Foi numa tarde fria, interlúdio de uma seca noite de Outono orquestrada pelas emoções colhidas durante o dia, que o nosso caminho convergiu. Linha de Sintra, algures entre as 20:00 e as 21:00 horas, Sete Rios, destino Agualva-Cacém… e lá íamos nós de regresso a casa. Jornada solitária e muda, em que os olhares se cruzavam no cansaço de mais um dia de trabalho. As luzes do comboio, baças e purulentas, iluminavam o reflexo cansado e borbulhento de um rosto interciso pela ranhura das portas que se abriam… Benfica. O comboio parou, como uma cadência ao 6º grau que suspensa, cedo retomou a marcha no encalço das barras metálicas, friccionadas pela aridez das rodas que cortavam o vento. De repente dei por mim, afinal também eu lá estava e nem sequer me apercebia… os meus pensamentos aliciavam a minha consciência e os meus sentidos, numa amálgama de imagens vividas ao som de Debussy… quarteto de cordas… 3º andamento.
Senti a tua presença em contornos de brisa ondulante como o desenho que trazias. Serias pintor? Inspirado por aquela multidão anestesiada e espectral, murmuraste pela folha já escrita que então gritou por algo mais, pedindo que a vestisses com roupagens asténicas e lucífugas, solidárias com a rotina fibrosada de uma pastilha sem sabor, seca, colada!
Como eu te compreendia. Não nos falámos, nem sequer olhares cruzámos porque ambos deambulávamos na mesma realidade. Olhávamos em sentidos opostos mas víamos precisamente a mesma matéria e anti-matéria; vivíamos tempos distintos fundidos num só espírito sonhador e empreendedor, sitiado na implacável ditadura dos tempos. O vento da prosa hasteava a tua flor de guerra como poema que por mim passava, por mim… que também não tinha terra. Ambos procurávamos a pureza daquele regresso, despreocupado e livre, alheio a pressões quotidianas. Éramos simplesmente dois jovens, com vontade de viver! A beleza daquele momento, que para os demais nem chegava a sê-lo, era suficientemente poderosa para impedir que compreendêssemos e tolerássemos aquele rebanho de mancebos tornados escravos (do Tal e Qual e restantes congéneres). Como era possível aquela estagnação, após mais um dia de trabalho maquinal?
Era preciso gritar contra aquele marasmo vicioso: rede sem furos por onde nem sequer passava o ar; asfixia constante monopolizada pelo circuito fechado de viver sem pensar… lutar… por uma condição mas digna e consciente, em que mesmo os mais velhos pudessem sonhar! E gritávamos… e grito!
Barcarena…. O comboio travou! Ambos saímos vislumbrando o mesmo luar que fugazmente se tornou nítido como a noite cristalizada. Foi então que seguimos caminhos divergentes, rumo à realidade das nossas vidas. Deixei de te ver mas não te perdi… Encontro-te todos os dias, sempre que apanho o comboio, sempre que olho para mim, reflexo de ti!
São viagens como estas, infindáveis como o segundo que não passa, que nos despem, num tempo só nosso. A reflexão é a panaceia para o espírito. É ela que nos transporta para a consciência e sentido da vida. É nela que encontramos a solução para os nossos problemas. É por ela que digerimos a realidade aproximando-nos dela.
A vida é um pleonasmo de erros. É preciso criticar… cultivemos as virtudes que nos restam!
26 de novembro de 2004
Regresso a casa...
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Podias avisar que era preciso um dicionário para compreender o teu post...
ResponderEliminarÉ verdade que o texto está intrincado, mas a tua falta de paciência é confrangedora, juíz. Não há uma única palavra nele que eu não saiba o significado. Mas a autora não precisa de fazer avisos: se não te sentes preparado, não leias. As pessoas não te levam a mal. Mas parece-me que tens um problema: vives na dialética entre a superioridade total e a incapacidade de viver sem demonstrar uma inaptidão para a análise de coisas um bocadinho mais bem estruturadas e literárias do que o normal.
