5 de setembro de 2004

Diário de um Magoado - Manta Rota - Parte final

Ao notar a inquietude que a minha cadela demonstrava, dando pequeninos pulos só com as patas da frente e arfando sonoramente, soube logo que tinha que me levantar do sofá e ir dar um passeio com ela à rua. Peço-lhe para esperar. Ainda meio sonolento, decidi ir ao armário e tirar de lá a primeira coisa que visse para comer; afinal de contas eram 6 e meia da tarde, hora do meu lanche. Decido ser guloso: saco de uma lata de salsichas Nobre®, abro-a e escorro o líquido para o lava-loiça. Calço-me (com o que está à mão), visto um casaco (aquele que alguém perdeu num bar, nas férias, e eu recolhi), pego nas chaves e chamo-a para vir. Deixo o telemóvel em casa.

Ao descer as escadas trinco a primeira salsicha. Começo a pensar que é capaz de estar já frio na rua para ir vestido assim de calções curtos, sem meias. É Setembro, fim da tarde, e corre um ventinho que sopra a espaços, quente e frio; parece que faz de propósito para arrepiar e fazer pele de galinha - é mesmo característico do Outono. Deixo a cadela atravessar a rua e ir para perto dos prédios novos que construiram da noite para o dia. Naquele espaço pastavam ovelhas não há muitos anos. Cultivava-se trigo, passavam debulhadoras, apanhavam-se amoras... agora vai abrir um novo pingo doce, e estou com ideias de ir trabalhar para lá em part-time se me aceitarem.
Sento-me no lancil do passeio que ladeia a estrada, e tiro mais uma salsicha. Perto de mim passam os carros, alguns a uma velocidade não aceitável para uma localidade, perto de uma escola... a minha rua é a única que não tem bandas sonoras de controlo da velocidade.Lembro-me então da última semana de férias. Dos passeios a pé por Manta Rota, com um calor enorme; daqueles fins de tarde na praia, com um vento quente que queimava mais do que o próprio sol. De andar descalço na rua só porque não apetece calçar os ténis. De não haver dinheiro nos multibancos. De assistir pela tv ao SLB a trazer a mala cheia para casa através do fundo de uma garrafa de Carlsberg. Ainda nem passou uma semana e parece que já foi há tanto tempo, lá tão longe! Parece daquelas memórias construídas de situações em que é impossível termos participado, mas que recordamos tão vividamente como se tivesse sido ontem.
Revivo então mentalmente a minha viagem a nado até à bóia. Desta vez mergulho logo na profundidade à procura da sereia dos cabelos negros ondulados e olhos azuis; passo de novo pelos navios naufragados, ruínas, cidades submersas... desta vez nado mais depressa, à velocidade do pensamento, passando por cardumes de peixes cada vez maiores e mais estranhos; já não preciso de ar nos meus pulmões, vou mais longe, mais fundo, mais escuro. Aproximo-me de um palácio, um Estádio do Dragão submarino, com muitas luzes azuis a ferirem as águas, imponente. Não vejo ninguém. Opto por entrar pelo topo desse palácio, e vou até ao centro das quatro linhas, um terreno feito de areia em vez de relva, completamente iluminado pelos holofotes. De repente, iluminam-se as bancadas, e vejo o estádio completamente cheio de gente minha conhecida a rir às gargalhadas e a apontar para mim. Ilumina-se agora o camarote imperial: mesmo diante e acima, sentada, vejo então a sereia, acompanhada por um tritão de olhar agressivo, a rir discretamente com um cigarro por entre os dedos médio e indicador da mão direita. Ela levanta-se. O estádio inteiro observa-a expectante. Fito-a completamente hipnotizado, paralisado, incapaz de esboçar outra reacção, como um boi à espera de um choque eléctrico. Sem tirar o cigarro da sua posição, ela fecha a mão e aponta o polegar para baixo, ao que o estádio inteiro explode de novo às gargalhadas. O tritão sorri, satisfeito. Só consigo balbuciar uma frase vezes sem conta para mim mesmo: "Queira desculpar-me... foi um engano meu.... queira desculpar-me".

Todas as forças do Universo se juntam no sentido de me estabilizar, ali sentado, quieto, como se a minha posição no espaço correspondesse à minimização total da energia potencial. Os vectores anulam-se, as energias contrabalançam-se, e dou por mim absolutamente quieto, num zero absoluto de percepção sensorial extensível aos 5 sentidos. Uma completa alteração de consciência. Mas no mesmo momento em que me dou conta disto, parece que o gerador de Castelo de Bode se ligou na minha cabeça. Sinto o sabor e o aroma das salsichas; o ladrar da cadela já a pedir para ir para casa; o quente da sua respiração e a leveza da lata, vazia (!), na minha mão; e o olhar de um casal de idosos, do outro lado da estrada, a perguntar-se o que faz um rapaz despenteado, mal vestido e com olhos vermelhos, imóvel há uma hora, sentado à beira de uma estrada movimentada, acompanhado por um cão, com uma lata de salsichas na mão...

6 comentários:

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  2. A tua cadela não te acompanhou, a teu lado, no teu mergulho? Por momentos imaginei a seguinte cena: tu, com a lata de salsichas na mão, sentado no rebordo do passeio; a cadela, sentada a teu lado, apoiada em ti, ambos a olharem para o outro lado da estrada como se de um horizonte longínquo se tratasse! :)

    No que toca à parte do mergulho e de todo o ambiente criado, só tenho a dizer que me mijei a rir! :D Estou a imaginar o movimento de pulso da sereia, como só visto n'"O Gladiador"! Já agora, a relva também teve que ser mudada ao fim de 90minutos? :P

    Para terminar, acho que quando o casal de velhotes olhou para ti, pensou: "Esta juventude está perdida!" :P

    Um grande abração e continua com esta originalidade!

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  3. Caro Cybercool: a relva não foi mudada. Campos como o de Coimbra, arenais, não precisam de ser mudados. E eu penso que o verdadeiro mistério deste pequeno conto reside aqui: Quem comeu as salsichas? Eu ou a cadela? E quem rompeu a manta? Nunca saberemos...
    Obrigado por teres lido. Confesso que escrevi isto com os copos.

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  4. Nunca mais como salsichas Nobre™® na minha vida, essa é que é essa...

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  5. Cara cósmica:

    É quase certo que não continuarei os posts relacionados com Manta Rota; o assunto esgotou-se, mas outros virão com certeza ;)
    Ainda bem que te deu prazer ler o que escrevi; mesmo que o mais importante para mim quando escrevo é eu gostar de o fazer sem olhar ao que os outros vão dizer, a verdade é que sabe sempre bem ter o apoio das outras pessoas: na nossa vida em geral, na escrita em particular. Como diria a propósito o Cybercool: "isto é o Valdispert, não é o Gato Fedorento".
    É verdade que os posts têm sido tristes, mas não poderia ser de outra forma, pelo menos na actual conjuntura sócio-afectiva :) Farei os possíveis por abandonar por agora a temática do sonho, semi-inconsciência e psicadelismo que tanto prazer me dá abordar. E quanto às sereias: ninguém acredita nelas, mas que as há, há. E são tão burrinhas... preferem um poliban com torneiras de ouro em vez de um tanque de rega de uma humilde fazenda latifundiária... ;)

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  6. é engraçado como nao consigo ler os teus posts... mas a foto é bem gira... djeffffffffffffoda-se

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