Depois de todas as encruzilhadas do dia de hoje; depois de tantas emoções fortes enoveladas nestas 72 horas a pé; depois de ter batido o meu anterior record de privação do sono – tinha prometido a mim mesmo dormir e só me lavantar da cama quando raios de sol de outrora conseguissem perfurar os prédios que dispuseram entre mim e o nascente da manhã; cá estou, de volta, após uma tentativa gorada de mergulhar no meu escuro interior, munido de uma manta polar fininha, um aquecedor, e um garrafão de ginja. O absinto era a imagem de marca do Eça de Queirós. As ganzas aparecem nas T-shirts do Bob Marley. Se eu um dia fosse um personagem do Auto da barca do inferno, tenho a certeza que se escolheria o cabelo comprido e uma garrafa de ginja caseira como meus elementos cénicos – embora já tenha bebido ginjinha contida em muitos outros recipientes (quem se pode gabar de beber ginginha de um balão volumétrico laboratorial? Senti-me um Prince of Persia). Se vou parar ao inferno? Confio no bom senso do Gil Vicente...
Em pequeno e em adolescente, era habitual demorar muito tempo – horas – a adormecer. Aprendi a usar esse intervalo a rever tudo o que tinha aprendido naquele dia na escola; à distância, não tenho dúvidas de que o meu relativo êxito nos estudos se deveu em grande parte ao facto de ter insónias. Não precisava de estudar, porque me limitava a lembrar-me das aulas, do que os professores diziam e de como contavam os factos da matéria; depois, ia compondo esses factos com outros pormenores inventados por mim; tecia por fim relações mentais muito improváveis entre as matérias das aulas, e quando dava por mim já tudo se tinha misturado num sonho distorcido, e eu tinha-me tornado em ânodo, condutor e cátodo de uma torrente imparável, Filho! Vá, ‘tá na hora...!
Já em adolescente, passava também em revista todos os pormenores das tropelias dos meus colegas e amigos; reproduzia na minha tela mental os tímidos cruzares de olhares com as meninas da minha escola, que na altura estavam a aprender a usar os seus dons de fascínio da classe masculina, como pequenas gatinhas que, trôpegas, recuavam mais depressa do que avançavam nos seus raides armados de garras de leite. Na verdade, nem todas aquelas miúdas da minha escola cruzaram o olhar comigo, embora eu tivesse desejado que isso acontecesse. Imaginei tanto essas situações que elas se tornaram realidade pretérita perfeita, na minha cabeça.
Nessa altura não poderia imaginar que, mais tarde, ainda havia de considerar esses olhares (já totalmente maturados e, assim, isentos de uma réstia que seja de timidez) como foras-de-jogo. Alguma relação com os offside do futebol? A realidade torna-se esbatida, a história torna-se lenda, a lenda torna-se mito...
Lamentavelmente, algumas destas recordações tão vivas, que parecem de ontem, de agora!... são construidas. A título de excepção, tive a clarividência de que uma ou outra das minhas recordações mais brilhantes de miúdo pequenino são devidas a memórias dos meus pais, contadas juntamente com fotografias que atestam esses ambientes e momentos de que me recordo. O meu pai anda a remexer nas suas fotografias antigas, e encontrou uma antiga – um achado! – em que eu fingia conduzir um camião azulinho, mas ferrugento, podre, decrépito, abandonado no estádio nacional... estava na cabine, agarrado ao volante, ao mesmo tempo que sorria com os olhos e com todos os dentes que tinha e também com os buracos deixados pelos que não tinha naquela altura. Hoje, quem me visse sorrir daquela maneira apelidar-me-ia imediatamente de esquizofrénico ou coisa que o valha. Na foto, eu estava mesmo feliz a conduzir aquele camião – de tal forma que durante anos jurei lembrar-me daquele dia. Mas não lembro. Do que me lembro é que quando era pequeno o meu pai passeava muito a pé comigo, e tirava-me muitas fotografias; as memórias daquele dia estão na minha cabeça porque mais tarde vi essa fotografia, mostrada pelos meus pais, o que eternizou o momento... convencendo-me que me lembrava.
