Em dia de eleições, vamos ver o que acontecia no mês de Junho de 1871, como descrito pelo Marcelo Rebelo de Sousa do século XIX - Eça de Queiroz, neste excelente texto carregadinho de ironia e descrença:
«Este mês, quando os cravos abriam, as Câmaras fecharam. Fecharam, isto é, foram expulsas!
Houve talvez umas certas fórmulas, fez-se decerto o programa do encerramento: mas a verdade é que elas foram precipitadas, aos empurrões, pelas escadarias de S. Bento abaixo.
A Câmara estava quieta, bem barbeada, comodamente sentada nas suas cadeiras, sem desconfiança, esperando com gravidade cívica que o Governo manifestasse a sua ideia por um projecto, um relatório, um dito, um grito, uma carranca!
O Governo entrou, e com um gesto palaciano e galhardo, fez evacuar a sala
E aí está como a grande ocupação do mês são as ELEIÇÕES.
É necessário que te expliquemos, leitor pacífico que não pertences aos centros, o organismo interior de uma eleição. É ao alegre fugir da pena, um curso de anatomia política.
Lê-o ao chá aos teus pequerruchos, a quem a tua mulher prepara as fatias com manteiga. É o melhor ensino que lhes podes dar do abaixamento do seu tempo. Se eles adormecerem no meio mais pungente da declamação, nao penses que foi a sonolência comunicativa das nossas palavras severeas. É que em Portugal tudo faz sono - até a anarquia!
Quando uma Câmara se fecha, o Governo nomeia outra. Nomeia - porque uma Câmara não é eleita pelo povo, é nomeada pelo Governo. O deputado é um empregado de confiança. Somente a sua nomeação não é feita por um decreto nítidamente impresso no Diário do Governo: o processo desta nomeação é mais complicado e moroso. É por meio de votos, os quais são umas tiras de papel, onde está escrito um nome, e que se deitam num domingo, numa igreja, dentro de umas caixas de pau, que se chamam romanticamente urnas. Uns homens graves, de camisas lavadas, estão em roda da urna. Estes homens chama-se a mesa. São eles que, com gesto cívico e cheios do espírito das instituições, metem gravemente o papelinho branco (o voto!) na caixinha (a urna!)
A urna afecta várias formas, segundo as freguesias: há urnas do feitio de caixas de açucar, do feitio de vasilhas, do feitio de chávenas, etc.
Os candidatos gritam sempre, no último período dos seus manifestos, transportados de furor constitucional:
-Cidadãos, à urna!
É puramente uma demoninação sentimental.
Para serem exactos, deviam exclamar, em certas freguesias:
-Cidadãos, ao caixote!
E noutras:
-Cidadãos, à vasilha!
Ora, apesar desta nomeação aparatosa, e de grave cerimonial, o deputado é tão igualmente funcionário como se fosse nomeado por oito linhas burocráticas e triviais do Diário do Governo. O deputado obedece ao Governo, e exerce uma função. Há o apagador, o gritador, o interruptor, o homem dos acidentes, o homem dos precedentes, etc. E quando desagrada, é demitido. Somente não se diz demitido. Diz-se, com menos asseio, dissolvido.
O Governo pois nomeia os seus deputados. Estes homens são, naturalmente e logicamente, escolhidos entre os amigos dos ministros. Por dois motivos:
1º Porque a amizade supões identidade de interesses, confiança inteira.
2º Porque sendo a posição de deputado ociosa e rendosa, é coerente que seja dada aos amigos íntimos - àqueles que vão ao enterro dos parentes e trazem o pequerrucho da casa às cabritas
Os amigos dos ministros são, naturalmente, os primeiros escolhidos. Para completar o numero de uma maioria útil, estes amigos, mais em contacto, indicam depois outros, seus parentes que procuram colocar, os seus derentes que queiram utilizar.
- Tu não tens ninguém pelo círculo tal? - pergunta X ao ministro, seu íntimo.
- Não.
- Espera! Tenho eu um primo. O Pobre rapaz tem poucos meios, é pianista. Mas é fiel como um cão. Um escravo! Posso dizer ao rapaz que conte com a coisa?