ResponderEliminarProcessa-me :)Olha eu há uma palavra que não sei e agora? O que são "roupagens lucífugas"? Concordo que a autora não precisa de fazer avisos, mas para quem percebe tão bem as "coisas um bocadinho mais bem estruturadas e literárias do que o normal." percebes muito mal as ironias... Quanto às duas últimas orações tu é que estás a elevar a uma superioriedade total... "És incapaz de viver sem demostrares inaptidão para a análise de coisas um bocadinho mais bem estruturadas e literárias do que o normal, ao contrario de mim, que sou um literario culto. Se não te sentes preparado não leias, eu leio, logo sinto-me preparado" Aqui o cromo não sou eu, o superior demonstrou-se, inequivocamente, apresentando barreiras imaginárias inconcebíveis. Peço desculpa à autora por este comentário nada ter a ver com o post mas de certo ela compreenderá a minha posição...
ResponderEliminarÓ juíz: gostava que os comentários mantivessem um pouco de respeito e de classe. As provocações construtivas são aquelas que, sem perder a educação, levantam questões pertinentes. Tudo o que fizeste até agora foi provocar sem respeito e educação, e longe de ser irónico, criticas como se tivesses despeito para com quem escreve alguma coisa que lhe vem de dentro. É por isso que ninguém dá valor às tuas observações: apenas destilam rancor. Felizmente temos acesso àquilo que escreves, e todos nós podemos tirar ilações sobre tudo isto. A partir de agora deixarei de te responder a esse tipo de comentários, até porque te conheço e sei qual o tom de rebaixamento desproporcionado que utilizas em relação a quem não concorda contigo e te critica.
ResponderEliminarDe qualquer modo... cumprimentos calorosos.
E já agora (porque não resisto), "superioriedade"? Também andas a usar palavras que não conheço... será que fazes de propósito?
ResponderEliminarDado que ainda ninguem disse isto, eu faço a praxe: Grande texto, mais uma contribuição de alto nível para o blog. Não o fiz pela tradição, foi mesmo pela convicção do que fazia ;) De resto saliento que estou a ler este texto tendo acordado à meia dúzia de minutos.
ResponderEliminarEu nao ligava a estas prespectivas até ao dia em que a necessidade tomou conta de mim, e vendo-me sozinho no mundo, comecei a perceber estas coisas. Mesmo assim durante o texto surgiram-me pensamentos como "Esta não tem mais nada que fazer senão ir buscar as palavras do fim do mundo" entre outras. Mas de certo que no fim compreendi todo o texto, e toda a enriquecida forma como traduzes mais um momento, porque de facto, merece.
foda-se tá a chover..
pronto assim tá bem... "eheh enganou-se a escrever superioridade, deixa-me gozar com ele, para mostrar que ele é burro...". Eu faço as críticas que outros fazem, mas faço-as de outra maneira (ex: "Esta não tem mais nada que fazer senão ir buscar as palavras do fim do mundo" dito, e muito bem por vaskituh, deve ser do nome...), agora se não querem ser criticados ok... eu nem sequer falei mal do post (o que deve ser tomado como grande elogio da minha parte, Iris...)... Já agora, ainda não sei o que quer dizer lucífugas... Bjinhos e abraços, or should i say, lábios purpuros encostados na face nívea e calorosos corações aproximando-se em sinal de forte amizade...
ResponderEliminarEpá, tenho a dizer que gostei muito de ler este texto. Encontra-se escrito num estilo literário que eu pessoalmente seria incapaz de fazer semelhante, mas muito bem estruturado e interessante. Consegues dar conta de toda a complexidade dos sentimentos humanos quando se está sozinho a caminho de casa e se encontra algo que nos desperta da apatia. Bem, quando eu andava no 50 a caminho de casa as viagens eram tudo menos apáticas, mas isso agora é outra conversa...
ResponderEliminarContinua, que eu gostei muito deste episódio de alma.
Sabes, ando na linha de Sintra à muito tempo. Gostei muito do eu post. A atitude dos passageiros de, vá lá, só quero chegar a casa é-me familiar. Ficas a conhecer muito bem algumas pessoas, flam da família, dos amigos, conheces a sua roupa mas, são pereitos desconhecidos, que por vezes nem o nome sabes...
ResponderEliminarBoa, Pita, agora depois de ler o teu comentário vou ter que pôr estas cuecas que tava a usar para lavar... :)
ResponderEliminarBelo texto! 10 anos a fazer a mesma viagem que tu, fizeram com que ao ler o teu texto me lembrasse das infindáveis idas para casa. Cansado, muitas vezes meio a dormir. Aquelas caras que apanham sempre o mesmo comboio, aquela sensação de intimidade com os desconhecidos...enfim...
ResponderEliminarNão tenho saudades, mas fizeste-me recordar.
Obrigado!