Acabo o tetris que estava a jogar, freneticamente, contra o computador. Bebo mais um gole de ginjinha, providencialmente colocada num cantil abaulado de alumínio, daqueles que os detectives usam no bolso da gabardina. Fecho os olhos, deixo-me levar pelo doce calor do aquecedor. Recosto-me na minha nova cadeira de executivo, daquelas que há em todas as grandes empresas de todas as novelas brasileiras. “Change your heart... look around you...” canta Beck, nos headphones. O líquido vermelho, viscoso, dir-se-ia quase gorduroso, desce pelo esófago e parece ir directinho ao cérebro, trazendo acalmia, vontade de introspecção ... o aquecedor envia ondas que fazem as minhas pernas inchar de prazer. Vou bebendo enquanto tento fazer o que há muitos anos não faço: rever o dia de hoje, que teve 72 horas.
Uma conversa difícil e inútil mantida pela net – decisões dolorosas tomadas de forma insegura, mas apregoadas de maneira corajosa - porque as gatinhas crescem e transformam-se em panteras. Um jogo de futebol em que a minha equipa foi copiosamente derrotada, e em que eu consegui ser o elemento que mais “enterrou”. Um exame de escolha múltipla, em que o difícil estava, de facto, na escolha – não li metade da matéria da cadeira, e as 14 perguntas que tinha deixado para fazer no fim (ao todo eram 80) foram feitas à pressa porque estavam já a recolher os testes quando me dei conta de que tinha acabado o tempo – Game Over; de olhos fechados embebi-me no pânico que senti nesses 30 segundos... mas também naquela sensação boa que tenho quando estou a preencher um boletim do Euromilhões com a certeza de que é desta que vou ganhar. Por mais vezes que tenha perdido antes... (... everybody’s gotta learn sometime...).
Daí para trás, perdi a disciplina e o controlo; comecei a lembrar-me de coisas sem padrão definido, aleatoriamente. A roda viva alcoólica embalada nas rajadas de ar quente do aquecedor enlevou-me para outras imagens dissipadas, dissolvidas, vividas ou construídas: colheres de mousse de manga dadas à boca alternadas com beijos de leite condensado; imagens de mim próprio de bata branca a ser sucessivas vezes atacado pela mesma estirpe bacteriana num banco de hospital, sem ser capaz de produzir anticorpos (... everybody’s gotta learn sometime...); ao mesmo tempo, milhares de estorninhos a voar por cima de mim fazendo manchas geométricas perfeitas no céu, como naqueles screensavers das lojas de informática; os meus aniversários, desde pequeno até agora, sempre celebrados à chuva, à noite, com bolo de anos, sangria, capas de trajes académicos e bolas de futsal à mistura; palavras carregadas de paixão escritas num vidro de carro embaciado... andar de baloiço de olhos fechados (...everybody’s gotta learn sometime...).
Depois disso não me lembro de tudo o que recordei. Já de olhos fechados, a escuridão ficou mais profunda, como se não houvesse muito mais para além daquela barreira temporal. A cadeira começou a andar à roda, e a minha cabeça também, mas em sentido contrário. Flashes pictóricos assolavam-me aqui e ali com memórias já muito distantes: um jipe de caixa aberta em Aljezur, à noite, carregado com mais de 10 pessoas; o escuro e tenebroso laboratório de biologia celular, para cujas aulas ia amiúdes vezes alcoolizado; eu, a transportar uma rapariga em coma alcoólico ao colo, que nunca tinha visto, para uma ambulância, estando também eu muito bêbado (tendo bebido só uma imperial e um shot, numa festa universitária); os bancos do parque eduardo VII, onde esperava a camioneta para casa; cegonhas na praia de Carcavelos num dia nublado, muito de manhãzinha (... everybody’s gotta learn sometime...); e, de novo, andar de baloiço de olhos fechados... cada vez mais depressa, mais alto, descontroladamente, até que o arrepio na barriga, que afinal é na cabeça, me faz acordar. Afinal alguém me abana a cabeça...!