- Podes dizer ao rapaz!
Lentamente a lista da maioria vai-se formando em Lisboa. Os pretendentes são numerosos. Os amigos íntimos agitam-se em volta do ministro, como um bando de pardais em torno de um saco de espigas. [...]
Depois os candidatos são mudados como figuras de um jogo de xadrez. A um, a quem se prometeu o círculo D, dá-se o governo civil de B - como indemnização. Tira-se a C a candidatura, porque se descobre que C tomou chá com o chefe da oposição. Mas dá-se a E, que foi quem denunciou C. Às vezes é um influente pelo círculo X que, em paga pela sua influência, pede que seu genro venha pelo círculo Z, onde é proprietário.
- Mas o círculo Z está prometido a Fulano, que é um professor distinto, um publicista! Seu genro tem pelo menos algum curso?
- Meu genro não tem curso nenhum. Eu é que tenho influência. O jornal da localidade já provou que meu genero era um animal. Mas meu genro espancou a redacção.
E quem vem pelo círculo Z não é o professor distinto, mas o sujeito convencido de animal pelo periódico da localidade. [...]
Logo que o Governo possui completa a sua lista, comunica-a aos governadores civis. Começa aqui o que se chama o trabalhinho das autoridades. O governador civil chama particularmente cada administrador de concelho, e troca com ele estes nobres dizeres:
- Pelo seu círculo o Governo propõe Fulano. Compromete-se a fazê-lo vencer?
- Farei as minhas diligências.
- Nada de palavras equívocas. Ou a eleição certa para o Governo, ou a demissão certa para si. De resto, peça, intrigue, compre, ameace, maltrate. Isso é consigo... O que nós queremos é que o Governo vença!
O administrador tem família, vive daquele escasso rendimento, quer seguir a carreira administrativa, sente o seu interesse que o insta, e cede a S.ª Ex.ª
- Pois bem - diz. - Respondo por tudo... Mas tenho exigências.
- Venham elas.
- É necessário que seja demitido o reitor do Liceu, que é todo oposição...
- Tomo nota.
- Que seja transferido o escrivão de fazenda. Coitado, grande transtorno lhe vai fazer! Mulher e quatro filhos. A mulher é da vila... mas enfim...
- Está claro, para a frente!...
- Além disso, preciso de uns 300$000 réis para a freguesia de tal, que está muito trabalhada pela oposição...
- Conte com eles.
- Precisva também de tropa...
- Com todo o gosto. Trabalhar, meu amigo, trabalhar! Esta nossa vida administrativa é o demónio! Mas que diabo, alguma coisa se há-de comer! Adeus. [...]
- O candidato é Fulano. Mãos à obra! É trabalhar-me bem essas freguesias. É pedir, ameaçar...
Os regedores partem; e, trotando pelas estradas do concelho, ruminam os seus meios.
1º A compra pura e simples. Regateia-se o voto: 500, 1$00, 1$50o réis. Há-os de meia libra, mas são raros.
2º A pressão. É o mais eficaz. A pressão é uma arma geral, simples, acessível a todos. O proprietário exerce pressão sobre os rendeiros, que exercem pressão sobre os trabalhadores. Nos centros de concelho ou de distrito a autoridade superior exerce pressão sobre todos os empregados do governo civil, da administraçãom da repartição de fazenda, da repartição de obras públicas, do liceu, da câmara, etc. - os coronéis exercem pressão sobre os oficiais - com ameaça de participação para a secretaria de guerra, de destacamento para longe, de mudanças de corpo com despesas, etc.
3º A ameaça. A ameaça é mais especificamente feita pelo regedor na sua freguesia. O regedor dirige-se ao eleitor e verte-lhe esta hinesta eloquência:
- Tu tens um filho de 20 anos. Está para entrar no recrutamento. Se votas no Governo livro-te o filho. Se não, tens o filho com a farda às costas.
Ou então:
- Tu sabes que a tua filha tem aí um namoro. Se não votares no Governo, a tua filha será chamada à presença da autoridade e tens a vergonha em casa...
