And she fights for her life as she puts on her coat
And she fights for her life on the train
Acordo aos poucos enquanto sinto o cheiro de banho acabado de tomar e ouço o barulho que ela faz com os cabides uns contra os outros no armário, a escolher o que vai levar vestido. Espreguiço-me um pouco sem abrir os olhos e enrodilho mais um pouco o edredão entre as pernas. Nesta altura não penso por palavras. Apenas dou atenção aos estímulos que os três sentidos me oferecem, e pairo num limbo de semi-sonho. Está atrasada para o trabalho, e repete os gestos mecanicamente, quase naquele piloto automático só possível nesta altura. Cada vez mais depressa e com mais barulho, vai-se despachando, e eu vou saindo aos poucos do torpor. Espreguiço-me mais meia dúzia de vezes, ainda sem abrir os olhos. Sinto agora o cheiro do perfume acabado de pôr, e talvez consiga distinguir muito ao longe o cheiro do lápis dos olhos. Pelo som dos passos rápidos de vai-e-vem, não escolheu saltos desta vez. Agora fechou a porta. Foi tomar meio pequeno-almoço e lavar os dentes. Devo ter mais cinco minutos até que volte.
Ponho-me a pensar no que vou fazer hoje... estou de férias. Vaguearei sozinho por ruas que me são estranhas. Verei caras não familiares, algumas delas cruzarão olhares comigo, mas não a maioria. Estará muito frio? Pergunta idiota, estará com certeza. Sair da cama será como nascer outra vez. Respiro fundo e espreguiço-me. Os músculos todos tremem enquanto são esticados e torcidos em todas as direcções, quase no limite de provocar cãibras. Bocejo. Devo ter mais três minutos.
Antes do tempo que julgava razoável, a porta abre-se depressa. Passos rápidos. Agora veste o casaco e pendura a mala ao ombro. Agora uns segundos de silêncio. Volta a pôr a mala na cadeira.
O colchão abana um pouco, e logo sinto um peso leve e quente por cima de mim. Perfume mais intenso. Abro com dificuldade os olhos por entre as pestanas coladas e vejo-a fitar-me bem quieta como se pudesse matar um cabrão só com o olhar. Mais um sentido que desperta. E logo a seguir demora-se ligeiramente num beijo mentolado rápido. Agora sim, estou totalmente acordado. Xau, diz-me baixinho. Torna a fixar-me uns segundos, talvez para se certificar de que estou bem morto e não estarei ali quando regressar do trabalho da próxima vez. O colchão abana outra vez - nova lufada de perfume - a porta fecha-se devagar, e o trinco desliza quase sem ruído. Passos lentos. A porta da rua fecha e a onda de choque bate-me no peito.
Xau... respondo, com as cordas vocais ainda coladas, apenas com o ar que tenho na boca.
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