Cantil – vazio - por cima do teclado... a manta polar no chão, nú e a tremer de frio, quase a cair da cadeira. Headphones quase a sairem do sítio, mas que não desistiram de dar voz ao Beck (everybody’s gotta learn sometime – winamp em repeat mode), Oh João, parece mentira! Tu és doido, João! Não estás bem, nem parece teu!!, carícias na face.
Estou desconfiado que não torno a fazer a mesma coisa – acho que dei um desgosto à minha avó.
A propósito: tive 14. À jôstêêêça à sér râpóosta nô márcádôr!
ResponderEliminarExcelente dimensão poética... pena que escrita desta qualidade dramática só surja quando estás mesmo mal. Amanhã passarei por tua casa e confiscar-te-ei a porra da ginja.
ResponderEliminarPois é, Rui. Há uns tempos alguém me disse que gostava que eu escrevesse um texto igualmente bom (a imodéstia é apenas aparente: são palavras dessa pessoa) mas alegre. O meu objectivo era que o Tetris 2 fosse um contraponto ao Tetris original: igualmente carregado, denso psicologicamente, mas alegre, divertido e sobretudo optimista. Há bem pouco tempo cheguei a ter esperança que isso pudesse acontecer mais cedo do que pensava, no entanto enganei-me :Confesso que é mais difícil escrever algo alegre e com energia positiva; acho que é da natureza humana tentar lutar contra situações e contextos adversos - contra a frustração, mágoa, infelicidade... e a inspiração advém dessa mesma adversidade.
ResponderEliminarEstá prometido. Só escrevo o Tetris 3 numa altura em que esteja realmente bem disposto!
Um abraço...
Fiquei em frente do computador parado a pensar no que havia de escrever neste comment. Lembrei-me de tantas situações que passamos juntos ao longo destes anos. E é bom saber que vamos viver muitas mais com um sorriso. Secalhar à pala da ginja!! ai ai... Abraço!
ResponderEliminarNão sei se essa ginja terá componentes biónicos mas faz milagres! Mais uma fez fartei-me de rir, não aquele riso da piada fácil, mas o riso próprio de quem se revê e pensa nos pequenos dramas quotidianos da nossa juventude. Processo de aprendizajem este que teimamos em levar sempre pelo caminho mais torto, mais dificil que acaba por ser sempre o mais compensatório. Não pregas a desgraça mas a desgraça teima em não se despegar :). Continua a beber ginja, deixando um pouco pa mim!
ResponderEliminareverybody's gotta learn sometime... essa música tem atravessado pelo real os meus últimos meses. quantas palavras tão bem coordenadas espelham pensamentos e momentos que várias vezes me assomaram em momentos de angústia... gostei muito, joão. muito humano.
ResponderEliminarvera (afilhada)
Valeu a pena esperar! ;)
ResponderEliminartá muito fixe.. veremos o 3 :P
Comentarei em breve os vossos comentários, caros amigos. Neste momento quero dar uma palavra ao Juiz/Júlio Punk - não acho que possa pedir desculpa, mas quero dizer que lamento; fui um bocado abusivo :\ ... Um abraço Jeff :)
ResponderEliminarLer só uma vez é pouco para quem as palavras escritas exprimem desabafos que a voz não consegue emitir. 7 anos e muitoos diários cheios de pó depois, foi a 1.ª vez que senti vontade de voltar a escrever.
ResponderEliminarÉ tão fácil partilhar alegrias, mas a dor.. admiro a tua coragem.
As palavras ajudam a afastar o tormento e as memórias doces são as que não podemos esquecer. Continua.
E porque há coisas que nunca vamos conseguir aprender, conheçes sempre um sítio com uns duchaises xxl óptimos :)
Bjs gr
Pat