Ou quando então:
- Tu andas colectado em 10. Se votares com o Giverno, arranjo-te a que o sejas apenas em 9. Se votas contra, tens para o ano no cachaço 16 ou 17.
E aqui está como o Governo arranja votos - por cabeça.
Há votos por influência. Isto é - arranja-se um sujeito que dispõe de 50, 100, 200 votos: dá-se a esse homem uma comenda, um título; nomeia-se-lhe um primo recebedor ou apontador de estradas. E esse homem dá generosamente, para maior esplendor da monarquia, esses 50, 100 ou 200 votos ao candidato do Governo! [...]
No entanto a oposição trabalha também. Os seus meios são menores. Recorre sobretudo à prosa. Manifestos nas vilas, discursos populares nas freguesias, etc. Fala nos impostos, nas vexações do escrivão de fazenda, nas poucas estradas que o Governo faz - e nas muitas infâmias que o deputado governamental tem feito... [...]
O influente [de eleições] é ordinariamente proprietário. Antigo cavador de enxada, enriqueceu, tem ambições, quer ser da junta da paróquia, da junta dos repartidores, e mais tarde, num futuro glorioso, vereador! Já não usa jaqueta, nem tamancos. Tem uma casa pintada de amarelo, calça um par de luvas pretas, e fala na soberania nacional. Em vésperas de eleição todos o vêem, montado na sua mula pelos caminhos das freguesias, ou, nos dias de mercado, misturado entre os grupos, gesticulando, berrando, com uma importancia tremenda. Dispõe ordinariamente de 200 ou 300 votos: são os seus criados de lavoura, os seus devedores, os seus empreiteiros, aqueles a quem livrou os filhos do recrutamento, a bolsa do aumento de décima, ou o corpo da cadeia. A autoridade passa-lhe a mão por cima do ombro, fala-lhe vagamente do hábito de Cristo. Tudo o que ele pede é satisfeito, tudo o que ele lembra é realizado. As leis afastam-se para ele passar. As suas fazendas não são colectadas à justa: é o influente! Os criminosos por quem se empenha são absolvidos: é o influente! Se são proibidos no concelho os arrozais, ele pode tê-los: é o influente! Se são proibidos os portes de armas, ele é exceptuado: é o influente! Só ele caça nos meses defesos: é o influente!
Se algum dia, leitores das Farpas, encontrardes o influente, tirai-lhe o vosso chapéu. Ele reina, e o seu reino assenta sobre a coisa que, apesar de ser a mais lodosa, é ainda a mais sólida - a corrupção.
Nasce enfim o dia, o domingo desejado.
Os regedores começam a chegar à frente das suas freguesias. Os homens vêm de cara lavada, de grandes colarinhos brancos.
Para os deter até às 10 horas, impedir que eles se desmantilhem, e que, fora das vistas zelosas do regedor, estejam expostos às tentações da oposição - há um casarão, ou um grande pátio, ou um enorme armazém, em que são recolhidos. Estão ali uns poucos centos de homens, amontoados, sentados no chão, com o varapau na mão, a lista no bolso do colete. No entanto vem vinho e bacalhau. Passam os copos em redor, os queixos mastigam, e viva lá seu compadre! e à saúde do nosso regedor! e grandes risadas daqui e empurrões além, e pragas mais longe - e toda aquela multidão, avinhada, impaciente, aborrecida, com um cheiro enjoativo e um rumor de troça, espera que chegue a hora de dar o seu voto ao Governo, livre, espontâneo e consciente!
Cada freguesia vai votar arrebanhada, de regedor à frente. Os tamancos soam no lagedo da igreja, o secretário da mesa chama numa voz dormente. A cada nome o regedor volta-se para o indivíduo:
- Vá! És tu. Chega-te... perdeste a lista? Pensei! Deita ali! Rua!
E a igreja vai-se esvaziando, os sacristães apagam as velas nos altares, os senhores da mesa bocejam, as beatas persignam-se com água benta, os papelinhos brancos acumulam-se na urna, os influentes satisfeitos fumam no adro, os Cristos sobre os altares agonizam nas cruzes. Viva o sufrágio![...]»
