com as miúdas ou ir jogar à bola (não necessariamente por esta ordem); das idas e vindas na vimeca com os amigos, as palhaçadas! ... o tempo em que o mundo era nosso e estava todo por estrear!

Recordo a ESBA que já não existe porque lhe passaram um viaduto por cima em Algés; os passeios na praia... o Chico a vomitar no terminal das camionetas, de manhã, enjoado como sempre; lembro aquela vez em que não fiz a específica de Biologia e estava lá encostado às grades do túnel de acesso à estação dos comboios, à espera de alguém...

"What I've got you've got to give it to your mamma
What I've got you've got to give it to your pappa
What I've got you've got to give it to your daughter
You do a little dance and then you drink a little water..."

Abro então os olhos e noto que não estou assim tão diferente do que era nesses tempos: t-shirt branca, calças azuis lisas, ténis; baixinho como sempre... sinto-me mesmo bem com aquela música, e percebo que não preciso de ser um nuno, não preciso de uma camisa à paneleiro ou de um casaco de cabedal à durão para nada. E quando vejo aquelas gajas boas a mascarem pastilha elástica com a boca toda aberta, com ar de que sabem tudo, com aquelas botas e aqueles saltos à bimbas, com aqueles maneirismos de segurar o cigarro que arriscam uma luxação da articulação do punho, de tão dobrado para fora que fica... percebo que elas estão muito bem com os nunos, cláudios ou fábios com quem estão. Realmente tudo no universo encaixa na perfeição, mesmo que não estejamos a ver na altura a lógica da coisa. E, já agora (não que fosse necessário dizê-lo), também não preciso delas para nada!

"Give it away, give it away, give it away now!
Give it away, give it away, give it away now!
Give it away, give it away, give it away now!
Give it away, give it away, give it away now!"

*

O sinal abre e ainda consigo meter a segunda mudança; o carro engasga mas mesmo assim ultrapasso os outros que tinham passado por mim muito antes, a grande velocidade, e agora estavam ali, parados à espera do verde.

Dou-me conta então de que tenho muito orgulho no meu percurso, no meu passado, e que a ambição para o futuro se mantém intacta.
Acelero mais, e risco a estrada marginal a grande velocidade.

- Aí está Hakkinen a voar por cima da pista, não há adversários à altura!

- Dois jovens morrem na marginal a caminho de casa. O excesso de velocidade e as manobras perigosas terão estado na origem do acidente...

- Reparem como o piloto aborda destemidamente as curvas!

- Oh, mas vejam, o piloto abranda com medo da curva!

- Não, é que a polícia costuma estar aqui, chico.

- E aqui, o piloto a ter medo que a polícia apareça no autódromo!

A grande velocidade segue também a minha cabeça. Vou dizer à Isabel que já não ando a precisar tanto de agonistas do GABA, que concordo com ela quando diz que a vida é bela, e que só decidi tirar um tempinho para mim. Que esse tempo ficará registado como "Era do Egoísmo", e será como uma reacção inflamatória aguda, ou seja, perfeitamente auto-limitado. Que já estou muito melhor e que muito em breve deixarei de estar bloqueado pelas reacções cerebrais adversas e pela falta de serotonina.
Escreverei que das cinzas desse egoísmo renascerei rapidamente para estar mais forte, mais racional e mais preparado para ajudar as outras pessoas (mesmo que sejam nunos ou as suas gajas). Será mesmo essa a minha função, e este acidente de percurso só servirá para tornar mais íntegra a minha estrutura psicológica. O que não nos mata torna-nos mais fortes e mais imunes!
E não lhe vou agradecer sequer por palavras, porque sei que a melhor maneira de o fazer é ensinar-lhe novas fintas com uma bola de futebol!

Subo agora as escadas do meu prédio, depois de ter estacionado impecavelmente o carro (como sempre) e de me ter despedido (à porrada) do Chico. Vou às escuras, porque já sei o caminho e o buraco da fechadura de cor.

Já sei o que lhe vou escrever...

5 comentários:

  1. Hey Isa... só para te mandar um beijinho. E para dizer que abri uma excepção só por tua causa. O teu post comoveu-me, e merecia mesmo resposta à altura (ou uma tentativa de...).
    Tinha dito que não escrevia tão cedo no blog, mas o que queria dizer é que tão cedo não escrevo sobre mim. Feita a correcção, resta-me mandar cumprimentos aos caríssimos que fazem o favor de ler o Valdispert.

    Até breve :)

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  2. se o meu texto ajudou de alguma forma dou por concretizado o objectivo;))) obrigado pela excepção e passando rapidamente para o "amanhã"... conto mesmo com essas aulas de fintas!!! estamos em primeiro lugar, passámos à fase seguinte, já estamos na grande área... é o ponto de não retorno: ou marcamos ou ficamos marcadas lololol
    beijihos e divete-te!

    *:*:*Isa*:*:*

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  3. Numa conversa com o autor deste post, foi sugerido que os meus comentários andam abaixo da média. Ao que eu retorqui com «O que é que querias? Camarão graúdo de Moçambique?». Como a resposta veio afirmativa, aqui o têm:

    http://www.epa.gov/owow/wetlands/vital/epa_media/shrimp.jpg


    Camarão graúdo de Moçambique. Apreciem-no.

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  4. Rui: os teus comentários são sempre boas contribuições :) Não queria estar a criticá-los negativamente! Até porque sei que és uma pessoa que trabalha e que não tem tempo nem paciência para mais.
    Não faz mal! Eu gosto que comentem, mas vou continuar a escrever mesmo que ninguém comente, e mais!: mesmo que ninguém leia... (se calhar até mais, se ninguém ler :) ).

    Beijos e abraços :)

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