5 de fevereiro de 2005

Jet lag

Na senda de um futuro brilhante, habilmente roemos as unhas num presente crepitante, rouco que enleia os nossos sentidos. O cansaço da incerteza, a dúvida da espera que nos exaspera, a matéria bruta que áspera nos consome e desperta... Tudo se conjuga num jet lag bipolar em que da manhã faço noite e à luz queimada do candeeiro que se arrasta, ilumino os meus olhos, como se de um crepúsculo nocturno se tratasse, fosse a lua o sol!
Os relógios que me circundam, descompassados, ecoam na membrana do tímpano, fibrosada... gasta. Já nada transita pela córnea erodida... opaca. No entanto, a força do sonho que me impele e instiga quebra as barreiras do impossível e numa loucura frenética assume o controlo de mim. De repente deixo de ser eu... deixamos de ser nós! Já não temos consciência, já não sabemos quem somos nem o que estamos a fazer. A acção torna-se involuntária, inata, num constante corromper da dor que outrora nos alertou. Não sentimos nada, nem o cansaço, nem a angústia... nada!
O passado faz-se de anticorpos (muitas vezes incompletos) que nos percorrem rumo a um futuro antigénico. O tempo precipita no presente viscoso em que qualquer parágrafo é moroso e nós, sem saber, já nem sequer estamos a ler.
Como é violenta a aridez das páginas infindáveis, a incandescência fricativa de um contacto gélido com a matéria bela mas frívola, pelo menos na dimensão em que me encontro.
E estática permaneço... procurando compreender mecânismos de transdução de sinal que se arrastam por uma imensidão de horas, suficientemente vastas para deixar morrer alguém à fome.
Como é paradoxal o eterno erro do saber básico ulterior à especialização por campos florescentes, onde escasseiam as necessidades básicas de quem procura sustentar o conhecimento na sua própria descoberta.
O aperfeiçoamento de técnicas de navegação permitiu que os Portugueses desvendassem o mar obsucuro e mítico. Foram muitos aqueles que temeram o desconhecido, bem como aqueles que pereceram na busca do sonho, é certo. Mas todos eles, munidos dos conhecimentos básicos, esboçaram um novo mundo que embora velho, só então se revelava.
Porque é que nós, sabendo nadar de forma inata, não somos lançados ao mar no momento em que nascemos? Porque é que limitam o nosso acesso à realidade através de obstáculos mesquinhos e sumptuosos? Tudo seria tão simples se ao mesmo tempo que estudassemos tivessemos a oportunidade de recordar experiências de facto vividas!
Como é inútil o tempo que perdemos a tentar decorar listas de “cluster of differntiation” ou de fármacos ou de colaterais de nervos, sabendo que numa próxima borga tudo se dissipará.
Como é que os iluminados que regem as quintas do saber não percebem que este não se constrói apenas com centenas de páginas para decorar? Será que eles não sabem que a memória é volátil? Ou apenas se descartam da preocupação pedagógica que deverá estar na base de qualquer ensino?
As aulas teóricas são para mim um veículo de transmissão oral de ínfimos pormenores que fazem a diferença num exame mas que pouco importam para o melhor desempenho da profissão que pretendemos exercer. Claro que há excepções mas são muito raras.
Comparo estas aulas a arranjos de DNA com sequências codificantes, intercaladas por extensas regiões nas quais acabo por adormecer e perder o fio condutor, já não se faz luz!
Falta racionalização e nós, como soldados na frente de um tabuleiro de xadrez, pouco conseguimos fazer contra o poder instituído, restando-nos continuar a lutar e a tentar sobreviver à insónia que nesta noite, como em tantas outras, não me deixa dormir.
Se a realidade não faz sentido, não deixemos que também ela estagne em nós... Ouçamos a música que nos arrepia e impele rumo a um velho mundo por nós reinventado!

2 comentários:

  1. Isabel:
    Naturalmente partilho contigo muitas dessas sensações de estudar e pensar que estou a morder palha. Cada vez me é mais complicado estudar matérias que, embora importantes, são áridas e não me dão prazer. Imunologia foi uma coisa muito estranha. Gostei, tenho sensação que podia ter tirado 20... se não fossem as variáveis externas ao estudo. Arrisquei, mas felizmente tive a pontinha de sorte que faltou a tantos colegas nossos.

    Eu sei que retiras prazer do estudo... eu também consigo retirar algum prazer. Mas... quanto mais velho fico, mais compreendo que não faz sentido fazer determinados sacrifícios por causa dos exames. Devido ao estudo perdi memória, concentração, tempo que poderia ter dedicado às pessoas de quem mais gosto; perdi saúde física, precisão na visão. Perdi brio, perdi perfeccionismo... e talvez tenha perdido coisas ainda mais importantes.

    É preciso saber valorizar as coisas e as pessoas. É preciso manter lucidez. É preciso não nos enganarmos a dimensionar a importância relativa das coisas, sob pena de termos graves dissabores, e arrependimentos para o resto da vida.
    Beijinhos... :)

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  2. Mais uma vez, um texto fenomenal desta contribuidora. Este espelha até certo ponto o que eu sentia quando estudava para os meus exames: uma máquina que enfardava acetatos ou páginas dos livros e tinha que produzir resultados de qualidade. Mas sem nunca chegar ao ponto em que me sentia desligado da realidade. O problema em Medicina é que os professores pensam que armazenar vastas quantidades de matéria (a ritmo semestral) é a maneira mais eficaz de preparar a futura fornada de médicos deste país - quando este mesmo regime de estudo acaba por ser contraproducente.

    Desejo-vos boa sorte

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