«Este mês, quando os cravos abriam, as Câmaras fecharam. Fecharam, isto é, foram expulsas!
Houve talvez umas certas fórmulas, fez-se decerto o programa do encerramento: mas a verdade é que elas foram precipitadas, aos empurrões, pelas escadarias de S. Bento abaixo.
A Câmara estava quieta, bem barbeada, comodamente sentada nas suas cadeiras, sem desconfiança, esperando com gravidade cívica que o Governo manifestasse a sua ideia por um projecto, um relatório, um dito, um grito, uma carranca!
O Governo entrou, e com um gesto palaciano e galhardo, fez evacuar a sala
E aí está como a grande ocupação do mês são as ELEIÇÕES.
É necessário que te expliquemos, leitor pacífico que não pertences aos centros, o organismo interior de uma eleição. É ao alegre fugir da pena, um curso de anatomia política.
Lê-o ao chá aos teus pequerruchos, a quem a tua mulher prepara as fatias com manteiga. É o melhor ensino que lhes podes dar do abaixamento do seu tempo. Se eles adormecerem no meio mais pungente da declamação, nao penses que foi a sonolência comunicativa das nossas palavras severeas. É que em Portugal tudo faz sono - até a anarquia!
Quando uma Câmara se fecha, o Governo nomeia outra. Nomeia - porque uma Câmara não é eleita pelo povo, é nomeada pelo Governo. O deputado é um empregado de confiança. Somente a sua nomeação não é feita por um decreto nítidamente impresso no Diário do Governo: o processo desta nomeação é mais complicado e moroso. É por meio de votos, os quais são umas tiras de papel, onde está escrito um nome, e que se deitam num domingo, numa igreja, dentro de umas caixas de pau, que se chamam romanticamente urnas. Uns homens graves, de camisas lavadas, estão em roda da urna. Estes homens chama-se a mesa. São eles que, com gesto cívico e cheios do espírito das instituições, metem gravemente o papelinho branco (o voto!) na caixinha (a urna!)
A urna afecta várias formas, segundo as freguesias: há urnas do feitio de caixas de açucar, do feitio de vasilhas, do feitio de chávenas, etc.
Os candidatos gritam sempre, no último período dos seus manifestos, transportados de furor constitucional:
-Cidadãos, à urna!
É puramente uma demoninação sentimental.
Para serem exactos, deviam exclamar, em certas freguesias:
-Cidadãos, ao caixote!
E noutras:
-Cidadãos, à vasilha!
Ora, apesar desta nomeação aparatosa, e de grave cerimonial, o deputado é tão igualmente funcionário como se fosse nomeado por oito linhas burocráticas e triviais do Diário do Governo. O deputado obedece ao Governo, e exerce uma função. Há o apagador, o gritador, o interruptor, o homem dos acidentes, o homem dos precedentes, etc. E quando desagrada, é demitido. Somente não se diz demitido. Diz-se, com menos asseio, dissolvido.
O Governo pois nomeia os seus deputados. Estes homens são, naturalmente e logicamente, escolhidos entre os amigos dos ministros. Por dois motivos:
1º Porque a amizade supões identidade de interesses, confiança inteira.
2º Porque sendo a posição de deputado ociosa e rendosa, é coerente que seja dada aos amigos íntimos - àqueles que vão ao enterro dos parentes e trazem o pequerrucho da casa às cabritas
Os amigos dos ministros são, naturalmente, os primeiros escolhidos. Para completar o numero de uma maioria útil, estes amigos, mais em contacto, indicam depois outros, seus parentes que procuram colocar, os seus derentes que queiram utilizar.
- Tu não tens ninguém pelo círculo tal? - pergunta X ao ministro, seu íntimo.
- Não.
- Espera! Tenho eu um primo. O Pobre rapaz tem poucos meios, é pianista. Mas é fiel como um cão. Um escravo! Posso dizer ao rapaz que conte com a coisa?
- Podes dizer ao rapaz!
Lentamente a lista da maioria vai-se formando em Lisboa. Os pretendentes são numerosos. Os amigos íntimos agitam-se em volta do ministro, como um bando de pardais em torno de um saco de espigas. [...]
Depois os candidatos são mudados como figuras de um jogo de xadrez. A um, a quem se prometeu o círculo D, dá-se o governo civil de B - como indemnização. Tira-se a C a candidatura, porque se descobre que C tomou chá com o chefe da oposição. Mas dá-se a E, que foi quem denunciou C. Às vezes é um influente pelo círculo X que, em paga pela sua influência, pede que seu genro venha pelo círculo Z, onde é proprietário.
- Mas o círculo Z está prometido a Fulano, que é um professor distinto, um publicista! Seu genro tem pelo menos algum curso?
- Meu genro não tem curso nenhum. Eu é que tenho influência. O jornal da localidade já provou que meu genero era um animal. Mas meu genro espancou a redacção.
E quem vem pelo círculo Z não é o professor distinto, mas o sujeito convencido de animal pelo periódico da localidade. [...]
Logo que o Governo possui completa a sua lista, comunica-a aos governadores civis. Começa aqui o que se chama o trabalhinho das autoridades. O governador civil chama particularmente cada administrador de concelho, e troca com ele estes nobres dizeres:
- Pelo seu círculo o Governo propõe Fulano. Compromete-se a fazê-lo vencer?
- Farei as minhas diligências.
- Nada de palavras equívocas. Ou a eleição certa para o Governo, ou a demissão certa para si. De resto, peça, intrigue, compre, ameace, maltrate. Isso é consigo... O que nós queremos é que o Governo vença!
O administrador tem família, vive daquele escasso rendimento, quer seguir a carreira administrativa, sente o seu interesse que o insta, e cede a S.ª Ex.ª
- Pois bem - diz. - Respondo por tudo... Mas tenho exigências.
- Venham elas.
- É necessário que seja demitido o reitor do Liceu, que é todo oposição...
- Tomo nota.
- Que seja transferido o escrivão de fazenda. Coitado, grande transtorno lhe vai fazer! Mulher e quatro filhos. A mulher é da vila... mas enfim...
- Está claro, para a frente!...
- Além disso, preciso de uns 300$000 réis para a freguesia de tal, que está muito trabalhada pela oposição...
- Conte com eles.
- Precisva também de tropa...
- Com todo o gosto. Trabalhar, meu amigo, trabalhar! Esta nossa vida administrativa é o demónio! Mas que diabo, alguma coisa se há-de comer! Adeus. [...]
- O candidato é Fulano. Mãos à obra! É trabalhar-me bem essas freguesias. É pedir, ameaçar...
Os regedores partem; e, trotando pelas estradas do concelho, ruminam os seus meios.
1º A compra pura e simples. Regateia-se o voto: 500, 1$00, 1$50o réis. Há-os de meia libra, mas são raros.
2º A pressão. É o mais eficaz. A pressão é uma arma geral, simples, acessível a todos. O proprietário exerce pressão sobre os rendeiros, que exercem pressão sobre os trabalhadores. Nos centros de concelho ou de distrito a autoridade superior exerce pressão sobre todos os empregados do governo civil, da administraçãom da repartição de fazenda, da repartição de obras públicas, do liceu, da câmara, etc. - os coronéis exercem pressão sobre os oficiais - com ameaça de participação para a secretaria de guerra, de destacamento para longe, de mudanças de corpo com despesas, etc.
3º A ameaça. A ameaça é mais especificamente feita pelo regedor na sua freguesia. O regedor dirige-se ao eleitor e verte-lhe esta hinesta eloquência:
- Tu tens um filho de 20 anos. Está para entrar no recrutamento. Se votas no Governo livro-te o filho. Se não, tens o filho com a farda às costas.
Ou então:
- Tu sabes que a tua filha tem aí um namoro. Se não votares no Governo, a tua filha será chamada à presença da autoridade e tens a vergonha em casa...
Ou quando então:
- Tu andas colectado em 10. Se votares com o Giverno, arranjo-te a que o sejas apenas em 9. Se votas contra, tens para o ano no cachaço 16 ou 17.
E aqui está como o Governo arranja votos - por cabeça.
Há votos por influência. Isto é - arranja-se um sujeito que dispõe de 50, 100, 200 votos: dá-se a esse homem uma comenda, um título; nomeia-se-lhe um primo recebedor ou apontador de estradas. E esse homem dá generosamente, para maior esplendor da monarquia, esses 50, 100 ou 200 votos ao candidato do Governo! [...]
No entanto a oposição trabalha também. Os seus meios são menores. Recorre sobretudo à prosa. Manifestos nas vilas, discursos populares nas freguesias, etc. Fala nos impostos, nas vexações do escrivão de fazenda, nas poucas estradas que o Governo faz - e nas muitas infâmias que o deputado governamental tem feito... [...]
O influente [de eleições] é ordinariamente proprietário. Antigo cavador de enxada, enriqueceu, tem ambições, quer ser da junta da paróquia, da junta dos repartidores, e mais tarde, num futuro glorioso, vereador! Já não usa jaqueta, nem tamancos. Tem uma casa pintada de amarelo, calça um par de luvas pretas, e fala na soberania nacional. Em vésperas de eleição todos o vêem, montado na sua mula pelos caminhos das freguesias, ou, nos dias de mercado, misturado entre os grupos, gesticulando, berrando, com uma importancia tremenda. Dispõe ordinariamente de 200 ou 300 votos: são os seus criados de lavoura, os seus devedores, os seus empreiteiros, aqueles a quem livrou os filhos do recrutamento, a bolsa do aumento de décima, ou o corpo da cadeia. A autoridade passa-lhe a mão por cima do ombro, fala-lhe vagamente do hábito de Cristo. Tudo o que ele pede é satisfeito, tudo o que ele lembra é realizado. As leis afastam-se para ele passar. As suas fazendas não são colectadas à justa: é o influente! Os criminosos por quem se empenha são absolvidos: é o influente! Se são proibidos no concelho os arrozais, ele pode tê-los: é o influente! Se são proibidos os portes de armas, ele é exceptuado: é o influente! Só ele caça nos meses defesos: é o influente!
Se algum dia, leitores das Farpas, encontrardes o influente, tirai-lhe o vosso chapéu. Ele reina, e o seu reino assenta sobre a coisa que, apesar de ser a mais lodosa, é ainda a mais sólida - a corrupção.
Nasce enfim o dia, o domingo desejado.
Os regedores começam a chegar à frente das suas freguesias. Os homens vêm de cara lavada, de grandes colarinhos brancos.
Para os deter até às 10 horas, impedir que eles se desmantilhem, e que, fora das vistas zelosas do regedor, estejam expostos às tentações da oposição - há um casarão, ou um grande pátio, ou um enorme armazém, em que são recolhidos. Estão ali uns poucos centos de homens, amontoados, sentados no chão, com o varapau na mão, a lista no bolso do colete. No entanto vem vinho e bacalhau. Passam os copos em redor, os queixos mastigam, e viva lá seu compadre! e à saúde do nosso regedor! e grandes risadas daqui e empurrões além, e pragas mais longe - e toda aquela multidão, avinhada, impaciente, aborrecida, com um cheiro enjoativo e um rumor de troça, espera que chegue a hora de dar o seu voto ao Governo, livre, espontâneo e consciente!
Cada freguesia vai votar arrebanhada, de regedor à frente. Os tamancos soam no lagedo da igreja, o secretário da mesa chama numa voz dormente. A cada nome o regedor volta-se para o indivíduo:
- Vá! És tu. Chega-te... perdeste a lista? Pensei! Deita ali! Rua!
E a igreja vai-se esvaziando, os sacristães apagam as velas nos altares, os senhores da mesa bocejam, as beatas persignam-se com água benta, os papelinhos brancos acumulam-se na urna, os influentes satisfeitos fumam no adro, os Cristos sobre os altares agonizam nas cruzes. Viva o sufrágio![...]»